• Nenhum resultado encontrado

Princípio da dignidade da pessoa humana

2. A IMAGEM E A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL

2.2. Princípio da dignidade da pessoa humana

Desde meados do século XX, após o fim da 2ª Guerra Mundial, a humanidade vivencia um complexo processo de transformação e de intensificação das relações internacionais, marcado por desdobramentos econômicos, políticos e culturais. Dentre as diversas transformações às quais se sujeitou o Direito nas últimas décadas, está a valorização do ser humano em sua plenitude, com a preservação dos direitos que são intrínsecos à sua personalidade, incluindo-se, neste rol, o direito à imagem.

Ao elencar em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais da República, a Constituição Federal de 1988 consagrou a prevalência da tutela da pessoa humana como máxima a ser seguida pelo ordenamento jurídico, garantindo, portanto, o respeito absoluto ao indivíduo, de modo a lhe propiciar existência plenamente digna e protegida de qualquer espécie de ofensa ou abuso. A respeito de tal opção axiológica adotada pelo constituinte, ensina Tepedino:

23

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Ao eleger a dignidade humana como valor máximo do sistema normativo, o Constituinte exclui a existência de redutos particulares que, como expressão de liberdades fundamentais inatas, desconsiderem a realização plena da pessoa. Vale dizer, família, propriedade, empresa, sindicato, universidade, bem como quaisquer microcosmos contratuais devem permitir a realização existencial isonômica, segundo a óptica da solidariedade constitucional. Sendo assim, não configuram espaços insuscetíveis ao controle social, como queria o voluntarismo, justamente porque integram uma ordem constitucional que é a mesma tanto nas relações de direito público quanto nas de direito privado. Não se poderia admitir a democracia nas ruas e a intolerância na vida privada.24

Primordialmente, cumpre-nos remeter a uma breve reflexão acerca da ideia e conceituação que abarca a nomenclatura “pessoa humana”, revelando-se um necessário ponto de partida tal estudo para a compreensão dos axiomas antropológico-culturais que integram o Estado brasileiro na ordem constitucional em vigor.

Na contemporaneidade, o termo “pessoa” é instantaneamente associado ao ser humano, tanto que, à primeira vista, chega a soar pleonástica a expressão “pessoa humana”. Não obstante, a presumida redundância tem emprego plausível, vez que o termo “pessoa” abrange significados que nem sempre se reportam diretamente ao ser humano em si, em sua humanidade pura e simples.

Realizando-se um breve retrospecto etimológico, o conceito mais difundido da palavra pessoa surge do termo latim persona, utilizado na antiguidade para designar uma máscara usada pelos atores na representação teatral, ao encenarem personagens em suas apresentações. A máscara seria a representação da concepção que o indivíduo forma de si mesmo, sua individualidade revela-se, neste contexto, um papel, uma máscara viva no palco do mundo e não mais do que isto.

A ruptura com o saber mitológico da tradição e a evolução das ideias básicas que possibilitaram a concepção moderna da pessoa humana é atribuída ao período axial (século VIII a.C. ao século II a.C.), no qual as tradicionais explanações mitológicas acerca da

24

TEPEDINO, Gustavo. Os 15 anos da Constituição e o direito civil. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 14, 2003.

realidade foram pospostas e sucedidas pelo saber lógico da razão, com a contribuição de importantes doutrinadores25.

Surge, portanto, a primeira fase das cinco existentes para a consolidação do conceito de pessoa, ainda no entendimento de Comparato, onde há a concepção do indivíduo na qualidade de um ser que exerce a sua faculdade de julgar racionalmente a realidade, constituindo as bases do critério supremo das ações humanas, qual seja o próprio homem, através de fundamentos que viabilizaram o entendimento da pessoa humana, dotada de direitos tidos como universais.

A segunda fase deu-se no início do século VI com Boécio, cujos escritos influenciaram o pensamento medieval, período no qual se iniciou a elaboração do princípio da igualdade, elemento decisivo de formação do núcleo do conceito de Direitos Humanos.

