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A fragmentação da linguagem em Curse of the Starving Class

3. A desconstrução da família americana em três peças de Sam Shepard

3.1.4 A fragmentação da linguagem em Curse of the Starving Class

Apesar de Curse of the Starving Class começar de uma maneira lógica e tradicional (como por exemplo, "uma linguagem tradicional comparável à do drama realista americano da primeira metade do século XX"), com mãe e filho conversando sobre os eventos da noite anterior (a briga do casal), em breve essa exposição lógica será quebrada pelo devaneio de Wesley (p. 137 e 138). Ele nos passa sua própria visão da briga familiar. A princípio, ele nos dá um resumo poético de seus sentimentos através de imagens como ‘cheirar’, ‘ouvir`, ‘sentir`. Ele demonstra que está consciente de seus sentimentos. No monólogo de Wesley, quando o pai aproxima-se da cena, o tom muda radicalmente e sentenças incompletas são introduzidas num rítimo staccato (p. 138). A divisão que ocorre nos monólogos de Shepard é uma mudança da voz narrativa para ativa, de objetividade para subjetividade. Algumas vezes essa divisão/fragmentação ocorre com uma clara mudança de tempo verbal – do passado para o presente; outras vezes a divisão é causada pela ação da força narrativa pelo poder absoluto da linguagem. Podemos obsevar tudo isso no seguinte monólogo em Curse of the Starving

Class:

Eu estava lá deitado. Eu podia sentir o cheiro dos abacates florescendo. Eu podia ouvir os coiotes. [...] Então eu ouço a porta do Packard abrir. [...] A mamãe chorando. Então nenhum som. Então chorando. Então nenhum som. (p. 45).

Nesse monólogo, a ação muda de velocidade e sai da narrativa para ativa através de mudanças de tempos verbais. A ação se inicia com uma experiência passada e é trazida até o presente; Wesley está se lembrando como ele se sentiu na cama na noite anterior. Com a pergunta: “O que ele está fazendo?” o tempo verbal é mudado para o presente. Outro fato interessante sobre esse monólogo é que a descrição da violência se torna mais explícita, a estrutura da sentença se torna mais curta e depois ele usa frases e palavras. No início as sentenças são simples, mas afirmações bem longas: “Eu podia

sentir a mim mesmo na minha cama no meu quarto nessa casa nessa cidade nesse estado nesse país”. No meio da fala de Wesley conforme a ansiedade aumenta Shepard quebra a estrutura da sentença reduzindo as sentenças ao mínimo: “Papai chama mamãe”, ou apresenta somente frases: “A voz do papai”, ou palavras: “Pés”. Bonnie Marranca comentou sobre esse monólogo, observando que a ação:

[...] inicia-se num humor pessoal vagarosa e alegremente [...] então passa-se a mover numa corrida rápida de sentenças incompletas. Imagens são definidas em frases curtas cujo ritmo staccato ecoa as batidas do coração de Wesley. (p. 47)

Em outro monólogo de Curse of the Starving Class, a ação presente invade um devaneio e a atriz é forçada a representar a invasão:

EMMA: Ela está contando para ele tudo sobre nós e como papai está louco tentando matá-la o tempo todo. [...] De manhã eu cobro duas vezes pelo trabalho; os vejo ir embora, e revendo o motor deles por uma boa quantia de dinheiro. (p. 48)

Um padrão de crescente intensidade é alcançado pelo uso do particípio nas sentenças que Wesley diz. Temos o sentimento de que tudo está acontecendo agora. A construção passiva chama-nos a atenção, primeiramente porque a sintaxe assinala uma história que está chegando ao final, como se ao contar a história o contador não estivesse mais lá na primeira pessoa como ele esteve durante o resto da história, e, segundo, porque o narrador é deslocado pelas coisas da paisagem que circundam a história.

