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2. O teatro de Sam Shepard e o drama americano moderno

2.2 Família e Sociedade

No drama americano peças a respeito da família são frequentes e alguns dos maiores dramaturgos são reconhecidos por peças que estão centradas na vida familiar. O’Neill, Miller, e Shepard não são exceções, com trabalhos que expressam um interesse profundo pelo papel da família na sociedade americana.

É interessante notar que enquanto podemos traçar paralelos entre Long Day’s Journey

into the Night (O’NEILL, 1987) e Death of a Salesman, (MILLER, 1976) , por exemplo em termos de forma dramática, as peças de Shepard têm um realismo insólito, inusitado, inovador em direção própria. As duas primeiras peças familiares são consideradas mais ‘tradicionais’ com tendência a tradição ibseniana. As peças de Shepard como Buried Child, Fool for Love e Curse of a Starving Class, por outro lado contêm elementos "estranhadores", "perturbadores", em especial as imagens brutais que Shepard insere em suas peças – como a do carneiro sangrento, ou a do trabalho ensopado em urina – de resto, passada em ambiente doméstico familiar, cotidiano – além do caráter monológico dos conflitos dramáticos em cena – os personagens dão vazão a núcleos traumáticos sem levar o outro em consideração ou sem atingir o outro efetivamente. Seu drama é permeado por um número de inconsistências e levanta mais questões do que respostas. A estranheza e novidade de que se está falando é da forma. Mergulhar numa peça de Shepard é como pisar num território confuso e não familiar. A necessidade de fugir dessa atmosfera surrealista logo surge; e mesmo assim existe algo de intrigante sobre seus personagens grotescos e enredos estranhos. Você é atraído para o “universo shepardiano” sem mesmo compreender as razões. Em alguns aspectos da vida familiar, Buried Child e Fool for Love emergem como opostos diretos de Long

Day’s Journey into the Night e Death of Salesman.

As quatro peças retratam a mesma estrutura familiar: mãe, pai e dois irmãos em dois períodos diferentes do século 20. Elas também descrevem uma variedade de famílias, abrangendo o inicio até o final do século 20. Os Tyrones em Long Day’s Journey into the night são um grupo rico e refinado e a peça se passa em 1912 na Nova Inglaterra. Death of a Salesman se passa no Brooklyn depois da Grande Depressão e da 2ª Guerra

Mundial e retrata uma família tradicional da classe média. Buried Child e True West se passam numa data mais recente, no final dos anos 70 e no inicio dos anos 80 contando as histórias de famílias em Illinóis e Califórnia respectivamente. São muitas as afinidades temáticas entre essas peças e todas elas têm famílias em crise no foco, o que vem justificar a aproximação entre esses dramaturgos. Importante também mostrar as diferenças que este material assume, reflexo de mudanças históricas e de recortes específicos. Existem diferenças de linguagem dramática, forma dramatúrgica, ou seja, uso do diálogo, dos conflitos, da construção simbólica. Encontramos um substrato realista comum, mas ênfases específicas: mais psicológica em O'Neill, mais mítica talvez, mais cruamente metafórica em Shepard, por exemplo, contaminada pelo imaginário pop e de cultura de massas.

Alguns aspectos da família podem ser vistos como arquetípicos, posicionados fora do tempo e do espaço. Partilho da opinião de Shepard de que tudo pode ser rastreado na

família: “O que não tem a ver com a família? Não há nada, se você entende o que eu quero dizer? Até mesmo uma história de amor está relacionada à família. Crime tem a ver com a família. Todos nós saímos um do outro - todos nascem de uma mãe e de um pai, e depois você se torna um pai. É um ciclo sem fim” (em BIGSBY, 1985, p. 21). Questões familiares são intensamente pessoais e ainda assim poderosamente universais. Essas quatro peças mencionadas no parágrafo anterior sondam profundamente a psique americana e exploram a herança cultural da nação, além de exercerem um forte apelo nas pessoas pelo mundo todo. Todos são moldados de alguma maneira pelas famílias as quais pertencem; permanece enraizado na nossa experiência, na nossa identidade, na nossa personalidade, como Miller argumenta: “Nós – todos nós – temos um papel antecedendo todos os outros: somos filhos, filhas, irmãs, irmãos [...] Os conceitos de Pai, Mãe, e os outros foram recebidos por nós antes da época em que estávamos conscientes de nós mesmos como ‘eus’” (“The family...”, p. 81). Papéis familiares são frequentemente difíceis de escapar e geralmente permanentes, e a tentativa de distanciar-se da família geralmente falha. De acordo com Shepard, estamos “intimamente, inevitavelmente e inteiramente conectados a quem nos trouxe ao mundo” (em ROUDANÉ, “Shepard on ...”, p. 68)

