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No que é atinente ao primeiro tópico, por vezes, a intrusão do narrador

O CALEIDOSCÓPIO

3.5 A VEROSIMILHANÇA CALEIDOSCÓPICA

3.5.3 No que é atinente ao primeiro tópico, por vezes, a intrusão do narrador

espelha uma determinada ideologia (cf. Reis; Lopes, 2011:209). Leiam-se, neste sentido, as críticas recorrentes ao colonialismo: “Foram todos para o ultramar levados, levados sim pela histérica gritaria «Angola é Nossa» e olha o que aconteceu se tivessem cantado menos e fizessem as coisas de outra forma” (Cardoso, 2003:79). As palavras apontadas ao martírio e às mentiras causadas pela Indonésia: “Entre Bali e Balibó , mais do que uma 73

sílaba que separa os nomes das localidades, medeia uma distância que diferencia a verdade da mentira que transformou aquela meia ilha numa casa de horrores” (Cardoso, 2013:95). E também a questão linguística: “padre Santa exigia que me fosse ensinado o Latim (…), padre Santa sabia muito bem que era uma língua morta que ninguém falava, talvez servisse para língua oficial de uma república dos fantasmas” (Cardoso, 2001:130). Esta passagem parece criticar a política de língua de Timor-Leste . Noutros momentos, é 74

demonstrada uma benevolência afetiva para com uma dada figura, neste caso, a personagem de Lucas: “nem sempre um bom coração protege um bom homem” (Cardoso, 2003:209).

No entanto, a eventual dificuldade de interpretação prende-se, num primeiro plano, com o facto de o relato ficcional criar uma teia de múltiplos retratos, por vezes contraditórios mas seguramente complementares. Cabe ao leitor a organização da exigente manta fragmentada de críticas avulsas. A análise de maior fôlego, destinada às personagens está reservada para o quarto capítulo. No entanto, como exemplo da catadupa de imagens, atente-se ao romance APCC. À passagem da vigésima quinta página, a sandália permite conhecer o pensamento de Amadeu sobre os colegas: “Queriam saber por que razão trocou

Bali é uma das muitas ilhas da Indonésia e caracteriza-se pela forte afluência turística. Balibó é uma cidade 73

fronteiriça de Timor-Leste. Nesta última cidade, foram assassinados cinco jornalistas australianos, pelas forças indonésias, a 16 de outubro de 1975 (o filme Balibo, dirigido por Robert Connoly, retrata, através da sétima arte, o episódio enfocado). É de crer que a crítica de Cardoso se refira à manipulação indonésia da Declaração de Balibó. Aquando da proclamação unilateral da independência de Timor-Leste pela FRETILIN, os restantes partidos democráticos terão reagido e assinado a Declaração de Balibó onde se assumiu a integração de Timor- Leste na Indonésia. Contudo, sabe-se que o documento foi coligido pelos serviços de inteligência indonésios e foi assinado em Bali.

Os argumentos permitem estender-se a situações idênticas. No primeiro caso, pode ler-se uma crítica a todo o 74

processo de colonização promovido pelas superpotências europeias. Na última situação, é permitido estabelecer um paralelismo entre a situação atual do latim e aquela que poderá ser a presença da língua portuguesa em Timor.

o galo de Manumera por um urso de peluche. Provavelmente, por se ter passado para o outro lado, o das mulheres cheias de enfeites, de rendas e de malinhas de mão” (p.25). O recorte anterior permite entender Amadeu como um integracionista. No seguimento do segmento destacado, a sandália esquerda caracteriza outros integracionistas timorenses como adulteradores das linhagens tradicionais nativas e usufruidores de viagens e regalias (p.25-26). Posteriormente, a narrativa faz saber que os integracionistas, apesar da sua vontade de anexação, pretendem colher o melhor de dois mundos ao tentarem garantir rendimentos de Portugal: “Dava-lhe uma grande ajuda que tivesse um malae, uma malae (corrigiu com uma vénia) na família que desse andamento ao processo (…) O bupati apressou-se a convidá-los para sua casa. Tencionava aproveitar a oportunidade para convencer o sacristão Pigafetta a tratar da pensão do pai” (p.163). Ao estender o desvio de carácter a uma parte da população, cria-se uma diluição da culpa e, porventura, uma certa desculpabilização de Amadeu que surge como mais uma pequena peça de uma máquina maior. Sobre o tópico da culpa, relembrem-se as palavras da própria Isadora e que são extensíveis a todas as personagens: “Aqui somos todos uns náufragos que fazemos tudo para continuar à tona da água” (p.103).

A observação anterior é um traço vincado na representação cardosiana. A configuração das personagens, nas narrativas do escritor timorense, é dada a conhecer por uma polifonia complementar de vozes . Ao entrelaçar, de forma tão rica, uma panóplia de 75

opiniões, o romance tende a oferecer um mosaico de auto-imagens e hetero-imagens complementares. As diferentes imagens permitem que o leitor varie a sua opinião, em relação a determinado aspeto ou personagem, de uma maneira mais vívida, como se a obra possuísse a energia do relato oral, e das narrativas orais timorenses que intersetam várias vozes dentro de uma só história mas de forma dinâmica. Ao intervalar diferentes juízos de valor e as culpas que as personagens atiram entre si, é permitida a emergência de um tribunal literário ao qual apenas o leitor pode presidir, na medida em que apenas ele possui acesso a todos os elementos, a todas as subjetivações das personagens, para se posicionar criticamente.

Os romances de Cardoso retratam personagens de diversos estratos sociais e diferentes géneros, idades, 75

crenças e ideologias. As narrativas convocam um leque de personagens tão variado que, quando colocadas em ação e em oposição umas às outras, permitem vislumbrar diferentes pontos de vista sobre um dado assunto, evento ou personagem. Lucas Santiago e Sakunar são figuras representativas deste aspeto. Ambas as figuras possuem um denso trajeto de vida e uma sequência de ações que obrigam o leitor a atualizar, ao longo da narrativa, a imagem que possui das personagens. Note-se que as narrativas de Cardoso tendem a colocar as personagens em diferentes papéis sociais, em diferentes cenários e em diferentes tempos. Face a esta situação, é natural que as ações das personagens se alterem no percurso narrativo.

Por fim, um outro apontamento que pode adensar a dificuldade de interpretação, prende-se com o facto de as configurações das personagens serem mais facilmente inteligíveis quando o leitor possui um bom conhecimento sobre a sociedade timorense e sobre a História de Timor. Note-se que grande parte das ações e dos cenários que compõem a narrativa se circunscrevem ao país do sol nascente.