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Em Requiem para o Navegador Solitário, é dada a conhecer a história de

O CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4. CALEIDOSCÓPIO EM ROTAÇÃO: O UNIVERSO NATIVO TIMORENSE E O UNIVERSO LITERÁRIO DE CARDOSO

4.3 DO LORON NO FULAN AO HOMEM E À MULHER

4.3.2 UMA LUA FEMININA

4.3.2.1 Em Requiem para o Navegador Solitário, é dada a conhecer a história de

como o evangelista para perpetuar o bom nome da família” (Cardoso, 2003:12). Em relação a Beatriz há um conflito que se prende com o tardar do seu nascimento e suas implicações em termos de crenças e de compromissos sociais: “Meu pai pediu-lhes que se sentassem. Que de facto lhe nascera uma filha. Nem predestinada nem louca e muito menos servia para realizar compromissos entre vizinhos. Ele já tinha realizado os compromissos todos da família” (Cardoso, 2001:94). Esta posição assumida pelo pai é evasiva. É óbvio que Beatriz criaria problemas, pois, através do vínculo do casamento, esta elite timorense poderia criar uma aliança com a fação nativa ou com a portuguesa. Note-se que as alianças entre os reinos eram consumadas pelo barlaque. Este acordo perpétuo possuía um cariz político e económico, e era uma aliança simbólica entre dois clãs e não, somente, entre duas pessoas. Os noivos pouco podiam fazer em relação à escolha do cônjuge. O casamento tinha, assim, a hipótese de ditar o alinhamento com a governação portuguesa ou uma guerra à autoridade lusa.

Concluindo, os papéis sociais que cada elemento deve cumprir, encontram

correspondência na cantilena ritual recolhida por Armando Pinto Corrêa e que permite sintetizar a diferenciação:

Se for homem, saia já para fora, com azagaia, rodela e espada, alavanca e parão, para as fainas músculas a que está destinado. Assucai dáua, ni oro, ni aba, ni si, ni di’a, ni sita, gafo rá issa! Continua a esfrega do ventre da parturiente. E a parteira insiste, renova as interpelações, usando frases centenárias, as velhas frases pitorescas e saborosas, que já presidiam ao nascimento das antigas gerações timoras. Tufurai dáua, ni quida, ni lalode, ni nuba, ni ati, ni serucai, gafo rá issa! Se for mulher, traga a roca, o cesto do pó, o tear com seu pau para esticar os panos, e a pele de carneiro com que as tecedeiras amparam os quadris. É assim que o timorense é fadado para a vida agrícola ou doméstica que o espera, conforme o sexo que Uru-Uato lhe deu (Corrêa, 1934:16).

4.3.2 UMA LUA FEMININA

4.3.2.1 Em Requiem para o Navegador Solitário, é dada a conhecer a história de

Catarina, filha de pai chinês. Catarina, a boneca de porcelana, fora criada para fazer alguém feliz. Sabia línguas estrangeiras, lia os clássicos, tocava piano e admirava Debussy. Atributos esplêndidos que uniam o melhor de dois mundos: o Ocidental e o Oriental (cf. Cardoso, 2007:12). De certa forma, estes pormenores permitem antever que Catarina é

preparada para que um marido a venha colher. Ao mesmo tempo, adivinha-se que a sua posição em relação ao homem será subalterna e submissa. Este facto torna-se evidente quando a chinesa é incluída, como se fosse mera moeda de transação, no negócio firmado entre o comerciante chinês e o futuro noivo: Alberto Sacramento Monteiro.

Após a conclusão do negócio e do arranjo matrimonial, Catarina torna-se sócia do

marido na gestão da fazenda Sacromonte, em Manumera. É de especial relevo a passagem portadora de agoiro: “bons negócios geram sempre bons casamentos (…) tive conhecimento de bons casamentos que se arruinaram por maus negócios. Muitas vezes é difícil separar uma coisa da outra, na medida em que o matrimónio é mostrado como a face visível da prosperidade dos noivos” (idem:16). É, precisamente, a ausência de notícia por parte de Alberto que irá levar Catarina a Díli, cidade que é descrita pela própria em tom disfórico e que deixa transparecer, novamente, o infortúnio.

A família chinesa “was hierarchical, patriarchal, and authoritarian. The father was

head of the household (…) within the family Confucian principles subjected women to the authority of men” (Bentley; Ziegler, 2003:732-733). Assim, assumindo-se como chefe de família, e como pessoa que decide os destinos dos outros, o pai decide enviar Catarina a Díli para que esta se inteire do estado dos negócios e da fazenda. Culturalmente, a decisão tomada pelo pai causa menor estranhamento do que a de Alberto. O comportamento do capitão do porto, ante Catarina, oscila entre a renovação do carinho pelo felino que lhe havia ofertado anteriormente e uma agressividade grotesca. A raiva faria o capitão arrancar a virgindade à adolescente. A passagem é descrita com recurso a uma enumeração de vários animais, sendo possível ler-se uma bestialização do homem:

Depois atirou-se para cima de mim como um lobo-marinho. E, num ritmo frenético e ofegante penetrou nas minhas entranhas até dar o seu grito final, um berro, um uivo, um latido, e desfazendo- se em gotas de suor que empastavam na minha pele. Consumado o acto retirou-se para o lado. Tudo foi feito num ápice. Como quando um galo se põe em cima de uma galinha. Sem um gesto de carinho. Apenas fúria, como se tivesse de fazer aquilo para se vingar de alguém (Cardoso, 2007:35).

Na novela A nona do Pinto Brás, de Luis Filipe Thomaz - que remete para uma baliza

temporal próxima de RPNS - pode perceber-se que, apesar da conivência coletiva pelo emparelhamento entre militares e nonas, é reprovável o concubinato com uma menor. Neste sentido releiam-se as linhas onde se percebe a espera pela maturação da jovem chinesa: “A minha apresentação oficial como noiva de Alberto Sacramento estava marcada

para a época de Natal. Primeiro, à família dele em Díli, na altura em que eu deveria completar dezoito anos, atingindo a maioridade” (idem:16).

Voltando ao episódio, a natureza do acontecimento opera grandes mudanças em

Catarina e nas relações futuras que ela estabelecerá com os homens. A evolução é percetível na forma engenhosa como Cardoso constrói a personagem. Após a saída de cena do que a chinesa julgou ser o seu príncipe encantado, Catarina tem consciência da sua posição, e da relação vigente entre homem e mulher. Este pensamento é passível de ser inferido na frase: “fiz-lhe saber que não tolerava qualquer falta de respeito pelo facto de eu ser mulher e indefesa” (idem:55) . 113