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O IMPACTO JURÍDICO NA VIDA DAS MULHERES

No Brasil o problema jurídico e social do aborto tem sido abordado por vozes dissonantes dentro do sistema judiciário. Vozes como a da Desembargadora Maria Berenice Dias (2007), do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, contribuem para politizar o debate acerca da descriminalização do aborto e demandam a revisão legal da matéria, como um imperativo constitucional frente à Concepção de Direitos Humanos proclamada pela Constituição Federal de 1988:

Não se pode esquecer que o Código Penal data do ano de 1940, época em que a sociedade estava de tal modo condicionado a preceitos conservadores de origem religiosa, que outra não poderia ter sido a escolha do legislador. Não havia como deixar de prestigiar a paz familiar e admitir o aborto quando a gravidez resultasse da prática do crime de estupro. Tal exceção visa a permitir que não integre a família um ‘bastardo’, pois a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai de seu filho. Assim, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual, faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do marido da vítima e herdeiro do patrimônio familiar. Essa é a justificativa para a possibilidade do chamado aborto sentimental, apesar de não haver nenhuma preocupação com o sentimento da vítima.

Em sua análise crítica, na perspectiva histórica da primeira metade do século XX, Dias (idem) deixa claro que os direitos das mulheres ou o interesse do feto, não eram referência para justificar a exceção, o bem protegido de fato era a família e o poder patriarcal.

A minimização na aplicação da lei penal, contudo, não reduz o peso da qualificação legal delituosa do aborto na vulnerabilidade feminina. Isso porque imputa à mulher plena responsabilidade individual pela decisão, de forma iníqua em relação aos homens, e dificulta a eliminação das restrições de acesso a serviços e procedimentos específicos para atender às necessidades do segmento feminino, afetando diretamente a qualidade da assistência integral à saúde sexual e reprodutiva, mesmo quando o aborto constitui um direito legal das mulheres. Devemos considerar ainda que essa definição de crime e castigo transcende os códigos legais e cria um ambiente que penaliza psicológica, social e institucionalmente a mulher que aborta ou enfrenta uma gravidez indesejada, reforçando a discriminação sexual e as desigualdades de gênero, raça e classe e social.( VENTURA, 2006).

O aborto se justificava para proteção da honra masculina e do patrimônio familiar no caso de estupro; em qualquer outro caso, compreendia)se como uma forma de ocultar o adultério, o que para as mulheres era (ainda é) inaceitável, nos termos da sexualidade restrita para procriação e permanência do direito familiar de linhagem masculina.

Sob o novo cenário axiológico e na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, como direitos humanos fundamentais, a justificativa para o aborto decorrente de estupro, está amparada no artigo 226, § 7º da Constituição federal que assegura que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos para o exercício desse direito.

Fruto da violação, uma gravidez decorrente de estupro impossibilita o direito da mulher ao livre exercício do planejamento familiar, despojando)a de sua autonomia, dignidade e liberdade, razão por si só suficiente para que lhe seja assegurado o direito ao aborto, como forma de resgate de sua integridade.

Até o processo de elaboração desta revisão conceitual do direito ao aborto, à luz da nova concepção do direito internacional, foi percorrida uma trajetória histórica, científica médica, jurídica e social. O momento de ruptura histórica entre a relação sexo e reprodução se deu na década de 60/70 do século XX; o aspecto reprodutivo modificou)se muito com o surgimento e a difusão de métodos contraceptivos, causando um gradual impacto na realidade demográfica brasileira e na concepção de sexualidade feminina.

