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A consciência de Catarina espelha uma realidade em que a mulher é

O CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4. CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4.3 DO LORON NO FULAN AO HOMEM E À MULHER

4.3.2 UMA LUA FEMININA

4.3.2.2 A consciência de Catarina espelha uma realidade em que a mulher é

vulnerável ao homem. Em vários momentos, é percetível esta evidência que obriga a personagem a conviver ardilosamente com o homem - o detentor do poder. Desde logo, na procura por Malisera e na aceitação da sua proteção:

mostrou-me os esconderijos dos sublevados e o buraco onde se despediu da sua mãe, estendida numa laje de pedra, sacrificada para não ser apanhada viva. Antes de me devolver à procedência, fez-me a oferta de dois tais. Com um cobriu-se a ele próprio pela cintura e pediu-me que fizesse o mesmo com o outro” (Cardoso, 2007:68).

Aos olhos da cultura timorense o tais surge como entidade de ligação, uma oferenda

interpretada como um gesto simbólico de união entre doador e beneficiário, consumado de forma a ligá-los (cf. Barrkman, s.d.).

Lançando um olhar ao ritual de concubinato, também este fornece importantes pistas

sobre a posição de Catarina. A jovem chinesa torna-se, ciclicamente, a amante dos capitães do porto que lhe iam ofertando gatos como prenda inaugural. A aceitação permite a

Para completar a visão fornecida sobre a mulher, representada literariamente em Luís Cardoso, pode ser 113

interessante olhar o cenário na vizinha Indonésia. O romance de Pramoedya Ananta Toer intitulado This Earth of Mankind representa, entre outros tópicos, as relações entre o colonizador holandês e o colonizado indonésio. Sobre o tema em apreço, na tela de Pramoedya é dado a entender que as relações entre o homem estrangeiro e a mulher nativa possuíam contornos similares. Tratava-se sobretudo de relações de posse nas quais os holandeses adquiriam a sua concubina numa transação de valores concretizada com os pais da mulher comprada. A mulher passava a ser a “nyai” e deveria garantir a felicidade do seu comprador. As palavras da Nyai Ontosoroh, vendida pelo pai Sostromo, resumem a situação: “They had made me into a nyai like this. So I must become a nyai, a bought slave, a good nyai, the very best nyai. I studied everything possible that my master’s wants: cleanliness, Malay, making the bed, ordering the house, cooking European food (Pramoedya, 1990:88). A nyai descreve, ainda, o seu comprador como um portento (p.85-87) e a noite de núpcias foi bastante traumatizante: “I don’t know how long that mountain of flesh was with me. I fainted, Annelies. I didn’t know any longer what was happening” (idem:87).

obtenção de proteção e algum dinheiro. A cadência de gestos que configuram o processo é descrita sarcasticamente:

Primeiro oferecia-se um gato, depois perfumes, pedia-se licença para entrar pela casa adentro. Sentava-se no sofá, aceitava um café, também uma bolacha de água e sal. Olhava-se para as paredes, para o tecto e depois, como quem não quer a coisa, fazia-se uma vistoria aos compartimentos, ao quarto onde se dormia, também à cama, ao colchão. Enfiava-se pelos lençóis adentro, pedia mais uma almofada, uma fronha, antes de ocupar a cama toda, a casa inteira. Depois, pedia para lhe fazer a barba, aparar a unha, deixava lá esquecido um lenço onde embrulhara umas patacas. No fim ia-se embora, nunca dizia quando voltava. A surpresa era a alma da parceria (Cardoso, 2007:134).

Apesar de Catarina recusar aceitar ter sido nona de alguém, as relações valer-lhe-iam o epíteto. Relativamente à infidelidade, os homens passam relativamente incólumes mas as mulheres são rotuladas. Catarina passa a ser a nona, que “em língua malaia significa senhora. Uma forma muito peculiar de dar o dito por não dito. Embora toda a gente soubesse qual a conotação exacta. Era a mulher que ficava no cais a abanar o leque à espera do seguinte” (idem:46). Teresa Cunha destaca precisamente a diferença entre géneros no saldo de conflitos:

após o conflito bélico, as mulheres, que foram combatentes, as que foram violadas ou escravas sexuais, as que tiveram filhas e filhos do inimigo e as que ficaram viúvas, são dificilmente reconhecidas e inseridas na sociedade que emerge. As categorias válidas para o quadro patriarcal dominante são as de virgem, esposa, filha e mãe; estas outras condições sociais, decorrentes da guerra, fazem as mulheres encararem outros ostracismos e um acesso diminuído aos recursos por criação de novas invisibilidades (Cunha, 2006:49).

