• Nenhum resultado encontrado

A constitucionalização do Direito e o direito à imagem

2. A IMAGEM E A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL

2.3. A constitucionalização do Direito e o direito à imagem

A constitucionalização do Direito Civil representa um fenômeno ocorrido no âmbito do Direito Privado, tornando retrógrada a visão que se tinha do Código Civil como a “constituição do direito privado”. Tal evento fez com que a Constituição assumisse a função de eixo central e harmonizador do sistema jurídico brasileiro, o que levou a um processo de despatrimonialização e repersonalização do direito privado, de modo que o Código Civil passasse a ter como centro as pessoas e os direitos à elas inerentes, e não mais questões meramente patrimoniais.

Deve-se ter em vista, portanto, que, embora a noção de autonomia faça parte do núcleo do Direito Privado, seu perfil foi transformado e delineado ao longo do tempo. Deste modo, o Direito Civil não mais dispõe de autonomia plena e deve ser interpretado à luz da Constituição Federal, não sendo mais possível sopesar o espaço da vontade na ordem civilista sob a mesma ótica liberal própria do século XIX.

Foi imposta ao intérprete da lei a necessidade de proceder à conexão axiológica entre o privado e o público, o Código Civil e a Carta Magna, a fim de proporcionar sentido uniforme às cláusulas gerais alicerçadas nos princípios constitucionais. Logo, os fundamentos de validade jurídica do Direito Civil devem ser extraídos da Constituição. Tepedino assim preconiza:

Não há dúvidas que as normas constitucionais incidem sobre o legislador ordinário, exigindo produção legislativa compatível com o programa constitucional, e se constituindo em limite para a reserva legal. Por outro

lado, produzem efeitos no plano interpretativo, reclamando uma leitura da lei civil conforme o texto constitucional, postulando cada vez mais acatado entre os constitucionalistas. [...] o Texto Constitucional, sem sufocar a vida privada e suas relações civis, dá maior eficácia aos institutos codificados, revitalizando-os, mediante nova tábua axiológica31.

Nos ensinamento de Luís Roberto Barroso32, é possível identificar três fases distintas no processo de aproximação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, que tampouco se integravam ou comunicavam entre si na antiguidade. A primeira fase diz respeito, justamente, à distância existente entre tais institutos. Com o advento do constitucionalismo moderno, a Constituição era destituída de força normativa própria, figurava como mecanismo de regulação ao direito público, visando à organização do Estado, em contrapartida, o Código Civil, herdeiro da tradição do direito romano e sob forte influência do Código Napoleônico, regulava as transações privadas, resguardando a proteção da propriedade e da liberdade de contratar; Após as guerras mundiais ocorridas no século XX, a liberdade e a autonomia da vontade passam a conviver em simetria com o Estado social, cujo intuito era suprimir as desigualdades e promover melhores condições de vida aos cidadãos, inaugurando a segunda fase, a qual figura a publicização do direito privado, em que o Estado começa a interceder nas relações particulares; Tal fato culminou na inserção da Constituição no centro do ordenamento jurídico, promovendo uma transformação hierárquica e valorativa, simbolizando a terceira e última fase, a constitucionalização do Direito Civil.

A Constituição contém regras e princípios específicos que atingem institutos clássicos, tais como os princípios da isonomia, da solidariedade social e da dignidade humana, acarretando inúmeras transformações. Barroso, no entanto, destaca dois desenvolvimentos doutrinários:

O primeiro deles diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana na nova dogmática jurídica. Ao término da Segunda Guerra Mundial, tem início a reconstrução dos direitos humanos, que se irradiam a partir da dignidade da

31

TEPEDINO, Gustavo. op cit. p. 41-42

32

pessoa humana, referência que passou a constar dos documentos internacionais e das Constituições democráticas, tendo figurado na Carta brasileira de 1988 como um dos fundamentos da República (art. 1°, III). A dignidade humana impõe limites a atuações positivas ao Estado, no atendimento das necessidades vitais básicas, expressando-se em diferentes dimensões. No tema específico aqui versado, o princípio promove uma despatrimonialização e uma repersonalização do direito civil, com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física, como psíquica.

O segundo desenvolvimento doutrinário que comporta uma nota especial é a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas. O debate remonta à decisão do caso Lüth (v. supra), que superou a rigidez da dualidade público/privado ao admitir a aplicação da Constituição às relações particulares, inicialmente regidas pelo Código Civil33.

Em vista disso, certo é que as relações civis detém forte cunho patrimonial, tendo como evidência o fato de que seus principais institutos são a propriedade e o contrato. Não obstante, a primazia do patrimônio, como valor individual a ser tutelado nos códigos, deu lugar à pessoa humana, que passou a figurar como núcleo da relação jurídica. Neste aspecto afirma Lôbo:

A patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos, é incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1º, III). A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário.34

O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil resultou, portanto, em importantes transformações no âmbito jurídico, dentre elas o fato de elevar os direitos fundamentais da pessoa, passando a dignidade da pessoa humana a ocupar um primeiro plano. Tepedino confirma:

Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o Direito Civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo

33

BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 369-370.

34

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil, in: Revista de Informação Legislativa, vol. 36, 1999.

atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.35

Diante do exposto, é possível compreender que a proteção do direito à imagem é uma necessidade atual da sociedade brasileira e o fenômeno da constitucionalização do Direito fez com que as relações patrimoniais fossem diretamente influenciadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios constitucionais, e pelos valores sociais, buscando a conservação da higidez constitucional, através da tutela aos direitos personalíssimos.

Neste diapasão, de fato, o Código Civil perdeu a posição central que desfrutava no ordenamento jurídico, de modo que a noção de proteção da vida individual deu lugar à noção de integração do homem à sociedade, ratificando a tendência a uma justiça social. É na conjuntura de um Direito Civil constitucionalizado, preocupado em assegurar ampla tutela à pessoa humana, que se pretende a releitura dos institutos da responsabilidade civil, sobre a qual discorreremos no capítulo subsequente.

Documentos relacionados