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3.1 Autodemarcação de Dzorobabé

3.2.2 A confiscação das águas

Toda essa “desordem das coisas e do mundo”, como diz Felipe no trecho citado, ou ainda, essa “desorganização”, como ouvi de Uilton e Dinamam, as quais acarretam perdas, são efeito imediato da barragem das águas do Opará. Contudo, como já mencionado na Introdução e em momentos anteriores neste capítulo, não é ao tratar da cultura que as lideranças enfatizam esses sentimentos de perda, mas no que diz respeito à autonomia e à força, sendo a construção do empreendimento hidrelétrico estatal o acontecimento catalisador, no caso do povo Tuxá, desse processo quincentenário de perdas sofrido pelos povos indígenas desde a invasão europeia, uma vez que o “monstro de concreto” é a concretização, em todos os sentidos do termo, da barragem das relações entre os Tuxá e o Opará.

Contudo, do mesmo modo como nos comunica a ciência Tuxá acerca dos engajamentos com os mais variados seres, as relações entre esse povo indígena do sertão baiano e as águas do rio em que vivem não devem ser compreendidas no registro da propriedade, ou seja, os Tuxá não devem ser tomados como sujeitos de posse sobre determinado objeto (o rio), mas como relações vitais, bem como Dinamam sempre faz questão de frisar, uma vez que não se trata prioritariamente de uma questão de “direito” ou “recurso”, ainda que esses termos sejam utilizados pelas lideranças em suas ações – como vimos no Capítulo 2 – mas de uma questão de “vida”. Assim, na abordagem dos efeitos da barragem das águas do Opará de uma maneira mais afinada com o que formulam as lideranças e com o que me é possibilitado observar da própria ciência Tuxá, o mais interessante em termos de análise acaba por não ser o célebre conceito de “expropriação”, mas o de “confiscação”, tal como elaborado por Villela (2020). Vejamos:

Confiscatório descreve um procedimento aquém do que descreve a expropriação porque aquele, à diferença desse, não supõe ainda a distinção do sujeito com o objeto, vítima da expropriação, alvo dela, respectivamente (dos meios e condições de produção); sujeito da alienação (a consciência) e seu objeto (o corpo). [...] o que é confiscado não são objetos nem meios, é um modo de vida inteiro porque se trata, antes, de um eu sempre composto. (VILLELA, 2020, p. 270).

Este “eu sempre composto” ao qual Villela se refere, nos reporta às relações manifestas, por exemplo, nas frases de Dinamam e Dona Dora acerca da morte do Opará como morte dos

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Tuxá e da aldeia como rio, respectivamente. Uma existência como Tuxá só poderá se efetuar em engajamento com o Opará, com a ciência de suas águas e na comunicação com os encantados que nele vivem, em muitos aspectos – recordemos as atividades apresentadas anteriormente neste capítulo, bem como a imagem dos cantos entoados a partir das águas do rio. A confiscação do Opará é a edificação de uma barragem entre os elementos (“existentes” diria Villela (2020)) que coexistem em/com suas águas (peixes, plantas, cachoeiras, encantados, ciência, etc.) e os Tuxá, barragem essa que não se reduz a uma interdição fixada entre um povo (sujeito) e um “ente” externo (objeto), mas que incide no próprio movimento de composição dos modos de viver que os constituem como povo (indígena).

Confiscar não é apenas explorar nem expropriar. É decompor e recompor uma composição, rearticular as suas partes impedindo por diversos meios (legais, regulamentares, perceptivos, morais, familiares, arquitetônicos) que elas perseverem a composição anterior. [...] Arrancar elementos de uma relação que compõe um modo de ser e substituir por outros, isso é a confiscação. (VILLELA, 2020, p. 273).

Uma substituição dos elementos das relações, ou ainda, uma simplificação desses elementos para que seja possível sua substituição. Pois, como descrito no Capítulo 2, não é através de um procedimento de simplificação das terras em matas ciliares e das águas sob as noções de “recurso” e “direito” que se torna possível mensurá-las, contabilizá-las e lhes atribuir valor monetário – decompondo relações e recompondo-as no registro do capital? Simplificações e substituições cujos efeitos são abruptos e perversos, como narram as lideranças, tanto em suas falas quanto em seus trabalhos acadêmicos.