Na terceira fase, tem-se a contribuição fundamental para a ideia da pessoa enquanto sujeito de direitos, advinda da filosofia de Kant, na qual “o princípio primeiro de toda a ética é o de que o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante”26. Assim, destaca-se a dignidade e singularidade da pessoa humana como valor absoluto, em detrimento das coisas que possuem valor relativo.

A quarta fase resulta do pensamento baseado na liberdade do agir de cada indivíduo de acordo com suas preferências valorativas, isto é, a compreensão de que a pessoa é o único ser vivo capaz de dirigir sua vida em função de tais preferências, fazendo surgir a ética como referência.

A quinta e última fase tem seu início no século XX, com suas bases fixadas a partir do pensamento existencialista. Destacando a personalidade individual como elemento único,

25

Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 7ª ed., revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 30.

26

cada indivíduo possui uma identidade inconfundível com a de qualquer outro. Nesse período, ressalta-se a constante mutação da pessoa humana em função de seu processo evolutivo, culminando na Declaração dos Direitos Humanos, em 1948.

Destarte, ainda que os ideais para concepção moderna da pessoa humana tenham ocorrido no período axial, só mais de vinte séculos depois é que, através da ONU, consagrou-se o direito de todo homem de consagrou-ser reconhecido como pessoa.

Depreende-se, assim, que o termo “pessoa” nem sempre foi empregado para designar o ser humano e, mesmo após passar a se referir ao homem, foi durante um longo período adotado de modo que não o contemplasse em sua totalidade material e espiritual, bem como não alcançasse todo e qualquer ser humano pelo simples fato de sua humanidade inerente, como já visto no capítulo antecedente.

O constitucionalista Gilmar Mendes entende ser adequado analisar a dignidade humana sob a concepção metafísica do ser humano, defendida por Miguel Reale, o qual afirmava

[...] que toda pessoa é única e que nela já habita o todo universal, o que faz dela um todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser vista antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência.27

A imagem, como direito intrínseco à personalidade, vincula-se aos aspectos físico e moral da pessoa humana. Físico quando tratar da imagem objetiva, a imagem-retrato a qual exploramos no primeiro capítulo, obtida por meio de sua representação através de fotografias, pinturas, filmagens, televisão, etc.; e moral quando tratar da imagem subjetiva (imagem-atributo), a qual se refere ao conjunto de qualidades ou atribuições vinculado à pessoa, que permite seu reconhecimento social.

27

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 172

Conforme salienta Tepedino, a tutela da personalidade humana se dá a partir do princípio da dignidade da pessoa humana conjugado com outros28. Deste princípio emanam todos os direitos fundamentais inerentes ao ser humano, concebendo a relação público-privada, de modo a abranger pessoas naturais e jurídicas. O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser compreendido como o cerne da ordem política da sociedade brasileira, trata-se do “reconhecimento do valor do indivíduo como limite e fundamento do domínio público da República29”.

Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos:

Quando o Texto Maior proclama a dignidade da pessoa humana, está consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucional supremo. Por isso, o primado consubstancia o espaço de integridade moral do ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status social. [...] A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos educacionais, dos direitos culturais etc. Abarca uma variedade de bens, sem os quais o homem não subsistiria30.

O princípio da dignidade da pessoa humana se apresenta, portanto, como superação da intolerância e da não-aceitação do outro em suas diferentes maneiras de ser e pensar, vinculando-se aos direitos fundamentais e envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Isto implica no fato de que o conceito da dignidade da pessoa humana comporta um conjunto de valores não restritos, meramente, à defesa dos direitos individuais, englobando todo um conjunto de direitos, liberdades e garantias que dizem respeito à vida humana em geral.

Neste prisma, os princípios constitucionais passam a nortear as relações privadas e orientar a relação público-privada (Estado-particular), de forma que ocorra a conciliação

28

Cf. Op. cit. 1994.

29

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 219

30

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, 8ª ed., revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 512

desses princípios com as regras de relação interpessoal. Surge, por conseguinte, a constitucionalização do Direito Civil, da qual trataremos a seguir.

Documentos relacionados