O estudo de Tom Scanlon, Family, Drama, and American Dreams (1978), fornece uma pesquisa histórica e sociológica da mudança do papel da família descrito por alguns dramaturgos Americanos. O autor concentra sua atenção em O’Neill, Miller e Tennessee Williams. O trabalho de Thaddeus Wakefield, The Family in Twentieth

Century American Drama (2003) aplica uma abordagem marxista e explora maneiras

nas quais a cultura capitalista dos Estados Unidos afeta a família. De acordo com o autor, a família americana é valorizada em termos monetários e é meramente uma mercadoria dentro da cultura americana de consumo. Ele escreveu um breve estudo comentando catorze peças familiares americanas.

A posição que a família detém dentro da sociedade tornou-se uma área de debate considerável dentro dos Estados Unidos. É muito difundida a crença tradicional que a família é a espinha dorsal, a fundação, da cultura e da sociedade americana e que a cultura popular tenta projetar uma imagem de uma família americana idealizada e feliz. Muitos sociólogos concordam que a família americana sofreu um processo profundo de mudança durante os séculos 19 e 20. Historicamente, a família nuclear tem sido a estrutura familiar predominante nos Estados Unidos. A revolução industrial e tecnológica provocou uma grande mudança no papel da família na sociedade americana. Os sociólogos contemporâneos frequentemente mencionam a fragmentação da família nuclear. Na visão de Talcott Parsons, as necessidades da família moderna são encontradas fora do meio familiar, quando anteriormente elas eram encontradas pela própria família. Essa teoria apresentada em Family, Socialization and Interaction

Process (1995) coincide com os cenários históricos de duas peças: Long Day’s Journey into the Night e Death of a Salesman.

A relação entre o público e o privado é focada nas peças familiares de O’Neill, Miller e Shepard. A sociedade é uma parte inseparável de vida familiar e a família é um componente central da sociedade, como a citação inicial de Miller serve para ilustrar: “A sociedade está dentro do homem e o homem dentro da sociedade [...] O peixe está dentro da água e a água está dentro do peixe” (“The Shadows...”, p. 39). Talcott Parsons (1974, p. 19) desaprova a ideia de categorizar a família “como uma pequena sociedade nela mesma”, mas insiste que ela deva ser vista como “um subsistema diferenciado da

sociedade”, e, portanto sugere que o papel privado de uma pessoa tem como premissa o seu papel público. As quatro peças selecionadas estendem-se do seu papel privado para o seu papel público; elas podem ser consideradas dramas individuais e sociais ao mesmo tempo. Na visão de Miller, as melhores peças são aquelas nas quais questões de identidade levantadas vão muito além do nível pessoal; alienação pessoal e nacional parecem andar de mãos dadas. O’Neill, Miller e Shepard são reconhecidos por sua crítica persistente da sociedade americana e seu desejo de acordar uma consciência social nos seus espectadores. Essa sociedade descrita por eles parece estar numa queda livre moral, e eles atacam o que eles consideram a causa, o sistema de valor tradicional sobre o qual os Estados Unidos foi fundado.

A desintegração da família americana descrita em Long Day’s Journey into the Night,

Death of a Salesman, Buried Child e Fool for Love é transparente. Harold Bloom (1989,

p. viii) afirma que Long Day’s Journey into the Night retrata “a realidade do pesadelo

que pode afligir a vida da família americana [...] O desamparo do amor familiar a sustentar, sem mencionar curar, as feridas do casamento, paternidade, filiação” (p. 115). As quatro peças mencionadas oferecem uma visão sombria da dinâmica complicada das famílias americanas. A pergunta de Shelley em Buried Child – “What’s happened to this family anyway?” (p. 112) – toca na essência desse tópico. Não é difícil partilhar da reação chocada de Shelley e querer responder as questões que ela levanta. A idéia de que pressões do mundo exterior entram no domínio familiar e contribuem para desintegração da família americana está latente. Podemos perceber maneiras nas quais a industrialização, o capitalismo, o consumismo e a modernização da economia ocidental afetam o papel da família dentro da sociedade americana. Para assegurar o mito do sonho americano, porém inatingível, a vida familiar paga seu preço. O tema da família disfuncional relaciona-se com os valores incorporados na sociedade; a família está se desmantelando de dentro para fora por sua fidelidade aos valores públicos.

As tensões que caracterizam o relacionamento entre pais e filhos são focadas nas peças e dessa relação surge a erosão da família inteira. Isso demonstra que uma sociedade dirigida pelo sucesso combinado com idéias de masculinidade contamina o relacionamento entre pais e filhos, além de poder incitar a rivalidade entre irmãos.