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3.1 Autodemarcação de Dzorobabé

3.1.1 Autodemarcação e retomada: alianças

Os 15 hectares da autodemarcação de Dzorobabé estão distantes de atender as demandas do povo Tuxá no tocante às áreas disponíveis para habitação e plantio. Todavia, para retratar mais adequadamente determinados aspectos do retorno Tuxá àquelas terras, é importante considerar duas informações: a primeira, a ser abordada mais adiante, é que as terras de Dzorobabé fazem parte da terras ancestrais desse povo indígena; a segunda, que abordarei agora, é que um dos objetivos deliberados da autodemarcação nessas terras é, como contam as 148Já apresentado no Capítulo 1, item 1.1.1.

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lideranças, pressionar os órgãos estatais a fim de garantir o cumprimento da decisão judicial que determina a demarcação territorial, diferentemente do ocorrido em 2014, quando a decisão foi negligenciada e revogada. Esse segundo ponto, nem de longe esgota os efeitos pretendidos pela autodemarcação, mas oferece um caminho possível para abordá-la evidenciando as ações efetuadas pelas lideranças, as quais acabam por sustentar posições de destaque nas relações de tensão entre povos indígenas e órgãos estatais em processos como esse.

Isso posto, nos interessa um trecho do Manifesto do Povo Tuxá Rodelas, documento publicado no mês seguinte ao assentamento em Dzorobabé, em outubro de 2017, como resposta aos ataques que estavam sofrendo por meio de redes sociais na internet em consequência do processo de autodemarcação, especialmente por parte de determinados indivíduos da região de Rodelas envolvidos com o agronegócio, que redigiram uma Nota de Repúdio contra o povo Tuxá em que a autodemarcação foi tratada como “invasão” (Figura 7).

o local da ocupação em questão, é configurado com Área de Proteção Ambiental Permanente – APP, como está prevista no Novo Código Florestal, dessa forma, não pode ser caracterizada como área produtiva, logo o Povo não está sobrepondo direito de ninguém (MANIFESTO DO POVO TUXÁ RODELAS, 2017).

Figura 8 – Mapa da Nota de Repúdio

Fonte: Durazzo, 2019.

A importância desse trecho do Manifesto para a análise proposta está no fato de que ele não deixa dúvidas que determinadas ações da autodemarcação do povo Tuxá foram formuladas lançando mão de saberes jurídicos, como, por exemplo, as referentes à escolha da área em que

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ela seria realizada. Neste ponto, é importante ressaltar que – conforme já apresentado no Capítulo 1 – Dinamam, a liderança Tuxá com formação acadêmica em Direito, considera a disciplina jurídica como pertencendo à Ciência (dos brancos). Inclusive, foi a partir de uma conversa com o próprio Dinamam que, como narra em sua etnografia, Durazzo (2019) propôs a seguinte definição:

Talvez a distinção entre retomada e autodemarcação seja sutil, ou mesmo inexistente. Mas a ênfase terminológica dá pistas sobre a compreensão nativa dos movimentos políticos em que se engaja. Seria possível, talvez, pensarmos em retomadas que efetivamente pretendessem retomar [...] um antigo território cuja experiência histórica torna vinculável aos povos contemporâneos. [...]. Ao mesmo tempo, poderíamos pensar em uma autodemarcação quando tal vínculo visa enfatizar, também, a responsabilidade e jurisprudência do Estado sobre a matéria, especialmente quando o reconhecimento de tais direitos não se mostra efetivado pelo poder público – sem prejuízo da ampliação de bases políticas de apoio (DURAZZO, 2019, p. 72, grifos do autor)

Para concluir mais à frente:

Autodemarcação, no contexto específico dos Tuxá em Dzorobabé, indica de partida uma ação política indígena na interface com a decisão judicial reforçando a tese do usufruto da terra. Dado não existir, até aquele momento, um trabalho institucional de demarcação pelo poder público, os Tuxá assim iniciaram os procedimentos, até como meio de pressionar Funai e União a responderem – positivamente – às determinação e sentença citadas acima [...] (DURAZZO, 2019, p. 82)

Sendo assim, ao ser efetuada “na interface com” o Estado por intermédio de saberes jurídicos, e tendo em vista que uma das lideranças consideram-nos uma Ciência dos brancos, é possível descrever a autodemarcação dos Tuxá como um processo efetuado no movimento de engajamento entre ações políticas indígenas e determinados códigos do conhecimento científicos dos brancos – como discutido no primeiro capítulo. Novamente, as lideranças estão formulando suas ações no registro das alianças e dos engajamentos e não no da exclusão, a fim de produzir deslocamentos através de mais essa barragem imposta pelos órgãos estatais, e também pelos interesses privados, como vimos no caso do recurso impetrado por empresários do agronegócio. Portanto, a autodemarcação de Dzorobabé nos interessa, também, analiticamente, como processo catalisador de algo que as lideranças produzem em seus escritos

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acadêmicos e na participação no Comitê: alianças entre o que caracterizam como ações políticas e códigos do conhecimento científicos dos brancos, uma vez que algumas das ações envolvidas nas autodemarcação demandam engajamentos com saberes e procedimentos que são próprios dos poderes estatais.

