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A constitucionalização do direito administrativo e a importância dos princípios

4 LIMITES E CONTROLE JURISDICIONAL DA DISCRICIONARIEDADE

4.1 OS LIMITES À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

4.1.2 A constitucionalização do direito administrativo e a importância dos princípios

A locução “constitucionalização do Direito” é de uso relativamente recente na terminologia jurídica, além de comportar múltiplos significados. A rigor, ela poderia caracterizar qualquer ordenamento jurídico no qual imperasse uma Constituição provida de supremacia. Entretanto, como este aspecto é traço marcante na cultura jurídica moderna, faltaria especificidade à expressão. Não é, portanto, o sentido aqui empregado. (BARROSO, 2007).

A noção de constitucionalização do Direito aqui empregada está ligada ao efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológica se irradia, com verdadeira força normativa, por todo o sistema jurídico vigente, inclusive nos diversos ramos do Direito, e com isso forçam sua transformação. (BARROSO, 2007).

Dentre os principais efeitos oriundos desse fenômeno, segundo o magistério de Barroso (2007, p. 12), destaca-se o fato de que “os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional”.

No Brasil, o grande marco dessa importante mudança de paradigma foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, que teve papel primordial no processo de redemocratização do país.

A partir de 1988, a Constituição passa a simbolizar não apenas a noção de supremacia formal de que sempre desfrutou, mas também de uma supremacia material, axiológica e valorativa, notabilizada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade

dos princípios jurídicos. Nesse contexto, a Lei Fundamental passa a constituir, além de um sistema em si, uma forma de observar e interpretar os demais ramos do Direito.

Sob o enfoque dessas premissas, Barroso (2007, p. 20) destaca que “toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional”.

Nesse cenário, como não poderia deixar de ser, nota-se que o Direito Administrativo ganha novo redimensionamento e compreensão teórica, no qual diversos paradigmas estão sendo repensados e superados.

Embora constitua ramo jurídico autônomo, o Direito Administrativo possui bases e objetivos comuns ao Direito Constitucional, notadamente, nos dizeres de Carvalho Filho (2014), a tarefa de limitar o exercício do poder.

Nesse contexto, vale destacar o apontamento feito por Barroso (2007, p. 29), quando afirma: “mais decisivo que tudo para a constitucionalização do direito administrativo, foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais – não apenas os específicos, mas sobretudo os de caráter geral, que se irradiam por todo o sistema jurídico”.

Para Greco (2000, p. 47),

os princípios incorporam valores que transcendem a simples técnica positiva do direito, e exprimem algo além das características da incidência, validade e eficácia (...). Eles são ponderados, conjugados, na busca de um equilíbrio dinâmico e não simples frutos de uma estética ou de uma arquitetura jurídica.

Frente ao alto grau de abstração e generalidade inerentes aos princípios, nasce a ideia de sua preeminência em relação às regras em sentido estrito. Tal premissa é extraível da clássica lição de Mello (2007, p. 943), quando afirma:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda estrutura nelas esforçada.

O protagonismo dos princípios jurídicos, face ao cenário de constitucionalização do Direito, tem sido traço marcante nos ordenamentos jurídicos modernos. No Brasil, foram incessantemente difundidos por todo o sistema, em especial na Magna Carta de 1988. No

campo específico do Direito Administrativo, destacam-se os reconhecidos expressamente no caput do art. 37 do texto constitucional, direcionados à Administração Pública no desempenho de suas funções constitucionalmente atribuídas.

Na guinada do reconhecimento da normatividade dos princípios jurídicos, desponta, via reflexa, uma maior limitação à discricionariedade administrativa. Dessa forma, além do respeito à legalidade (considerada em seu sentido amplo, conforme visto), a atuação discricionária da Administração deve observância aos princípios reconhecidos pelo ordenamento jurídico pátrio, notadamente os de ordem constitucional, sejam eles explícitos ou implícitos.

A despeito da inexistência de hierarquia entre os princípios que limitam a discricionariedade, destacam-se, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, os seguintes: a moralidade, a razoabilidade e a proporcionalidade.

Na lição de Di Pietro (1991), a clássica preocupação em separar o Direito e a Moral, comumente debatida no campo da Filosofia do Direito, acentuou-se, por razões históricas, no fim do século XVII, onde o homem, consciente de sua liberdade, pretendeu que lhe fosse concedido uma área livre da interferência dos monarcas. Essa mesma tendência foi reforçada no fim do século XVIII e início do século XIX, especificamente nos países de posicionamento liberal.

Entretanto, segundo a mencionada autora, no limiar do século XX iniciaram-se as reações contra a separação de tais conceitos, notadamente na Alemanha e França, onde os estudiosos passaram a refutar a tese da identidade entre o Estado e o Direito, difundida por Kelsen, e a proclamar os sentidos político e ideológico das normas jurídicas. Com isso, reconhecia-se que a lei não seria suficiente para abarcar toda a dinâmica da vida social. O efeito imediato dessa mudança de concepção é a retomada da moral como o conjunto de critérios que permitem realizar uma crítica ao direito, integrando o seu campo de abrangência. Noção mais específica do que a moral “comum” (com a qual não se confunde), compreendida por Ari Mello (2004) como uma moral afeta, por assim dizer, a uma determinada atividade humana, notabiliza-se a moralidade administrativa.

