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Uma liderança indígena na coordenação da CCR Submédio

Uilton Tuxá foi eleito coordenador da CCR Submédio no ano de 2013, exercendo o cargo até 2016. Segundo a liderança, ascender ao cargo só foi possível devido à sua experiência de participações em outros órgão como, por exemplo, a FUNAI, a APIB e a APOINME, que lhe proporcionaram estabelecer contato com determinados saberes relacionados aos procedimentos técnicos-burocráticos que predominam e fazem operar órgãos dessa categoria. Ele destaca, também, que a ascensão hierárquica na estrutura do Comitê ao cargo de coordenador, repito, se tornando o primeiro representante dos povos indígenas no Comitê a exercê-lo, é resultado direto daquela busca pela educação formal realizada pelo povo Tuxá, que lhe propiciou as capacidades demandadas para concorrer ao cargo e também os “conhecimentos políticos”, nas palavras de Uilton, necessários para efetuar ações que fortalecessem sua candidatura ao cargo e a concretizassem. Observemos que o termo empregue (“conhecimentos

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políticos”) para descrever os motivos de sua ascensão ao cargo de coordenador é o mesmo utilizado, também por Uilton, quando ele se refere ao que carecia às antigas lideranças Tuxá na época das negociações com a CHESF acerca do deslocamento compulsório79.

Dessa forma, a busca pela educação formal, cuja motivação, segundo Dinamam, é o acesso aos códigos de conhecimento científico dos brancos, gera também “conhecimentos políticos” necessários às negociações com os membros representantes dos órgãos estatais, esse movimento produz ações concretas com o objetivo de adentrar novos espaços para se fazer ouvir, sendo a eleição de Uilton para o cargo de coordenador da CCR Submédio um resultado concreto dessas ações. Conforme apresentado no subcapítulo anterior (item 1.1.2), as ações é que são caracterizadas como políticas e, assim sendo, esses “conhecimentos políticos” estão intrinsecamente vinculados a essas ações. Ter “conhecimentos políticos”, para as lideranças Tuxá, não se refere a um conjunto fechado de conhecimentos acerca de uma noção transcendente de Política, mas das possibilidades concretas das práticas e das ações80, sempre renovadas por experiências como a de Uilton no Comitê. Exercer o cargo de coordenador da CCR, como ele afirma, lhe ofereceu conhecimentos mais detalhados dos trajetos institucionais percorridos pelos projetos propostos pelos membros do Comitê e dos modos como se entrelaçam seus vários setores, o que o atentou para a importância dos procedimentos técnico- científicos e dos processos burocráticos no funcionamento do órgão. A discussão a respeito dos alcances possíveis das ações por meio da participação em instâncias institucionais se torna, portanto, importante para descrever as ações das lideranças no Comitê.

Ao etnografar a associação entre as ONGs de Recife que compunham o Projeto Tarrafa e uma instituição católica britânica com sede em Londres, as quais se enleiavam81 por um objetivo em comum que é o combate à pobreza, Morawska (2014) utiliza como ferramenta analítica o conceito de “emaranhados institucionais”, cujo benefício estaria “justamente em não oferecer a visão de alguma pretensa totalidade, apenas enfatizar o caráter relacional de atores por meio da mobilização de saberes técnico-burocráticos” (MORAWSKA, 2014, p. 28), voltando sua atenção para as relações concretas mediadas pelos procedimentos técnicos. Segundo a antropóloga, a otimização dos resultados de financiamento das ONGs estava proporcionalmente relacionada ao engajamento das ONGs com os procedimentos técnico- burocráticos solicitados pela instituição católica inglesa, que se valia desses procedimentos para 79Conforme apresentado no início deste capítulo, quando foram abordadas as motivações da busca pela educação

formal pelo povo Tuxá.

80Essa noção de ter “conhecimentos políticos” para as lideranças Tuxá conflui com um outra que será abordada

no Capítulo 3 a respeito da expressão “ter ciência”, comum aos Tuxá.

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realizar as avaliações que resultariam na manutenção ou suspensão do financiamento. As ONGs que melhor se adequavam a esses procedimentos obtinham um maior alcance dentro dos “emaranhados institucionais”, o que viabilizava suas atividades porque proporcionava novos financiamentos, ou ao menos mantinha os já existentes. Todavia, como afirma Morawska, “a partir de cada ponto de observação dentro dos emaranhados institucionais, certos aspectos de outros pontos ficam visíveis ou obliterados, produzindo um campo de visão específico sobre a mesma relação” (MORAWSKA, 2014, p. 96). A análise de Morawska somada à questão da autoridade desempenhada pelas pautas, apresentada no início deste subcapítulo, auxiliam na descrição de determinada amplificação do alcance das ações das lideranças indígenas possibilitadas pela ascensão ao cargo de coordenador da CCR Submédio por Uilton Tuxá.

Ao se tornar coordenador da CCR Submédio, Uilton passou a fazer parte da Diretoria Colegiada (DIREC), que compreende a Diretoria Executiva (DIREX), composta pelo Presidente, Vice-Presidente e Secretário do CBHSF, mais os coordenadores de cada uma das CCRs (Alto, Médio, Submédio e Baixo). A Diretoria Colegiada tem como duas de suas funções definir a composição das Câmaras Técnicas (CTs), no que se refere ao número de componentes, e determinar os temas que serão discutidos e votados nas Plenárias, única instância de caráter deliberativo do Comitê, nas quais têm direito a voto todos os membros titulares de todo o CBHSF (incluindo CTs, CCRs e outras subdivisões). Assim, ainda que a DIREC não tenha poder deliberativo para decidir os projetos que serão executados, o tem para colocá-los em pleito, a fim de saírem do papel e se tornarem obras concretas. Uilton aponta que, quando coordenador, muito do esforço despendido foi para resgatar projetos que já haviam sido aprovados pelas instâncias técnicas na gestão anterior, mas que foram deliberadamente negligenciados, no que se refere ao encaminhamento para a votação nas plenárias, em favor de outros projetos que beneficiavam determinados segmentos como, por exemplo, o da Indústria e Mineração e o da Irrigação e Uso Agropecuário. Essa denúncia corrobora a discussão apresentada a respeito das pautas das reuniões como estreitamente vinculadas à “dinâmica desigual das relações de autoridade” no Comitê, uma vez que essas pautas são, em última instância, fixadas por uma diretoria cujo cargo de coordenador de CCR outorga integrar.

