• Nenhum resultado encontrado

2.1. Uma Barragem Simplificadora

2.1.1 A Terra simplificada

Para mais cuidadosamente descrever o processo de simplificação das terras operado no Comitê, torna-se interessante evocar um dos efeitos imediatos do episódio da história recente do povo Tuxá a que alude a imagem que inicia esta dissertação: a expulsão de suas terras pela 90Em diálogo direto ao recurso epistemológico-ortográfico utilizado no Capítulo 1 para tratar de Política e Ciência.

97

inundação consequente da construção da Barragem de Itaparica. Em favor do argumento que desenvolverei especificamente neste subcapítulo, o relevante nessa evocação serão menos os efeitos em si do deslocamento compulsório – que serão abordados mais detidamente no Capítulo 3 – do que os procedimentos a partir dos quais os Tuxá foram tratados pelos órgãos estatais envolvidos na construção da barragem, especialmente a CHESF, que naquele tempo, fins da década de 1980, constituia ainda uma empresa integralmente estatal.

Ao descrever esses procedimentos de tratamento, Felipe Tuxá relata uma “lógica homogeneizante que envolve a prática de reassentamento” (CRUZ, 2017a, p. 107), que se caracteriza pelo negligenciamento das diferenças entre os povos implicados nos casos de reassentamento91. Esse negligenciamento pode ser sublinhado em dois cenários que se entrelaçam: o primeiro se refere ao caráter documental dos processos de reassentamento, ou seja, à documentação produzida pelos órgãos estatais que deveria detalhá-los em seus pormenores. Em referência ao caso Tuxá, Felipe aponta:

Depois de muito procurar por esse material, deparei-me com uma narrativa que privilegiava o reassentamento dos agricultores atingidos e dos trâmites que envolveram seus sindicatos e outras entidades. As menções a um grupo indígena são mínimas, tampouco há um capítulo que se destine especificamente ao grupo. Parece-me que nessa bibliografia toda a história tuxá do meu povo se tornou realmente a história de 200 famílias dentre as 10.400 perdidas dentro da obscura categoria de atingido (CRUZ, 2017a, p. 25).

O segundo cenário diz respeito ao que documentos pretendiam – ou, ao menos, deveriam pretender – registrar, a saber, as práticas específicas de reassentamento, ou seja, os modos como são realizados concretamente a expropriação e o deslocamento compulsório para outras terras; retomemos o caso Tuxá. Conforme apresentado na Introdução, quando da construção da Barragem de Itaparica, cuja inauguração ocorreu em 1988, o povo Tuxá foi expulso da Ilha da Viúva e deslocado para onde hoje está situada a Aldeia Mãe, na nova cidade de Rodelas. Neste processo, como apresenta Felipe:

o projeto desenvolvimentista posto em prática pela CHESF, junto aos atingidos das margens do São Francisco, passou por diferentes configurações, ao mesmo tempo em que apresentou a tendência de solapar as especificidades dos sujeitos que estavam no lado mais fraco 91 Felipe apresenta diversos casos de reassentamento empreendidos pela própria CHESF quando da construção de

98

das negociações nos processos de deslocamento como um todo (CRUZ, 2017a, p. 105).

As especificidades das relações que compunham os modos de viver do povo Tuxá foram não apenas negligenciadas, mas solapadas, para utilizar o mesmo termo do Tuxá antropólogo. Desde a perspectiva dos órgãos estatais envolvidos, especialmente a CHESF, que conduziu as negociações, as terras, então inundadas, foram compreendidas como uma mera extensão territorial “sobre” a qual se (re)assentam pessoas. Assim, não apenas as particularidades dos povos reassentados são submersas em uma generalidade, mas há a simplificação extrema das diferentes terras, tal como as vivem os povos, em apenas uma Terra, uma superfície mensurável, convergente com uma noção jurídico-cartorial das terras, que podem então, uma vez reduzidas, se enquadrarem nas exigências indenizatórias demandadas pelas leis em casos de deslocamento compulsório, por terem sido tornadas um recurso contabilizável. Para que as terras possam ser medidas, cartorializadas e contabilizadas é imperativo que sejam simplificadas, que sejam reduzidas a uma Terra92.