Mesmo não havendo consenso quanto ao surgimento da expressão, a doutrina de Giacomuzzi (2002) aponta ter sido na França, no início do século passado, com a obra de Hauriou, o surgimento da ideia de moralidade administrativa enquanto princípio de observância obrigatória pela Administração.

Na doutrina pátria, destaca-se a abordagem visionária de Meirelles (2010), que mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, a primeira a trazer

expressamente a ideia de moralidade administrativa, já fazia alusão, em sua obra, ao princípio em cotejo.

Para Di Pietro (1991, p. 104), a resistência ao reconhecimento do princípio da moralidade como norteador da atividade administrativa “resulta da própria imprecisão do seu conceito e do fato de muitas das regras morais terem sido absorvidas por regras legais ou por terem assumido a forma de princípios gerais de direito”. Na mesma linha de raciocínio, Moraes (2004) assinala:

Autêntico “enigma conceptual”, a problemática maior da concretização da moralidade administrativa reside na textura aberta desta expressão, cuja relatividade alcança graus muito elevados, com frequente e renovada variação de seu teor no tempo e no espaço.

Não obstante a falta de consenso quanto à conceituação do princípio da moralidade administrativa, noções como boa-fé, probidade, ética, boa administração, consubstanciam verdadeiras “palavras-chave” na doutrina especializada quando do enfrentamento do tema. Refletem, com isso, a fluidez de tal instituto jurídico.

Por outro lado, mesmo existindo imprecisão (ou dissenso) na definição de moralidade administrativa, o fato é que, como assevera Di Pietro (1991, p. 110), tal mandamento expressa grande utilidade, na medida em que “diz respeito aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração Pública”. Daí porque nunca se distanciar da finalidade e do interesse público.

Conforme assentado, não mais se vislumbra o Direito distanciado da Moral. Quanto ao Direito Administrativo, tal premissa não deixa de ser aplicada, notadamente no campo da discricionariedade, já que, como explica Di Pietro (1991), é especialmente nesse âmbito que se encontra terreno mais fértil ao cometimento de atos imorais, pois nele resta ao administrador margem de escolha.

Com efeito, nota-se que ao ampliar ainda mais o bloco de limitações à discricionariedade, a moralidade impõe ao gestor público o dever de observância a valores e critérios éticos, que embora não positivados no ordenamento, estão subjacentes em determinada coletividade. Por isso mesmo, aduz-se que a discricionariedade administrativa, ao mesmo tempo em que é limitada pelo Direito, também o é pela Moral.

A seguir, destacam-se os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Inicialmente, impende ressaltar a enorme divergência no que tange ao emprego desses dois termos, por vezes encarados como sinônimos, seja pela doutrina, seja pela

jurisprudência. No enfrentamento do tema, recorre-se ao trabalho levado à frente por Silva, V. A. (2002), intitulado de “O proporcional e o razoável”.

Para o citado o autor, a tendência de confundir proporcionalidade e razoabilidade não é exclusividade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sendo bastante comum em diversos trabalhos acadêmicos. Todavia, são termos que não se confundem, quer pela origem, quer pela estrutura.

Nesse sentido, salienta o autor (2002, p. 30):

Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela (a proporcionalidade) uma estrutura racionalmente definida, com sub- elementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré- definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade.

Com isso, verifica-se uma maior amplitude no conceito de proporcionalidade a despeito da razoabilidade. Esta é tida como a exigência de compatibilidade entre o meio empregado e o fim a ser alcançado, bem como a aferição legitimidade deste último. Tal configuração, nos dizeres de Silva, V. A. (2002, p. 33), “faz com que fique nítida sua não- identidade com a regra da proporcionalidade”. Em seguida, justifica tal posicionamento afirmando que “o conceito de razoabilidade, na forma como exposto, corresponde apenas à primeira das três sub-regras da proporcionalidade, isto é, apenas à exigência de adequação”.

Ainda nesse contexto, o escritor critica a banalização de tais expressões pela Suprema Corte brasileira, alertando para o fato de que a invocação desses preceitos é, não raro, dotada de caráter meramente retórico, e não sistemático.

Noutro aspecto, agora tratando da importância de tais princípios como limitadores da atuação discricionária da Administração, vale mencionar a reflexão feita por Di Pietro (1991) quando da análise do tema. A autora observa que a utilização dos preceitos da razoabilidade e proporcionalidade, embora sejam considerados, como dito, limites à discricionariedade, não exprimem, em que pesem as tentativas de se conceituá-los, critérios objetivos que permitam, de antemão, diferenciar um ato administrativo razoável e proporcional de outro desarrazoado e desproporcional. Daí a difícil tarefa do intérprete/julgador na aplicação do Direito, exigindo comedimento diante de zonas de incerteza e uma atuação proativa frente a situações extremas, de patente violação ao ordenamento jurídico.

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