A evolução de nona para bombela serve como exemplo da situação anterior, e é

especialmente interessante, pois permite inferir que o povo cria uma nova categoria para as amantes dos oficiais japoneses. O estigma por ter sido bombela é penoso, e é-nos dado a conhecer na voz da personagem feminina, Isadora: “Ter sido conotada como a mulher de conforto de um oficial japonês durante a ocupação era um constrangimento muito grande para o resto da sua vida” (Cardoso, 2013:38).

A própria Isadora, numa baliza temporal posterior, sofreria com a ausência do marido.

Ambas as personagens padecem do desmoronamento familiar criado pela ausência masculina. Cunha escreve: “a família, fundada sob a autoridade e a proteção do “pai”, deixa de estar constituída “normalmente”. É na ausência dos “homens-macho” da casa que outros “homens-macho” se permitem entrar, agredir e abusar das mulheres e reduzir a restante família a um alvo ou troféu de guerra” (2006:49).

A ausência do locutor da rádio, obrigado a fugir para ai-laran - locais de sublevação e

reorganização timorense - permite a entrada de Sakunar que ocupa o lugar do marido de Isadora pela força. É com recurso à violência, psicológica e física, que António Sakunar se apodera de Isadora. A obsessão contamina a personagem. Movido pelo ódio, espera castigar duas Isadoras: a do presente e, sobretudo, a Isadora do passado que preferia os

bainós, conforme se lê na passagem: “vingando-se assim dela, não desta de quem tinha

duas filhas, mas da outra que fora a bailarina de Bidau. A Isadora que todos os rapazes disputavam nos bailes para lhe pedir a última dança (Cardoso:2013:199).

A avó Aurora é uma personagem que funciona como anciã. Aurora surge como uma

personificação dos costumes nativos e da saudade dos tempos do rain-diak (período de paz), oriundos da última governação portuguesa do território e, também, como uma personagem preponderante no continuum temporal. Isto é, como participante num processo no qual

la actividad del individuo, tanto en sus manifestaciones y sus intervalos más “profanos”, estaba orientada continuamente hacia una realidad transhumana. Se intentaba llevar a cabo una reintegración del hombre en la realidad absoluta, por lo general experimentada intuitivamente como una “totalidad”: la vida universal, el cosmos. Por ello, cada gesto humano poseía, además de su eficacia intrínseca, un sentido “simbólico” que le transfiguraba. Por ejemplo, caminar o alimentarse, gestos tan poco significativos, tan cotidianos, eran - y todavía lo son en algunas culturas asiáticas - un “ritual”, es decir, un esfuerzo de integración en una realidad supraindividual, suprabiológica (Eliade, 2002:64).

Estes gestos simples mas com força de rituais são, em relação à personagem, visíveis

em duas situações. Primeiro, na manutenção do retrato num baú de sândalo, ou seja, o retrato tornar-se-á parte da memória coletiva familiar e será considerado um prezado artefato e um símbolo das gerações anteriores. Na segunda situação, a avó tenta manter viva a presença do major. Fá-lo através da transformação da sua própria memória e da sua saudade numa figura animal: um galo vivo que é mantido debaixo da cama e possui algumas características do avô. Para a avó, o galo representa a alma do seu cônjuge. Esta situação, para além de dar a conhecer a renitência da avó em aceitar o falecimento do major, transmite a ideia de que a memória pode sobreviver à morte. Os comportamentos aqui descritos intersetam os esquemas cíclicos da cosmogonia timorense nos quais os anciões devem conduzir um determinado ciclo ao seu final e, paralelamente, permitir a sua renovação, sempre em continuidade com os ciclos anteriores. Assim, note-se que a personagem Aurora cumpre o seu papel social quando seleciona objetos e memórias para a

história da família e da tribo e, também, quando tenta assegurar a sua reunião com o major de modo a encerrar de forma satisfatória a vida de ambos.

No que é atinente à relação entre homem e mulher, o pensamento da avó revela-se

bastante tradicional. Se não, leia-se a sua postura face ao seu casamento: “Arranjou outras esposas. Eu sou a primeira. As outras são secundárias. Com o devido respeito” (idem:133). O que encontra eco em Figueiredo: “entre a poligamia e o concubinato nem sempre se situava uma fronteira muito definida. De facto, em vez de verdadeiras mulheres, muitos homens tinham "teúdas" e "manteúdas", vivendo sob o mesmo tecto da mulher legítima, com o seu consentimento e a ela subordinadas” (2004:86). A experiência de vida de Aurora e a sua forma de ver o mundo, impedem-na de aceitar a relação de Isadora com Sakunar:

condenava-a por se ter metido com António Sakunar, cuja figura abominava. (…) Dizia que se a tia Isadora se foi meter debaixo do Sakunar sabia o que a esperava. (…) Devia ter permanecido sozinha quando o marido foi embora para ai-laran. Foi o que fez. Por o major se ter ausentado para tasi-balu não foi à procura de proteção de outro homem (Cardoso, 2013:126).