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A CONSTITUIÇÃO CIDADÃO E OS DIREITOS REPRODUTIVOS

No ordenamento jurídico brasileiro não existe nenhum obstáculo a que se descriminalize o aborto, o que representaria o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como estado)parte das Conferências da ONU de Cairo e Beijing, ou mesmo que se promova sua legalização como forma de reconhecimento dos direitos reprodutivos, assegurando a proteção integral dos direitos humanos das mulheres. Porém, segundo a interpretação de alguns juristas, a inviabilidade jurídica da legalização do aborto estaria presente no artigo 5º da

Constituição Federal, que estabelece que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo)se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade $ + à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade... (grifo meu)”

O texto não fez referência expressa à proteção da vida desde a concepção, sabe)se que durante os debates da constituinte buscou)se introduzir o termo ‘desde a concepção’ e esta proposta73 foi rejeitada, Lorea nos recorda que “a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 teve oportunidade de aprovar um texto que fizesse referência expressa à proteção do direito à vida desde a concepção, optando por não fazê)lo”74.

Outra interpretação busca eliminar todo e qualquer permissivo legal a interrupção da gestação, questionando os dois permissivos presentes no Código Penal Brasileiro, no entendimento de que feriria o artigo 5º da Constituição Brasileira. Segundo Piovesan & Pimentel, “o direito ao aborto legal e à sua regulamentação estão em absoluta consonância com a ordem jurídica brasileira”:

A ordem jurídica, ao consagrar a inviolabilidade do direito à liberdade, por exemplo, permite limites ao exercício da liberdade de expressão quando proíbe a incitação à discriminação racial. O mesmo ocorre com a inviolabilidade do direito à propriedade, na medida em que a Carta de 1988 exige que seja cumprida sua função social. Esses direitos não são previstos de forma ampla e ilimitada, pois o conteúdo de sua inviolabilidade é definido a partir de um dinâmico e complexo processo de disputa entre valores constitucionalmente assegurados. É por isso que, nesses casos, o valor da liberdade há de ser conjugado com o da tolerância, o valor da propriedade com o da justiça social.(PIOVESAN; PIMENTEL, 1997).

Contestam juristas como o Hélio Bicudo e Ives Gandra, que acreditam que ao consagrar a inviolabilidade do direito à vida, estaria vedado, portanto, o direito ao aborto e que a Constituição Federal de 1988 não tratou da legislação penal concernente ao aborto legal.

Para Piovesan e Pimentel (idem), os direitos fundamentais descritos no artigo 5º, não são direitos absolutos, foram delineados pela Constituição diante de um complexo sistema valorativo, à luz do paradigma da dignidade humana, o pensamento contemporâneo justifica a relativização de direitos fundamentais, interpretação que é absolutamente consoante com a Constituição de 1988.

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Certamente a ação dos movimentos de direitos humanos das mulheres e as feministas obtiveram este resultado em função da sua ação política junto aos parlamentares e à atuação qualificada durante o processo, o que significaria um retrocesso inimaginável em termos de proteção às liberdades individuais.

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O mesmo raciocínio se aplica às hipóteses de aborto legal, na medida em que não se pune o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Por que não punir o aborto nessas hipóteses? Porque o valor da vida deve ser conjugado com o valor da dignidade humana. A legislação penal, sob a compreensão de que não seria razoável punir criminalmente uma mulher que sofre risco de vida fatal, necessitando a interrupção da gravidez. E que, portanto, não seria razoável a legislação penal punir criminalmente uma mulher que já sofreu a traumática e dolorosa violência do estupro, ser submetida a um tratamento cruel e degradante na obrigatoriedade de manutenção da gestação pós) estupro. O valor constitucional protegido, nessas hipóteses é a vida e a dignidade das mulheres.

Daniel Sarmento (2006), ao examinar o tratamento jurídico conferido ao aborto no Brasil, constata que o poder dissuasório da legislação repressiva é mínimo, e quase nenhuma mulher deixa de praticá)lo em razão da proibição legal. Em função das conseqüências nefastas à vida das mulheres e, à luz dos novos valores sociais e do papel conquistado pelas mulheres no mundo contemporâneo, a criminalização do aborto fere a igualdade de gênero e vai de encontro aos novos paradigmas da sexualidade contemporânea.

O jurista propõe que uma solução mais justa e adequada, seja sob o ponto de vista moral ou estritamente jurídico, levar em conta a autonomia reprodutiva das mulheres, autonomia que ) não sendo absoluta, não pode ser negligenciada.

