• Nenhum resultado encontrado

2.2. As terras e as águas: resistindo à simplificação

2.2.1. Plano de Recursos Hídricos

A primeira vez que ouvi o termo Plano de Recursos Hídricos (PRH) relacionado ao Comitê foi em uma das reuniões. Apesar de não ter sido uma das pautas preestabelecidas, o assunto ganhou força naquele encontro quando o membro representante do segmento dos quilombolas se manifestou em uma das falas dizendo que, mesmo com a atualização do Plano, as diretrizes das atividades realizadas pelo órgão não tinham sofrido modificações significativas no que dizia respeito aos povos tradicionais. Neste momento, por conseguinte, convém uma apresentação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.

Os Planos de Recursos Hídricos, instrumento regulamentado pelos artigos 6º, 7º e 8º da Lei 9.433/97 (Lei das Águas), “são planos diretores que visam a fundamentar e orientar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento dos recursos hídricos” (BRASIL, 1997), sendo elaborados especificamente para cada bacia hidrográfica. No Comitê, o PRH é o documento de base que tem por função orientar, através de um conjunto de deliberações, os projetos e atividades a serem desenvolvidas pelo órgão nos próximos dez anos, pois é elaborado sempre para um intervalo decenal, sendo o primeiro produzido para o período de 2004 a 2013, iniciado, portanto, três anos após a instituição do órgão (2001). Esse primeiro Plano (2004/2013), na fase de pesquisa e coleta de dados, diagnosticou o despejo de detritos provenientes dos municípios da calha114 como a atividade mais nociva às águas da bacia. Como resultado, a meta basilar prescrita pelo Plano 2004/2013 foi a elaboração e implementação dos Planos Municipais de Saneamento115, cujo objetivo fundamental era a instalação de redes de tratamento de efluentes domésticos e resíduos sólidos, assim como a oferta de água tratada aos habitantes dos municípios da bacia.

114 Calha é como são denominados os municípios situados às margens dos rios.

115 No âmbito do Comitê foram elaborados o Plano Municipal de Saneamento para 25 municípios. Mais

informações estão disponíveis em https://cbhsaofrancisco.org.br/acoes-e-projetos-do-cbhsf/planos-municipais-de- saneamento-basico-pmsbs/ Acesso em: 17/02/2020.

115

Concluído o decênio estipulado, em 2014 foi divulgada a abertura do processo licitatório internacional para a atualização do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Rio São Francisco, regulamentado pelo documento intitulado Ato Convocatório. Após receber as propostas de empresas especializadas na elaboração de PRH, uma foi escolhida vencedora da licitação, a portuguesa Nemus, com sede em Lisboa. A atualização do PRH contou com um investimento de 6,9 milhões de reais, oriundos através do mecanismo de arrecadação já apresentado, a Cobrança pelo Uso da Água, e teve como base de projeção o decênio 2016/2025. Sua elaboração levou aproximadamente 18 meses, de 2014 a 2016, e foi supervisionada pelo Grupo de Acompanhamento Técnico (GAT) e pela Câmara Técnica de Planos, Programas e Projetos (CTPPP), ambas seções de caráter técnico do Comitê.

A empresa Nemus ficou responsável por produzir a atualização do Plano de Recursos Hídricos 2016/2025116 em três etapas: a primeira previa a fase de coleta de dados, que abrangia as pesquisas de caráter técnico-científico nos territórios das quatro regiões da bacia (Alto, Médio, Submédio e Baixo); a segunda etapa seria a elaboração do diagnóstico do, naquele momento, estado atual de preservação da bacia baseado nos dados coletados na fase anterior, bem como a apresentação desse diagnóstico aos membros de todos os segmentos do Comitê; por fim, a terceira e última etapa seria a prescrição de projetos, atividades e ações a serem realizadas no órgão a partir das informações obtidas nas etapas anteriores, bem como a estruturação de uma base de dados informacionais sobre a bacia.

Conhecer as etapas da atualização do Plano de Recursos Hídricos é importante para compreender as ações das lideranças Tuxá que proponho apresentar porque algumas delas foram efetuadas em momentos específicos do processo de elaboração do Plano 2016/2025. Em vista disso, coloquemos foco em uma crítica tecida por Uilton direcionada a determinados procedimentos conduzidos durante a segunda etapa da atualização do PRH (elaboração e apresentação do diagnóstico da bacia), que diz respeito às atividades realizadas pelo próprio Comitê no intuito de ‘popularizar’ – termo utilizado pelo próprio Uilton – os temas debatidos em seu âmbito, especialmente as atividades colocadas em execução naquele momento da atualização do PRH.