Tomando o Comitê como imerso em emaranhados institucionais, no sentido utilizado por Moraswka (2014), posto que o órgão se associa, de diferentes modos, a diversas instituições – sejam essas estatais (Ministérios, CHESF, entre outros), sejam empresas parceiras (como é o caso da Entidade Delegatária AGB Peixe Vivo) e ONGs –, o cargo ocupado por Uilton como membro da DIREC, que demandava uma participação pautada pelos procedimentos técnico-

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burocráticos, permitiu que suas ações tivessem um maior alcance, no sentido de novas possibilidades para efetuá-las, decorrentes da posição hierárquica a que se alçou. Se como representante indígena na CCR Submédio se limitava a apresentar projetos que dificilmente seriam levados à votação em plenária, como coordenador suas ações se estendem à determinação dos projetos que serão votados, aumentando assim as possibilidades de que projetos relacionados às populações indígenas, ou mesmo projetos que vão ao encontro de suas políticas (que mantenham o Opará existindo), sejam executados. A adutora para o povo Pankará, já mencionada quando apresentei a liderança Cícera Pankará, é um exemplo concreto desse alcance das ações. Os laudos resultantes dos procedimentos técnico-científicos não apenas indicavam a viabilidade da obra, como a recomendavam por seus “benefícios socioambientais cientificamente comprovados”82. Todavia, o projeto, que estava engavetado desde o ano de 2010, teve seu encaminhamento retomado apenas no segundo ano da gestão de Uilton como coordenador da CCR Submédio, em 2014, culminando em sua aprovação e execução. Ainda que a entrega efetiva da adutora ao povo Pankará tenha se dado na gestão posterior à de Uilton, esse a contabiliza como uma das conquistas de sua gestão.

No entanto, Uilton destaca que a maior parte dos projetos que tentou retomar foram novamente barrados por representantes de outros segmentos atuantes no Comitê. A este respeito nos interessa os modos como foram empreendidas essa barragem: aqueles mesmos procedimentos que viabilizaram a execução da adutora Pankará foram também acionados para impedir outras obras que Uilton propôs retomar, os procedimentos a que me refiro são os técnico-científicos. Pesquisas de caráter técnico-científico foram extensivamente solicitadas aos setores técnicos do Comitê, as Câmaras Técnicas (CTs), a fim de inviabilizar os projetos que Uilton planejava colocar em votação para execução, as quais desqualificavam esses projetos por meio de variadas justificativas, como, por exemplo, a que constava em um dos laudos como sendo um 83“critério de ordem econômica”, que estabelecia o “reduzido benefício à sociedade proporcionalmente ao valor de custo da obra requerida”, ou ainda uma outra que apontava que o “reduzido impacto socioambiental não justifica a execução obra”. Essa avaliação de Uilton a respeito de suas ações como coordenador da CCR Submédio nos auxilia a retomar analiticamente uma das principais críticas das lideranças Tuxá voltadas ao modus operandi do Comitê.

82As expressões entre aspas são utilizadas nos laudos técnico-científicos que tive acesso na sede da CCR

Submédio, em Petrolina (PE).

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No tópico anterior (item 1.2.3), apresentei a crítica das lideranças Tuxá em que esses definem os procedimentos técnico-científicos como sendo uma das formas de fazer política dos brancos. Retomemos o conceito de ações políticas conforme formulado por essas lideranças indígenas, elas são políticas pelos efeitos que produzem, se os efeitos dos procedimentos técnico-científicos operantes no Comitê podem tanto ter o efeito de possibilitar a aprovação de um projeto, como é o caso da adutora do povo Pankará, quanto o de barrar as ações das lideranças, como em tantos outros casos, logo esses procedimentos técnico-científicos são eles mesmos ações políticas. Dessa forma, o discurso de um dos componentes da mesa principal na reunião, o diretor técnico da AGB Peixe Vivo, que ressaltava o Comitê como “apolítico” exatamente por funcionar via procedimentos técnico-científicos, não conflui com a formulação das lideranças a respeito dos mesmos procedimentos, para quem esses últimos são, não apenas políticos, como qualificam formas características dos próprios brancos de agir politicamente.

Porém, como já apresentado, determinada posição em um emaranhado institucional propicia, concomitantemente, a visibilização e a obliteração de certos aspectos dos órgãos envolvidos. Exercer o cargo de coordenador da CCR Submédio possibilitou a Uilton visualizar mais de perto o caminho percorrido pelos projetos dentro do órgão, o que resultou em um maior domínio dos processos técnico-burocráticos e um maior entendimento da importância dos procedimentos técnico-científicos no funcionamento do Comitê. Essa visibilidade de aspectos anteriormente obliterados impulsionou a formulação de outras ações pelas lideranças Tuxá, que terão importância central no argumento do Capítulo 2.

Porém, antes de passarmos a esse, proponho uma discussão acerca da relação que apoia o eixo argumentativo deste capítulo: entre Política e Ciência.