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4 LIMITES E CONTROLE JURISDICIONAL DA DISCRICIONARIEDADE

4.1 OS LIMITES À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

4.1.3 A teoria do desvio de poder

O respeito à lei, consoante salientado, é traço que caracterizou a passagem para o Estado de Direito. Com efeito, nos dizeres de Mello (2006, p. 49), “no Estado de Direito quer- se o governo das leis e não o governo dos homens”. A noção de lei, registre-se, também adquiriu novos entornos. Entretanto, a concepção de que a atuação da Administração, notadamente a utilização do poder, deve respeito aos parâmetros legais e ao interesse público permanece inalterada.

A compreensão da teoria do desvio de poder (ou de finalidade) passa pelo entendimento dessas premissas. Na clássica lição de Mello (2006, p. 56), “entende-se por desvio de poder a utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição”. Destaque-se que, ainda segundo o autor, duas podem ser as expressões do desvio do poder: em uma delas, o agente, valendo-se de uma competência que possui em abstrato, almeja uma finalidade alheia a qualquer interesse público; em outra modalidade, busca atender uma finalidade pública que não é aquela própria da competência atribuída. No último caso, mesmo que o administrador não tenha agido de má-fé, incorrerá em desvio de poder. Não é outro o entendimento de Cunha (1982) ao afirmar que se o ato é praticado sem objetivar o interesse público, por motivos pessoais, por exemplo, incorre-se em desvio de poder. Do mesmo modo, se praticado, embora atingindo o interesse público, com fim diverso daquele previsto em lei, configura-se também o desvio de poder.

Dessa forma, embora o administrador seja dotado de competência legalmente atribuída, procede de tal maneira a manejá-la para atingir um resultado diverso daquele pretendido pela norma instituidora, seja ela de ordem pública ou, de maneira ainda mais grave, de natureza privada, incorrendo em vício que enseja a anulação do ato exarado4.

A teoria, que teve origem no Direito Francês, especificamente no Conselho de Estado da França, constitui, no entendimento de Medauar (2004), importante passo no sentido de limitar e direcionar o exercício da discricionariedade aos fins de interesse público, em razão dos quais tal poder foi atribuído à Administração.

Mello sustenta ser o desvio de poder uma transgressão da lei, um verdadeiro vício de natureza objetiva. Ao justificar tal posicionamento, aduz:

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A Lei nº 4.717/65, em seu art. 2º, parágrafo único, e, define o desvio de poder ou desvio de finalidade como aquele que se identifica quando “o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

O que o Direito sanciona no desvio de poder, consoante entendemos, é sempre o objetivo descompasso entre a finalidade a que o ato serviu e a finalidade legal que por meio dele poderia ser servida. É, pois, um desacordo entre a norma abstrata (lei) e a norma individual (ato). Como a norma abstrata é fonte de validade da norma individual, se esta (ato) não expressa, in concreto, a finalidade daquela (lei), terá desbordado de sua fonte de validade. Daí o ser invalida (2006, p. 73).

Conclui, em seguida, que “mesmo nos casos em que o agente atuou sem a reta intenção de atender a lei, seu comportamento é fulminável, não porque teve o intuito de desatender a lei, mas porque a desatendeu” (2006, p.73). O dito vício subjetivo, não é, pois, a razão jurídica em virtude da qual o ato deve ser invalidado.

Nos dizeres de Medauar (2004), a comprovação da existência do desvio de poder ou de finalidade na edição do ato administrativo nem sempre é de fácil percepção. É levando em conta essa particularidade que Mello (2006, p.78) assevera incumbir ao Poder Judiciário o enfrentamento de tal vício, “armando-se com olhos de lince e dispondo-se a investigar fundo a etiologia do ato”.

A citada dificuldade na prova do desvio de poder tem levando a doutrina a jurisprudência a estabelecer alguns dados que permitem concluir pela existência do vício. Medauar (2004, p.180) menciona alguns exemplos: “contradição entre fatos invocados a título de motivo e o conteúdo do ato; desproporção entre meios e fins; contradição entre os motivos expostos; ocultação de fatos relativos à situação etc”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Mello (2006, p. 80) preceitua:

Concorrem para identificar o desvio de poder fatores como a irrazoabilidade da medida, sua discrepância com a conduta habitual da Administração em casos iguais, a desproporcionalidade entre o conteúdo do ato e os fatos em que se embasou, a incoerência entre as premissas lógicas ou jurídicas firmadas na justificativa e a conclusão que delas foi sacada, assim como antecedentes do ato reveladores de animosidade, indisposição política ou, pelo contrário, de intuitos de favoritismo. Até mesmo a conduta pregressa do agente, reveladora de temperamento descomedido, vindicativo ou proclive a apadrinhamentos e compadrios políticos, pode acudir para compor um quadro que, em sua globalidade, autorize a reconhecer desvio de poder. (...)

Para tanto, examinam-se seus antecedentes, fatos que o circundam, momento em que foi editado, fragilidade ou densidade dos motivos que o embasam, ocorrência ou inocorrência de fatores que poderiam interferir com a serenidade do agente, usualidade ou excepcionalidade da providência adotada, congruência do ato com anterior conduta administrativa e até mesmo características da personalidade do agente exibidas em sua atuação administrativa.

Para o citado autor, é o conjunto de elementos que antecedem a edição do ato que propiciam rastrear o desvio de conduta.

No campo da discricionariedade, se torna, com mais ênfase, necessária a apreciação das circunstâncias que envolvem o ato administrativo, a fim de verificar se tal atribuição foi utilizada conforme os ditames e preceitos legais ou, ao revés, correspondeu a um pretexto para violar a finalidade legal e satisfazer objetivos de ordem pessoal. (MELLO, 2006).

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