A mudança radical é feita para contrastar o discurso lógico do começo da peça com a exposição não lógica que está a seguir. Dessa maneira nossa impressão inicial muda, especialmente quando notamos que a mãe de Wesley continua com as suas atividades enquanto ele fala. Isto nos faz inverter nossa primeira percepção da peça, uma vez que ela age como se ele não estivesse lá. A abordagem lógica é mais uma vez quebrada quando Wesley sai da cozinha e Ella fica e inicia uma conversa com ela mesma sobre o primeiro período menstrual de Emma. (p. 138)

As regras básicas de conversação são totalmente quebradas e o nosso sentido lógico de algum modo violado. Estamos certos que Ella está sozinha no palco, mas quando sua filha vem para o palco ela segue a conversa anterior que a mãe tinha com ela mesma. A quebra de uma conversa normal está presente nos diálogos de Shepard. A peculiaridade está em que os diálogos mais parecem monólogos violentos, brutais, até, justapostos, em que as personagens trazem à tona profundos traumas, mas não alcançam a comunicação ordenada ou a interação ativa com seus interlocutores. Suas peças dificilmente seguem um fluir conversacional porque seus personagens praticamente não estão conscientes do que cada um está dizendo. Esta falta de consciência ou de domínio do discurso ordenado, incapacidade de se comunicar que isola as personagens em sofrimento incomunicável, apesar de ter origem num núcleo comum – a crise do meio oeste americano e dos papéis sociais e familiares tradicionais - às vezes aflora no palco como ação animalesca sintoma da impossibilidade de traduzir em linguagem as frustrações e a impotência – como exemplo o trabalho de Ella e a urina ou a deglutição do carneiro feita por Wesley. Estas cenas fazem parte da forma dramatúrgica que Shepard desenvolveu, habilmente, para traduzir esta crise americana numa linguagem dramática nova e impactante. Eles raramente comentam o que foi dito. A técnica de

Shepard para criar diálogos baseia-se muito em narrativa e é por isso que a desvalorização do diálogo é tão constante em suas peças.

O outro personagem masculino que fala com ele mesmo é Weston. Nas suas conversas consigo mesmo não há introspecção; ele fala muito com ele mesmo porque está isolado da sua família: “Sempre fui o melhor em falar comigo mesmo. Sempre foi a melhor coisa. Nada como isso. Pelo menos te faz companhia.”(p. 158)

Os solos de Weston, como os de Ella, são geralmente sobre o que está acontecendo ou o que está passando em sua mente, sobre o que os cerca. Nos monólogos de Shepard, detectamos os grandes esforços de seus personagens para fazerem-se conhecidos e sentidos. Os monólogos geralmente mostram o seu isolamento e enfocam na sua impossibilidade de falar um com o outro. Através dos monólogos dos personagens seus estados internos manifestam-se e lutam para irem além das suas limitações físicas e morais. Os personagens de Shepard são tão divididos quanto as falas que pronunciam, mas ainda assim lutam para serem reconhecidos como indivíduos.

Shepard lida com suas peças de acordo com os modernos padrões da arte, desistindo da estrutura de um enredo bem feito para introduzir uma estrutura que faz lembrar a aparente desconexão de um sonho através da hipertrofia de detalhes do cotidiano e aspectos realistas. Ele abandonou os meios tradicionais de caracterização para poder introduzir personagens que representam fragmentos da humanidade. Ele faz uso de uma linguagem dramática na qual ele manipula os diálogos e indica a disposição das cenas construindo assim um espaço simbólico, mas essa linguagem é tão fragmentada quanto os personagens que ele põe em cena, rica em apresentação de contradições que são inerentes aos seres humanos, pois são contadas na forma específica de conflitos no meio-oeste americano do pós-guerra.

Shepard descobriu em seus temas e forma uma adequada metáfora para descrever a vida contemporânea. Ele é habilidoso ao explorar as paixões humanas e o duradouro conflito entre desejo por liberdade e por raízes, por si mesmo e pela comunidade, por escapar e pela família. Ao fazer os espectadores enfrentarem suas necessidades paradoxais, Shepard provavelmente percebeu que não importa o quanto essa confrontação possa desorientar, ela também pode liberar.