O projeto de lei (PL) 1.135 de 1991 em tramitação propõe uma autonomia relativa e delimitada pelo período de 12 semanas, para a uma livre decisão sobre o aborto, e de até 20 semanas para a gravidez resultante de estupro e a qualquer tempo, quando houver risco de morte para a mulher, sempre com o seu consentimento. A autonomia estaria relativizada por estes prazos e normatizada pelos serviços de saúde.

O professor e jurista Daniel Sarmento (idem) defende a viabilidade jurídica da legalização da interrupção voluntária da gestação e apóia abertamente a proposição de descriminalização do aborto das Jornadas Brasileira pelo aborto legal e seguro, em que a nova carta Constitucional, de 1988:

Consagra um generoso projeto de construção de uma sociedade inclusiva, tolerante e laica, reconhecendo a igualdade de gênero em sua plenitude (art. 5º inciso II). Ela acolhe um amplo leque de direitos fundamentais... Ensejando o reconhecimento, com estatura constitucional, dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, seja na sua dimensão liberal, seja na

sua dimensão social, como direitos prestacionais. (SARMENTO,2006, p.100).

Com base nesta interpretação, Sarmento (ibdem) considera a legalização do aborto um imperativo constitucional, exigindo alteração do tratamento legal conferido à matéria, o que se constitui também em cumprimento dos compromissos internacionais assumidos nas Conferências de Cairo e Beijing. Sarmento pondera que é justa e legítima a preocupação com vida do embrião, embora haja controvérsias e discordâncias na qualificação da situação jurídica e moral do nascituro, para ele “é indiscutível que não se deve desconsiderar o elemento (o embrião) no equacionamento do tratamento legal dado para o caso”. E acrescenta:

[...] O entendimento que vem prevalecendo nos Tribunais Constitucionais de todo o mundo é o de que a vida do nascituro é protegida pela Constituição, embora não com a mesma intensidade com que se tutela o direito à vida das pessoas humanas já nascidas. E, por razões de ordem biológica, social e moral, tem)se considerado também que o grau de proteção constitucional conferido à vida intra)uterina vai aumentando na medida em que avança o período de gestação. (IDEM).

Ao atribuir valores relativos para interesses conflitantes, busca)se a criação de parâmetros legais e protetivos, tanto para o feto, como para a mulher, através de medida e o consenso. A tensão entre estes conflitos de interesses causa comoção e passionalidade, provocando mais equívocos do que reflexão, e quase nenhum diálogo. Segundo o entendimento proposto, e esta distinção me parece crucial para fundamentar a defesa e promoção dos direitos reprodutivos das mulheres, há que considerar todos os interesses envolvidos e a proteção jurídica de forma justa e ponderada.

Sob o prisma jurídico, o caso parece envolver uma típica hipótese de ponderação de valores constitucionais, em que se deve buscar um ponto de equilíbrio, no qual o sacrifício a cada um dos bens jurídicos envolvidos seja o menor possível, e que atente tanto para as implicações éticas do problema a ser equacionado, como para os resultados pragmáticos das soluções alvitradas. (SARMENTO, op.cit. p. 100).

O embate sob o princípio da vida, ou a discussão que considera o feto juridicamente como pessoa, desafia permanentemente a conciliação de interesses que possa se reverter em legislações mais tolerantes e na aceitação d0s limites estabelecidos para proteção do feto, a partir do primeiro trimestre.

Para ilustrar este entendimento, Daniel Sarmento, analisando o processo de legalização do aborto na Alemanha unificada, cita trechos da decisão da Corte Constitucional que em 1993 afirmou que a proteção ao feto pode ser promovida

através medidas de caráter educativo e de planejamento reprodutivo, não precisa ser realizada necessariamente através dos meios repressivos do Direito Penal:

Os embriões possuem dignidade humana; a dignidade não é um atributo apenas de pessoas plenamente desenvolvidas ou do ser humano depois do nascimento... Mas, na medida em que a Lei Fundamental não elevou a proteção da vida dos embriões acima de outros valores constitucionais, esse direito à vida não é absoluto... Pelo contrário, a extensão do dever do Estado de proteger a vida do nascituro deve ser determinada através da mensuração da sua importância e necessidade de proteção em face de outros valores constitucionais. Os valores afetados pelo direito à vida do nascituro incluem o direito da mulher à proteção e respeito à própria dignidade, seu direito à vida e à integridade física e seu direito ao desenvolvimento da personalidade [...]

Em legislações de diversos países a ideia de tutela progressiva é a preponderante, aumentando a proteção do Estado à medida que a gestação se aproxima de seu fim e o feto tenha autonomia extra)uterina, também prevalece a concepção de que um ‘não nascido’ não é um indivíduo autônomo, e não tem o status de pessoa, embora tenha dignidade humana e limites gestacionais de proteção.