Contudo, não se deve buscar nesta discussão, ao menos na presente dissertação, qualquer proposição de separação ou, o que seria ainda mais imprudente, hierarquização entre os termos autodemarcação e retomada. O tempo de convívio com os Tuxá, na Aldeia Mãe e em Dzorobabé, me demonstrou como ambos os termos são utilizados nas mais diversas ocasiões e podem mesmo ser concebidos como intercambiáveis149. Portanto, se o termo autodemarcação recebe destaque analítico – evidenciado, inclusive, pela sua italicização gráfica – é porque esta etnografia focaliza as ações de determinadas lideranças que formulam os motivos de sua preferência pelo termo autodemarcação, ainda que, frequentemente, pronunciem “retomada”. Isso posto, essa preferência pelo termo autodemarcação informa questões importantes à análise quando postas em diálogo com outras noções e conceitos produzidos por essas mesmas lideranças. Ademais, como vem sendo descrito ao longo desta dissertação, operar uma separação epistemológica entre autodemarcação e retomada seria contradizer os modos de resistência efetuados pelas próprias lideranças, que não agem fixando barragens, mas produzindo alianças.

Dessa forma, nos interessam os engajamentos entre os termos autodemarcação e retomada. Todavia, como afirmam Alarcon (2013) e Molina (2017a, 2017b), cujas etnografias abordam os processos de retomadas entre os Tupinambá da Serra do Padeiro (BA) e os Munduruku da TI Sawré Muybu (PA), respectivamente, os movimentos produzidos “na interface com o Estado” constituem apenas uma parcela dos fatores que impulsionam processos de autodemarcações e retomadas, a qual não deve, porém, ser negligenciada – especialmente quando o foco analítico são as ações das lideranças, como é o caso desta dissertação –, mas conciliada à descrição de outros fatores, a fim de não compreender simploriamente (outra simplificação) essas ações indígenas como sendo exclusivamente uma reivindicação de direitos ou mera reatividade aos poderes estatais. Além do mais, assim como os Tuxá ao chegarem nas terras de Dzorobabé, é preciso cuidado e cautela, a fim de nos comprometermos no que se refere ao domínio político-epistemológico de descrever essa “interface” desde a perspectiva que interessa neste caso, a dos próprios Tuxá, ou ainda, das lideranças. Então, seguindo suas 149Durazzo (2019, p. 82) faz afirmação concordante, o que parece caracterizar que, mais que duas conclusões

consonantes, a intercambialidade entre os termos é mesmo um dado etnográfico do caso Tuxá do qual a análise deve partir e não a ela chegar.

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formulações, podemos afirmar que não é em relação ao conceito de retomada que o de autodemarcação deve ser colocado em tensão, mas ao conceito estatal de “demarcação”.

Logo de saída, salta aos olhos a diferença morfológica entre demarcação e autodemarcação, assinalada pela prefixação do segundo termo por meio da adição do morfema de origem grega auto-, cujo emprego, nesse caso, denota “aquilo que é próprio ou que funciona por si mesmo”. No entanto, é preciso se acautelar do equívoco quase sempre iminente de uma análise apressada que tenderia a fixar a diferença crucial entre os termos nos agentes que efetuam a ação, os povos indígenas nas autodemarcações e o Estado nas demarcações. Como Molina (2017), ao descrever alguns processos de autodemarcação de povos indígenas, adverte:

Não está no envolvimento político e técnico dos índios, portanto, a especificidade de uma autodemarcação. Em muitos outros processos de criação de TIs, é mesmo a partir de uma reivindicação indígena que o processo se inicia; em outros, há uma atuação também direta dos índios na identificação dos limites da área. Parecem-me poucos, senão inexistentes, casos em que a demarcação não se deu sem muita mobilização pelo pleno reconhecimento dos direitos territoriais indígenas. (MOLINA, 2017a, p. 2017).