Felipe Tuxá (CRUZ, 2017a) atenta para uma conexão entre o que denomina “lógica homogeneizante das práticas de reassentamento” e uma “lógica compensatória”, as quais, homogeneizam (ou ainda, simplificam, para utilizar a mesma ideia proposta na presente dissertação) as relações entre os diferentes povos e suas terras e águas nos eventos de deslocamento compulsório para que se torne possível um desfecho desresponsabilizante no âmbito judicial, que se encerra mediante indenizações pecuniárias. Lógicas que não compreendem, em ambos sentidos do termo, o conceito de autonomia, uma vez que privilegiam o “valor do dinheiro”181 e a vaga e obscura noção de “quantidade”:

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[..] a fartura, nesse contexto [a vida nas ilhas antes da barragem], é associada à possibilidade de se obter o sustento por conta própria, o que se plantava era seu. Quando se fala da fartura do passado, não estão se referindo à “quantidade”, e sim à autonomia de poder ver e

acompanhar suas terras darem os frutos. Nesse sentido, a terra proporciona uma fartura sem igual. Hoje as pessoas têm que comprar no mercado e muitos dos mais novos não sabem inclusive como plantar uma roça. (CRUZ, 2017a, p. 131, grifo meu).

Como evidenciado nessa descrição de Felipe, no caso Tuxá a confiscação, esse procedimento de decomposição e recomposição de composições, tanto substitui – por arrancamento – determinados elementos por outros concernentes ao modelo capitalista182 (“hoje as pessoas têm que comprar no mercado”) e simplifica o pensamento (a fartura é reduzida à uma dimensão quantificável183), quanto decompõe as próprias relações (“muitos dos mais novos não sabem inclusive como plantar uma roça”). Essa dinâmica confiscatória de decomposição e recomposição, tal como Villela (2020) elabora o conceito, conflui com o sentimento e a formulação dos conceitos de perda da autonomia e da força que manifestam os Tuxá, especialmente as lideranças. O próprio Felipe, ao abordar esse sentimento em relação às águas do Opará, escreve:

Tampouco sua água é igual em todos os lugares. O sentimento de perda vem justamente da impossibilidade de restabelecer as relações entre as memórias e os lugares que são parte constituinte das identidades dos sujeitos. (CRUZ, 2017a, p. 125).

Dessa forma, os modos de resistência à essa “desordem” e “desorganização”184 que as lideranças denunciam como consequência das barragens fixadas desde a edificação do “monstro”, como preferem os Tuxá, demandam um reordenamento, uma reorganização que 182Utilizo o termo “modelo capitalista” por ser o mesmo Dinamam emprega em sua fala no vídeo intitulado

“A luta indígena no capitalismo”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w_V5ndgaIPc Acesso em: 25/06/2020

183Simplificação essa que remete à crítica tecida por Clastres (2003 [1974]) ao procedimento classificatório de

cunho econômico realizado pela etnologia de definir os povos ameríndios como praticantes de uma “economia de subsistência” desde uma perspectiva econômica que é intrínseca ao Estado, a qual é alicerçada na produção dos denominados “excedentes” (sempre quantificáveis).

184Ou ainda, uma “decomposição” em que, na subsequente recomposição das relações – em um movimento

contínuo de composição-decomposição-recomposição de inspiração espinosista –, elas são substituídas por outras que não as que caracterizavam os modos de viver anteriores à decomposição (VILELLA, 2020). Pensemos novamente, por exemplo, no trecho de Felipe: “Hoje as pessoas têm que comprar no mercado e muitos dos mais novos não sabem inclusive como plantar uma roça” (CRUZ, 2017a, p. 131).

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abrange, necessariamente, os elementos concretos, assim como as relações que os compõem, a que os conceitos de autonomia e força se referem. Em outras palavras, as ações efetuadas pelos Tuxá, tanto no Comitê quanto na autodemarcação de Dzorobabé, objetivam uma reorganização de determinadas relações com aqueles elementos que compõem os modos de viver desse povo indígena, as quais concebem como fundamentais para a retomada de sua autonomia e de sua força como povo Tuxá.

Contudo, mais uma vez, seguindo a definição de resistência do Tuxá antropólogo Felipe, bem como o que a vivência entre os Tuxá me provocou, esse processo de reorganização requer ser pensado “não mais sob uma chave culturalista, a partir da qual resistir significaria uma luta por fazer as coisas como elas sempre foram feitas” (CRUZ, 2017a, p. 32), mas considerando como premissa básica os modos concretos pelos quais os Tuxá e suas lideranças formulam e efetuam essa reorganização, a qual demanda variadas ações em diversas instâncias, o que inclui, por exemplo, a própria participação no órgão de gestão das águas da bacia, o Comitê.

Isso posto, neste subcapítulo foram apresentados conhecimentos e práticas que compõem as atividades do povo Tuxá feitas em engajamento com as águas do Opará, essenciais para uma descrição etnográfica mais consonante, na medida do possível, à assertiva de Dona Dora da aldeia como rio. Doravante interessarão os modos como as retomadas da autonomia, continuamente reforçada pelas lideranças, e da força, tal como os Tuxá a pensam e vivem em sua ciência, nos auxiliam a descrever as confluências entre as várias ações da autodemarcação de Dzorobabé, como processo de retomada de modos de viver confiscados pela barragem, e as ações das lideranças no âmbito do Comitê, destacando sempre a importância do Opará.