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A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE EM LUÍS CARDOSO

O CALEIDOSCÓPIO

3.2 A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE EM LUÍS CARDOSO

3.2.1 A literatura, oral ou escrita, requer como matéria-prima a palavra. Sendo a

palavra uma materialização interpretativa do próprio mundo, é de relembrar a conclusão de Phillipe Hamon: “nunca é, na verdade, o ‘real’ que se atinge num texto, mas sim uma racionalização, uma textualização do real, uma reconstrução a posteriori” (1984: 139-140). A tese comporta a ideia de que o mundo não é totalmente representável pela linguagem. A assunção de tal princípio obriga a reflectir sobre as interligações entre a Literatura e o Mundo.

Com efeito, estabelecer as relações entre texto e realidade é o enigma da mimesis

que, ora se traduz a partir de Aristoteles por imitação, ora por representação. A ambivalência do conceito obriga a uma reflexão sobre a relação entre texto/referente. Isto é, as respostas em torno da relação evocada, tanto oscilam entre a crença na necessidade absoluta de a literatura se manter fiel ao mundo, imitando-o, ou, por outro lado, admite-se uma autonomia da literatura face ao mundo, o que salvaguardaria a sua auto- referencialidade (cf. Costa, 2005:307).

O desejo pela cópia fiel do mundo exterior é especialmente visível nas correntes

literárias do Realismo, e do Naturalismo, que permitiam um enfoque maior no referente, ou seja, favorecia-se o estreitamento da relação literatura-vida, cabendo à literatura espelhar fielmente o mundo . Ao serviço das estéticas referidas, os processos discursivos deveriam 53

simular o universo em que o leitor vivia e iludi-lo com um efeito de realidade. Estratégias recorrentes, para textualizar o mundo, passavam pela descrição minuciosa, pela evocação

Todorov observa que “pour les écrivains du XVIIIe et du XIXe siècle, comme pour leurs lecteurs, le réalisme en 53

littérature est un idéal: celui de la représentation fidèle du réel, celui du discours véridique qui n’est pas un discours comme les autres. Pour les théoriciens de la littérature de la seconde moitié du XXe siècle, le réalisme est un style littéraire ni plus ni moins valorisé qu’un autre, mais dont une des caractéristiques est un peu particulière: en lisant les œuvres réalistes, le lecteur doit avoir l’impression qu’il a affaire à un discours sans autre règle que celle de nous mettre en contact immédiat avec le monde tel qu’il est” (apud Barthes et al., 1982:7).

da vida real contemporânea, pelo estudo de seres autênticos e transposição da sua densidade psicológica para a trama, pela inserção de personagens num ambiente espácio- temporal localizável e pelo tecimento da narrativa através de um relato objetivo.

A aproximação ao mundo da experiência sem distorção, isto é, fazendo valer o

manifesto sobre o Realismo do crítico francês Fernand Desnoyers “I demand for painting and literature the same rights as mirrors have” (Potolsky, 2006:98) é também perspetivada em vários momentos da obra de Cardoso, desde as ações mundanas das personagens aos cenários nos quais se movimentam. Se não, leia-se como é descrita a vulgar microlete de 54

Díli:

Mas quem dava mais nas vistas eram as pequenas carrinhas que faziam o transporte sem matrículas, identificavam-se com as inscrições estampadas nas caixilharias em letras gordas e fosforescentes, os nomes eram tão excêntricos quanto retirados dos filmes, uma miscelânea de Bolliwood com Hollywood: Always, Macho 2000, Três Irmãos, Sete Irmãos, Stallone III, Sensasi, Renegado, Arjuna, Leo Atsabe, Speed Driver, Kenwood, tudo muito camuflado com os vidros escurecidos, heranças de uma época funesta. Atravessavam de um lado ao outro da cidade, sempre abarrotados, como uma colmeia de abelhas, os passageiros pendurados nas paredes laterais, os mais corajosos sentavam-se em cima dos tejadilhos (Cardoso, 2003:205).

3.2.2 Os mundos ficcionados por Cardoso encontram-se perto da mais imediata

realidade, do mundo que não é concebido como fictício. Contudo, a diegese cardosiana caracteriza-se pela presença de: i) narradores intrusos que criam, por vezes, um efeito de distanciamento entre o leitor e a obra; ii) um exagero da intertextualidade como porta para fora do universo que o próprio romance encerra; iii) seres oníricos como a Pontiana ou o

dur-hui, ou mesmo fenómenos fantásticos como o rain-fila - todos eles oriundos do universo

mitológico timorense - que são depois mesclados no mundo representado.