Processo semelhante ocorre no Comitê, as terras são simplificadas a um pretenso denominador comum, sempre enunciado como algo totalmente estabilizado porque legitimado pelos procedimentos técnico-científicos. Todavia, como indicam as lideranças, esse denominador comum é bastante conveniente àqueles membros que já consomem as terras desta maneira, ou seja, como recurso contabilizável e estritamente direcionado a um tipo específico de produção, o econômico-mercadológico. Em outras palavras, a simplificação das terras em uma única Terra, tal como essa redução é operada no Comitê, favorece aqueles cuja relação com a Terra é executada no registro do consumo, em detrimento dos diversos povos do Opará cujas relações com as terras são compostas no registro do vital.

Ademais, durante as reuniões no Comitê, a Terra resultante dessa simplificação é sempre classificada como elemento que não deve estar presente nas discussões por ser ali uma instância responsável pelas questões relacionadas apenas às águas da bacia – como fica evidente na frase apresentada no início deste capítulo. Nas poucas discussões em ocasiões de reunião em que as terras da bacia foram enunciadas, essas eram sempre reduzidas a uma ocorrência muito particular – e aqui um ponto central ao argumento –, que fornece uma constituição material a essa concepção restrita de Terra tal como é simplificada no órgão, a saber, a mata ciliar. 92É possível encontrar essa simplificação das terras, a fim de que se tornem contabilizáveis, em pesquisas cujo

recorte temático está focado no processo de reassentamento involuntário (deslocamento compulsório) de povos, sejam eles rurais (REBOUÇAS, 2000) ou urbanos (CASTRO, 2016).

99

A Terra é enunciada como uma extensão territorial que contorna as águas, sendo a relação entre ambas também tornada contabilizável. Em outras palavras, a Terra, na forma como é tolerada e outorgada ser debatida no âmbito do Comitê, segundo a maioria dos membros e do próprio estatuto jurídico do órgão, se restringe à sua ocorrência particular como mata ciliar, uma superfície com dimensão definida cuja principal função seria manter as águas dos rios que compõem a bacia em condição utilizável para determinadas atividades. Um exemplo elucidativo dessa simplificação no Comitê foi a pauta de uma das reuniões referente às próprias matas ciliares. O conteúdo convocado para discuti-las estava sempre diretamente relacionado à atividade da agrimensura, cuja finalidade deveria ser garantir que não fossem ultrapassadas extensões que, segundo alguns membros do órgão, “não afetariam mais o rio”, para que as atividades produtivas – leia-se agropecuárias – não fossem afetadas, posto que essas não estariam no domínio competente ao órgão.

A fim de fortalecer a descrição analítica dessa redução das terras em Terra, operada no Comitê, recorro a uma proposta epistemológico-ortográfica formulada no campo antropológico, a saber, a que propõe uma desviante grafia para a descrição das, agora denominadas, T/terras. Essa proposta tem como objetivo evidenciar a polissemia do termo Terra, priorizando o método etnográfico para descrever “em que consistem as ‘terras’ que esses modos de ocupar e viver constituem” (COELHO DE SOUZA et al., 2017, p. 8). Contudo, não se trata de uma simples operação de adição, em que a somatória das diversas terras formariam uma Terra una que as engloba, mas de realizar um esforço de visibilizar as diversas T/terras e os modos como são ocupadas e vividas, para um fim que é declaradamente político: “a construção de uma interpretação antropológica que permita intervir no debate público recente em torno da noção de “terra tradicionalmente ocupada”, tal como consta no caput e no §1 do Artigo 231” (COELHO DE SOUZA et al., 2017, p. 8). Propondo um diálogo entre saberes provenientes do Direito e da Antropologia, a intenção é alargar a discussão a respeito do que pode(m) ser a(s) T/terra(s) para além daquela definida pela ordem político-jurídica nacional, e mesmo pela “nossa ontologia majoritária” (COELHO DE SOUZA et al., 2017, p. 13).

Um dos aspectos mais interessantes dessa proposta é a deliberada ruptura com a noção de Terra como recurso mensurável e contabilizável, mais do que viver na terra, vive-se a terra, e não apenas se produz nela. Nela, a terra extrapola sua concepção demasiado simplista como extensão sobre o globo terrestre (uma terra cartorial), ou ainda, como mero suporte (por exemplo, para a produção agropecuária) e se desloca tanto descendente quanto ascendentemente aos corpos que nela vivem, sejam humanos, não humanos, encantados,

100

plantas, pedras, entre outros. Em outras palavras, a proposta atravessa essa noção (superficial) da terra como superfície, expandindo-a em todas as direções, para dentro e para fora, incorporando os seres que vivem em todos os estratos que a compõem. No caso dos Tuxá, das raízes da mandioca e das plantas medicinais e da jurema ao pássaro de cabeça vermelha, o galo- de-campina, cujo cantar é inspiração para os cantos do Toré.