A respeito das atividades que constituem as tentativas de ‘popularizar’ os temas do Comitê durante o processo de atualização do Plano 2016/2025, vejamos como o próprio órgão as apresentam em seus documentos oficiais:

116Doravante serão empregues os termos Plano 2016/2025 para tratar o Plano do referido decênio e PRH para

116

[...] foram realizadas 24 consultas públicas e 20 oficinas setoriais. As consultas e oficinas visam divulgar o plano e fortalecer os diagnósticos técnico-institucionais, além da participação social nos estados que compõem a Bacia do Velho Chico. A Diretoria Colegiada (DIREC) do CBHSF definiu o calendário de consultas públicas a serem desenvolvidas, para possibilitar a maior participação possível de pessoas e entidades no processo e o alcance nas quatro regiões fisiográficas da Bacia (Alto, Médio, Submédio e Baixo) (CBHSF, 2016a, p. 15).

Uilton, que naquela época era o coordenador da CCR Submédio, fez apontamentos a respeito dessas atividades, que abrangem consultas públicas e oficinas, em divergência com a maneira que os documentos oficiais produzidos pelo órgão as apresentam. Ele aponta que muitos dos problemas que as lideranças indígenas enfrentam no Comitê ocorrem em consequência de uma, cada vez mais visível, verticalização na estrutura organizacional do órgão, que seria ainda reflexo de outro processo, que indica como uma ‘elitização do Comitê’, resultante da hegemonia do discurso técnico-científico, sobre a qual vimos no capítulo anterior.

Isso posto, a importância dessa crítica que explicita uma ‘elitização’ do órgão decorrente do domínio do discurso técnico-científico está no fato de que ela corrobora um dado importante apresentado por Uilton, a saber, que as consultas públicas e as oficinas setoriais realizadas durante a segunda etapa do processo de atualização do Plano 2016/2025 não foram bem sucedidas enquanto tentativas de ampliar a participação popular. Esse insucesso se deu, como relata a lideranças Tuxá, não tanto por uma falta do esforço empreendido para que essa ampliação da participação se efetivasse, posto que houve empenho por parte de determinados membros do Comitê, inclusive o próprio Uilton como coordenador, mas por conta de um obstáculo de uma outra ordem de intransponibilidade, afixada nos próprios termos em que se dava a divulgação da agenda dos temas do Comitê. Em outras palavras, a predominância do caráter técnico-científico na divulgação dos dados às pessoas em geral não iniciadas nos assuntos, mas aparentemente interessadas em principiar uma participação, as afastava.

Mais que os dados em si, a própria forma reitera e reforça essa predominância: demasia de vocábulos provenientes de áreas técnicas extremamente específicas, gráficos nos mais variados formatos de difícil compreensão, abundância do emprego de termos jurídicos para apresentar o Comitê, as terras e as águas sempre tratadas como intangíveis números percentuais,

117

dentre outros modos de culto às sintaxes jurídico-legal e técnico-científica que se multiplicavam nas telas dos projetores. Conforme avalia Uilton, “isso só serve para tornar o tema do recurso hídrico mais restrito do que já é”. Assim, o resultado imediato desse fracasso no que diz respeito à ampliação da participação popular, naquele momento específico, foi a redução dos participantes nas discussões referentes à atualização do Plano 2016/2025 aos membros do próprio Comitê, a despeito da importância e do alcance que o PRH teria pelos próximos dez anos em todo o território da bacia.

Essa redução participativa que o predomínio do caráter técnico-científico nas discussões impõe, segundo Uilton, é prejudicial não apenas aos povos indígenas, mas aos próprios brancos dos municípios que compõem a bacia hidrográfica, especialmente os das classes mais pobres. Como ressaltou em uma de nossas conversas, seu esforço quando coordenador da CCR Submédio para “divulgar as atividades do Comitê, até mesmo para aumentar a concorrência na participação no órgão” era barrado, também, por esse caráter altamente “restritivo e elitista”. Uilton conta que, em sua maioria, as consultas públicas realizadas na segunda etapa do processo de atualização do Plano 2016/2025 em pouquíssimos aspectos se diferenciavam das intervenções realizadas pelas Câmaras Técnicas durante as reuniões do Comitê.

Como efeito, grande parte das pessoas que não atuavam em nenhuma instância ou mesmo desconheciam as atividades desenvolvidas em um comitê de bacia, por exemplo, mas interessadas quanto à possibilidade de participar desta etapa de consulta a respeito da atualização do Plano de Recursos Hídricos e que, conforme Uilton interpreta a situação, poderiam até apoiar as ações propostas pelas lideranças Tuxá, não conseguiam participar efetivamente das discussões pela impossibilidade de acessá-las apenas através dessa quase apática apresentação de dados que, para aqueles com praticamente nenhuma proximidade com os assuntos em questão, pouco, ou mesmo nada, diziam. Dessa forma, não podendo contar com o apoio efetivo dessa parcela de viventes da bacia com potencial real de cooperação, as lideranças precisaram formular suas ações de maneira exclusivamente intestina ao modus operandi do Comitê.

Isso posto, passemos à descrição dos modos como as lideranças Tuxá engajaram a concepção simplificada de Terra operante no Comitê (reduzida às matas ciliares) em suas ações no Plano 2016/2025.

118