Em resumo, os conceitos de autodemarcação e demarcação não devem ser colocados em tensão tomando como parâmetro de comparação os agentes, pois tanto povos indígenas quanto órgãos estatais sempre foram (e são) agentes nas experiências de ambos os tipos de processos de demarcação territorial – inclusive, como é o caso do próprio povo Tuxá, o processo de autodemarcação, muitas vezes, é o modo pelo qual os povos indígenas pressionam os órgãos estatais para que a demarcação seja executada legalmente. Mais importante, portanto, é realçar que as tensões entre povos indígenas e órgãos estatais nos processos demarcatórios ocorrem sempre imiscuídas em relações de força que são, já de partida, assimétricas, uma vez que, dentre todas as assimetrias assinaláveis nos encontros de povos indígenas com o Estado, estão os referentes aos procedimentos através dos quais são executados esses processos, que se fundamentam no regime de significação dos brancos (de novo, o fardo do Ocidente). Aliás, é partindo mesmo dessa assimetria no âmbito dos procedimentos que Molina (2017a) propõe o conceito, com origem na musicológica, de “dissonância de mão dupla” (p. 54) a fim de descrever as tensões entre os variados modos como os povos indígenas pensam e vivem suas terras e a forma fixada resultante da estabilização dessas mesmas terras por meio dos procedimentos jurídico-administrativos estatais, sob a sigla TI (Terra Indígena), tensões essas

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que, segundo a antropóloga, são irredutíveis, posto haver uma equivocidade que é incomensurável:

É nesse sentido, aliás, que vejo a autodemarcação como a produção de uma dissonância de mão dupla: pensando-a a partir do encontro entre perspectivas distintas relacionadas à terra e da adoção do aparato conceitual-procedimental-normativo estatal que faz a passagem de terras indígenas a TIs. O termo “autodemarcação” expressa uma curiosa conjugação: por um lado, sabemos bem – e os índios sabem melhor do que ninguém – que o modelo de TI (seus limites próprios e particularmente construídos, sua ingerência sobre a ocupação da terra, a política de gestão e administração a ela ligada etc.) é alienígena às formas indígenas de habitar e às dinâmicas dos grupos locais de relacionarem-se uns com os outros e com os demais Outros da região […] Por outro lado, uma terra propriamente indígena não é, por definição, uma terra qualquer – e o problema reside, justamente, na constituição de um entendimento sobre o que ela é: algo que o ordenamento jurídico tenta capturar com a noção de “ocupação tradicional” e com o arsenal de procedimentos administrativos, em muitos aspectos problemáticos. (MOLINA, 2017a, p. 73, grifos da autora)

Discussão que, inclusive, converge em diversos pontos com a proposta no Capítulo 2, a respeito da diferença entre os modos como as lideranças Tuxá pensam e vivem as terras e as águas da bacia e as simplificações que essas sofrem no âmbito do Comitê.

Desta maneira, sendo essa dimensão que é efetuada na interface com o Estado um fator presente em todos os casos de autodemarcação, e sendo as autodemarcações sempre realizadas em terras específicas (como é o caso de Dzorobabé que, como vimos, é parte da terra ancestral do povo Tuxá), pois uma terra indígena nunca é uma “terra qualquer”, no sentido que destaca Molina (2017a, p. 73), nos interessam, então, os modos particulares como os povos lidam com esse fator na experiência sempre singular, mesmo que compartilhe similaridades, de autodemarcação de suas terras: as práticas que mobilizam, sejam elas políticas e/ou cosmopolíticas, as ações que realizam, como povo e/ou por meio de suas lideranças, em suma, os modos de resistência que formulam e efetuam e os efeitos que almejam, ou seja, o que desejam retomar.

Dessa forma, como reiterado algumas vezes ao longo desta dissertação, sendo o recorte etnográfico as ações das lideranças Tuxá com quem realizo a pesquisa, seguirei o curso da análise a partir do que essas lideranças dizem a respeito da autodemarcação de Dzorobabé, escolha epistemológica que tecerá – ainda que evidente, é sempre prudente advertir – apenas uma das muitas possibilidades de descrição sobre o processo de autodemarcação do povo Tuxá.

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Isso posto, desde a perspectiva dessas lideranças, a autodemarcação de Dzorobabé está investida de um conceito – também prefixado pelo morfema auto- – fundamental tanto nas produções acadêmicas das lideranças (CRUZ, 2015, 2017a, 2017b; JESUS VIEIRA, 2017) quanto em suas falas proferidas nas mais diversas instâncias, a saber, o conceito de autonomia.