Ante o observado, Cardoso desvincula-se da representação fiel e redutora da realidade

para ampliar as hipóteses de encenação do mundo da experiência. Discutir-se-á, posteriormente, os significados inerentes a tal fenómeno, e como este poderá personificar um efeito de verosimilhança. Por agora, avalia-se a forma como o surgimento de elementos fantásticos ou aparentemente inexplicáveis influencia a tipificação do romance. Carlos Ceia, n‘A Construção do Romance (2007:26-39), constrói a tese de que o ficcionismo é um conceito de tal forma amplo que inclui a representação-encenação mais próxima do mundo

Designação das carrinhas de transporte privadas cuja identificação comum é o número da carreira e, mais 54

da experiência e, também, a representação “phantástica” . A partir da obra referida 55

convocam-se duas ideias: i) a representação do real através de processos fantásticos não implica uma perda de sentido (idem:34); ii) a fusão entre o realismo e a magia é a fórmula ficcional que permite contornar a crise de representação, pois “o real também se representa pelo sonho, pela força magnética do universo, pelo privilégio de podermos corrigir phantasticamente o mundo” (ibidem:39) . 56

Assim, a opção literária de Cardoso não prejudica a representação da realidade.

Adensar o elemento fantástico permite, tanto a auto-reflexividade própria da literatura, como a exploração do universo da experiência através de perspetivas tão válidas quanto as que buscam um retrato fiel da realidade. Leia-se Ceia a este respeito:

o ficcionismo deste tipo de livro nasce quando a realidade é ficcionada para mostrar que o seu lado mais autêntico pode ver-se de todos os ângulos menos daquele que está mais perto de nós. (…) Podemos ver melhor o mundo real se formos capazes de imaginar o seu apocalipse. A redenção do real faz-se pela compreensão dos efeitos mágicos que sobre ele conseguimos executar. O que vivemos é que é maravilhoso, mas é-o porque nos distanciámos de tudo (Ceia, 2007:36-37).

A presença de elementos oníricos não deve aproximar a narrativa de Cardoso da

ficção fantástica. Ceia (cf. 2007:36) refere que, na ficção destacada, a simulação de autenticidade do real não tem valor prático porque todos os cenários são aceites como irreais. Ao invés, no caso de Cardoso, estamos ante a representação de ambientes próximos da realidade com uma amena contaminação fantástica. Em todo o caso, independentemente do grau de ficcionalidade, Cardoso assegura a relação dialéctica entre representante e representado, na qual o primeiro “constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, no plano da expressão artística, se afirme como substituto do segundo que, entretanto, continua ausente” (cf. Reis; Lopes, 2011:355).

Ceia avançará para a discussão sobre o realismo mágico. Em relação a Cardoso, é imperativo ler a crítica de 55

Agualusa, já citada na introdução, e que se mantém bastante atual: “Pode parecer, assim, a quem leia este livro, que Luís Cardoso se filia na escola latino-americana do chamado realismo mágico. (…) No entanto, mais do que ser contaminado por propostas literárias oriundas de outros espaços, o que aconteceu a este primeiro romancista de Timor foi nunca se ter deixado vencer pelo exílio. Luís Cardoso escreve como escreve, porque continua habitado por Timor, e no seu país são indefinidas as fronteiras entre mito e realidade, estória e História, entre o sonho e a vida” (Cardoso, 1999:10).

Esta ideia é desenvolvida e partilhada por Buescu (2013:10) que cita Seamus Heanyer: “O objectivo da arte, 56

da poesia, é, de alguma forma, reparar o que está danificado. Se tudo fosse reparado, a arte estaria acabada - mas isso é impossível”. Ao propor a possibilidade de correcção “phantástica”, Ceia aproxima-se de Buescu que prefere a ideia de invenção, isto é, a possibilidade de criação virtual de um mundo potencialmente ilimitado (cf. 2013:11) e, por conseguinte, uma possibilidade de “correção” do mundo igualmente infinita.

Compreender a coerência das pistas requer um olhar aproximativo à construção

narrativa e suas principais categorias. Primeiramente, para inteirar o leitor das escolhas literárias de Cardoso, opta-se pela análise de elementos preponderantes como o tempo, o espaço e as personagens. Posteriormente, abordar-se-ão aspetos específicos da narrativa que possuem um poder anti-mimético e que podem gerar desconfiança no leitor. 57