O esforço epistemológico – e portanto político – é inserir na discussão acerca da Terra, enquanto estabilização jurídica dominante que pauta a própria concepção de “terras tradicionalmente ocupadas”, as singularidades dos modos de ocupar e viver as terras, especialmente as referentes aos povos indígenas. Além disso, a proposta nos auxilia também a compreender o procedimento pelo qual as diversas terras, que emergem dos modos particulares como são vividas pelos diversos povos, são submergidas sob um conceito que se pretende universal e uníssono, ou seja, a replicação da univocidade estatal, ainda que em um âmbito reduzido como é o caso desta pesquisa. Pensemos, portanto, no próprio Comitê.

A Terra quando expressa, e consumida, como um recurso mensurável e, portanto, contabilizável, por meio de sua limitação à condição de mata ciliar, passa a ser o denominador comum do que é, ou pelo menos se torna imposto a ser, o conceito de Terra tal como é permitido o debate no âmbito do Comitê. A consequência perversa é que todo e qualquer debate em torno do tema é barrado tão logo surjam determinadas formulações de problemas cujos efeitos possam vir a tensioná-lo93. Desse modo, todas as demais terras, e os diversos modos de ocupar e viver que cada uma encarna, são simplificadas, reduzidas, apagadas, barradas, submergidas.

Todavia, não há motivos para crer que grande parte dos membros do Comitê efetivamente conceba de fato a Terra como limitada à sua forma de mata ciliar, basta tomarmos como exemplo os representantes dos segmentos de Indústria e Mineração, Irrigação e Uso Agropecuário e os Poderes Públicos (Municipais, Estaduais e Federal) para pressupor que esses agentes têm plena convicção que as terras que formam a bacia não se restringem às matas ciliares, o que torna evidente o ‘jogo de interesses’, como me disse Uilton, em torno dessa definição de Terra admissível no órgão. A determinada parte dos segmentos representados no Comitê (por exemplo os citados acima) é vantajoso, e mesmo necessário aos seus interesses, manter uma barragem que impeça toda discussão que mencione as terras utilizadas para fins de produção mercadológica, o que justifica o assentimento quase unânime à sentença proferida pelo membro da CT, que limitava a discussão das terras no órgão à mata ciliar (Terra). Sentença 93 “É preciso retomar o assunto proposto na pauta” foi a frase que apresentei como sintetizadora do modo como

101

que representa um exemplo evidente de como discussões com potencial de fomentar qualquer ameaça, por mínima que seja, a alguns tipos de empreendimentos, por exemplo, os latifúndios, são precipitadamente refutadas por meio de alguma fala (frequentemente com caráter de veredito) cuja legitimidade está sempre ancorada nos procedimentos técnico-científico do órgão, tão propagandeados por aqueles mesmos membros. Entre essas discussões está, notoriamente, a que trata da demarcação das terras indígenas.

A proposta, que estou caracterizando como epistemológico-ortográfica, interessa “enquanto estratégia tática que faz aparecer diferenças” (IUBEL, SOARES-PINTO, 2017, p. 8), o que conflui em pontos importantes com as ações efetuadas pelas lideranças Tuxá a fim de se fazer ouvir, como tratado no Capítulo 1. Ao empenhar-se em evidenciar diferenças, a proposta contribui para a descrição dos modos de resistência das lideranças ao processo de simplificação colocado em curso não apenas no Comitê, mas em diversas instâncias de poder. Ademais, sua predileção deliberada pelo método etnográfico reflete um assunto crucial às lideranças indígenas de uma forma geral e às Tuxá mais especificamente: o esforço para incorporar os diversos modos de ocupar e viver as terras nas discussões a respeito da Terra no âmbito das instâncias institucionais de poder. Esse esforço é essencial para compreender os engajamentos criados pelas lideranças Tuxá na efetuação da ação de solicitação da pesquisa realizada no âmbito do Comitê.

As terras, reduzidas à condição de mata ciliar, são simplificadas a uma Terra, excluindo- se de todo os modos como a ocupam e vivem os povos e as relações que compõem esses modos. Essa simplificação, no entanto, é empreendida, no âmbito do Comitê, concomitantemente a outra importante simplificação, a das águas. Assim, passemos à descrição de como as águas são simplificadas no Comitê.