Todavia, a permanência de valores culturais machistas e a desigualdade de gênero ainda impedem o pleno exercício dos direitos reprodutivos e sexuais da escolha de ter ou não filhos para as mulheres:

Porém, independente do conteúdo punitivo de natureza penal a criminalização do aborto não tem caráter repressivo, porque nem toda gravidez decorre de uma opção livre. Basta ver os surpreendentes índices da violência doméstica e da violência sexual. Para quem vive sob o domínio do medo, não há qualquer possibilidade de fazer a sua vontade prevalecer. Por isso as mulheres conciliam fé, moral e ética com a decisão de abortar. Imposições outras limitam a liberdade feminina. 75.(DIAS, 2007, p. 79).

Com relação à violência doméstica e sua interface com o aborto, é importante reconhecer que a vida privada não significa um espaço de proteção e segurança para muitas mulheres e meninas, o mundo familiar é na realidade o espaço da privação, da violência e da negação de direitos: estupro marital, incesto, assédio, violência física e psicológica, se conjugam num sistema de vulnerabilidade feminina e riscos aumentados de gravidez não planejada.

Imposições outras limitam a liberdade feminina. A situação de submissão que o modelo patriarcal da família ainda impõe à mulher não lhe permite negar)se ao contato sexual. Persiste ainda a infundada crença de que o chamado débito conjugal faz parte dos deveres do casamento. A vedação de origem religiosa ao uso de métodos contraceptivos submete a mulher à prática sexual sem que possa exigir o uso da popular camisinha. Diante de todas essas restrições, imperativo é reconhecer que a gravidez não é uma escolha, havendo a necessidade de admitir)se sua interrupção. (DIAS, op. Cit. p. 100)

Embora para as mulheres ainda perdure traços e valores que contribuem para a manutenção da subordinação e da violência de gênero, torna)se difícil compreender a razão pela qual toleramos a vigência deste código penal, num cenário axiológico absolutamente diverso, sob a égide da Constituição de 1988, que entroniza a liberdade como um dos seus valores máximos,

Com relação à Constituição, Berenice Dias tem uma interpretação abrangente, e não conflitiva com o que preconiza a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento; segundo ela, embora não deva servir de regulação da fecundidade nos termos dos métodos contraceptivos usuais, o aborto tem de estar previsto como uma possibilidade concreta para a realização plena dos direitos reprodutivos:

Atentando a essa realidade é que a Constituição (art. 226, § 7º), ao proclamar como bem maior a dignidade humana e garantir o direito à DIAS, Maria Berenice. Direito fundamental ao aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1641, 29 dez. 2007. Disponível em: <http://jus2. uol.com.br/ doutrina/ texto.asp? id=10810>. Acesso em: 29 dez. 2007.

liberdade, subtraiu o aborto da esfera da antijuridicidade. No momento em que é admitido o planejamento familiar e proclamada a paternidade responsável, não é possível excluir qualquer método contraceptivo para manter a família dentro do limite pretendido. Assim, frente a norma constitucional, que autoriza o planejamento familiar, somente se pode concluir que a prática do aborto restou excluída do rol dos ilícitos penais. Mesmo que não se aceite a interrupção da gestação como meio de controlar a natalidade, inquestionável é que gestações involuntárias e indesejadas ocorrem e, somente se for respeitado o direito ao aborto, a decisão sobre o planejamento familiar se tornará efetivamente livre. ( DIAS, op. Cit. P.104).

Sabe)se que a orientação internacional para descriminalizar a prática do aborto, considerando sua ineficácia e agravamento dos direitos humanos das mulheres, como consta na Plataforma de ação do Cairo, restringe a utilização da interrupção voluntária da gestação como método contraceptivo.

Berenice Dias defende o direito à interrupção da gestação como um direito humano fundamental das mulheres. Para Dias, o fenômeno de gestações involuntárias ) de forma relacional e conseqüente das relações humanas, é uma possibilidade derivativa do exercício sexual devendo, portanto, ser contemplada pelo sistema legal, para garantir o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, e a liberdade de escolher ter ou não filhos, uma vez que não existem métodos 100% seguros.

4.4 O STATUS JURÍDICO DO FETO E A DISCUSSÃO MORAL ACERCA DO