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No conjunto dos quatro romances postos em análise é percetível, em Luís

O CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4. CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4.3 DO LORON NO FULAN AO HOMEM E À MULHER

4.3.3 UM SOL MASCULINO

4.3.3.1 No conjunto dos quatro romances postos em análise é percetível, em Luís

potencialmente representativo da renovação do papel da mulher timorense - é explícito na desobediência à família, no auxílio a Pigafetta, na descoberta e no confronto com o “clandestino”, na irreverência que a faz rapar o cabelo e apreciar a “música do seu tempo”, no “basta” lançado ao pai que agredia fisicamente a mãe, na contribuição para o fecho narrativo que traz a morte apaziguada da avó e, de certa forma, permite que o conjunto destes acontecimentos criem a hipótese de recuperação de uma estabilidade idílica.

4.3.3 UM SOL MASCULINO

4.3.3.1 No conjunto dos quatro romances postos em análise é percetível, em Luís

Cardoso, a predileção pelo tratamento do universo feminino. Este apontamento é visível na escolha de três vozes femininas como narradoras: Catarina, Beatriz e a sandália esquerda. No rol de narradores surge, como possível exceção aos romances em análise, UMCS, onde a voz que narra concede maior atenção a Lucas Santiago. A personagem pode representar o

alter ego de Cardoso e é a personagem masculina mais densa de entre todas as que

emergem no universo romanesco do escritor timorense.

De facto, da lista de nomes masculinos que engrossam a fileira das personagens

masculinas, podemos ler as personagens como uma representação algo colectiva dos comportamentos dos homens ao longo das últimas décadas da história timorense. Assim, a narrativa desvenda atitudes que demonstram ora o alinhamento com os centros de poder, ora as lutas paralelas a favor das forças emergentes que desafiam a estabilidade vigente.

Enfocando a feição combativa que é transversal à condição masculina, respeita-se a

ordem cronológica de edição, e atende-se à personagem do pai de Beatriz cuja luta visa evitar um derrame de sangue. Singularmente privada de nome próprio, esta personagem tem como dupla caracterização os termos ‘velho’ e ‘catequista’. Ambas as palavras conferem dupla autoridade: primeiramente pela idade, aspeto respeitado em Timor-Leste e, segundamente, pela profissão ligada à fé cristã. Relembre-se que cristãos e pagãos se debruçavam para lhe beijar a mão. É de notar, contudo, que a fé em Cristo só teve maior sucesso aquando da invasão indonésia. Como razões para adoção do catolicismo, Pedro Rosa Mendes revela que

uma delas prende-se com uma questão política. A Indonésia exigia a identidade religiosa no cartão de identidade. Uma segunda razão era o Catolicismo aparecer então ao timorense, fundamentalmente, como afirmação, até mais como identidade (…) A terceira razão é do ponto de vista sócio-político- eclesial, digamos. A Igreja a partir de 1978, era a única entidade que tinha força para fazer frente à Indonésia (Rosa Mendes, 2004:36).

Se o catolicismo “enraizado” é ulterior ao tempo da narrativa de Olhos de Coruja olhos

de Gato Bravo, este pormenor serve, sobretudo, para deslindar uma certa afinidade da

personagem com a esfera da colonização portuguesa que professa a religião católica . 114

Contudo, este posicionamento relativamente estável será desafiado pelo nascimento de Beatriz. O nascimento da filha é o momento de catarse: no que diz respeito à religião, o neófito oscilará entre as crenças miscigenadas e a fé dada a conhecer pela conversão cristã; no que tem que ver com a teia política e social, a personagem deambulará entre as malhas das influências coloniais e nativas.

Estas movimentações são evidentes. No início da narrativa, o Velho Catequista

corresponde à imagem prototípica de pater familias, e é tido como o senhor das decisões, aquele que faz o destino dos filhos ao enviá-los para o colégio e que não necessita de se justificar ante a mulher. Metaforicamente é o portador do petromax - o candeeiro que lhe permite lançar luz sobre a escuridão . A luz do candeeiro, por contiguidade, pode 115

representar a luta do conhecimento contra o obscurantismo - ideia personificada na relação entre as personagens do Catequista e de Pantaleão. O ascendente do padrinho sobre o sobrinho é provado quando o último beija a mão do Catequista logo na sua primeira aparição.

A progressão narrativa dá conta das fragilidades do Catequista em todos os seus

papéis sociais e, a espaços, a aura de poder vai abandonando o pai de Beatriz. Num primeiro momento, o Catequista detém o petromax e a estrutura mental necessária para guiar o seu afilhado nas cambiantes de nome Manumeta-Manumean e, também, para o

A posição do Catequista é, segundo Anthony Soares (2009:90-92), representativa da sua atitude 114

conciliadora entre comunidades: “As well as his ability to inhabit and adhere to the Portuguese colonial regime and its values in his role as a catechist (…) whilst simultaneously recognizing traditional Timorese and Chinese beliefs, Beatriz’s father also personifies the attempt to reconcile two communities with past enmities”. O mesmo argumento é ampliado ao casamento do Velho Catequista com Beatriz (mãe). O ritual pretendia sanar os antigos conflitos entre as diferentes fações: “As her father was from Manumasin, whose inhabitants had fought on the side of the Portuguese against the rebellious inhabitants of Manumera — her mother’s birthplace — the marriage of Beatriz’s parents was meant to heal the wounds left by this past conflict” (idem).

Domingos de Sousa reconhece um determinado estatuto ao objeto: “Era considerado um luxo ter um 115

petromax. O preço era tão alto como as estrelas que Maussuko contemplava no céu azul do Ilimanu. E quando se acendia o petromax, até a própria natureza se espantava, tal a estranheza deste objecto luzente” (2006:13).

acompanhar na busca da sua família perdida. Posteriormente, a situação altera-se e o velho é afectado pelo fenómeno de rain-fila - um desnorte espacial e temporal que lhe tolda o caminho e o discernimento. Gradualmente, o leitor vai percebendo que os filhos do Catequista lhe desobedecem e não cumprirão as expectativas que o pai tinha para eles. Sincronicamente, torna-se evidente que o Catequista é subalterno de Dona Beatriz nas decisões que a velha rainha possa vir a tomar. Relembre-se que, no anúncio do nascimento da neta, é a velha rainha quem toma a palavra do pai. A teia de influências do Catequista enfraquecerá de tal forma, que este acabará por perder o seu espaço, e após o sumiço do Padre Santa com Beatriz, o Velho Catequista rumará para a cidade indonésia de Kupang que pertence ao Timor Oriental, atual Indonésia. Quando o Velho Catequista regressa a Timor com novas intenções políticas, já a situação no país estava de tal maneira mudada que Pantaleão pôde matar o padrinho impunemente . 116