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A Constituição de 1988 e a criação da categoria social “quilombola”

Não é novidade para nós que a Constituição de 1988, marcou uma nova configuração política e social no Brasil. O reconhecimento do país, na Carta Magma, como um Estado Nacional pluriétnico e multicultural, passou a ser o argumento básico para a exigência de ampliação da proteção social de grupos discriminados. E foi assim que mulheres, negros e índios, entre outros grupos, tiveram o reconhecimento do direito a ter direitos, para que fossem capazes de assegurar e preservar suas especificidades culturais (SILVÉRIO, 2009).

O processo de redemocratização do país, e a intervenção internacional que trazia um discurso voltado para o direito das minorias, colaboraram para que a relação do Estado com estes grupos fosse revista. Tais direitos agora não poderiam ser taxados como “privilégios”, mas sim, tomados como reparação de uma continuada situação de desigualdades históricas.

Este novo panorama, abriu espaço para a inserção da questão racial na agenda social brasileira. Foi marcado pelo centenário da Abolição, pela ação de movimentos

sociais como o Movimento Negro Unificado, e pela participação de cientistas sociais, intelectuais e ativistas, que no clima de democratização vivido pelo fim da ditadura, questionavam a posição do negro na estrutura social brasileira.

É neste contexto que em 1984, o então militante e deputado federal Abdias do Nascimento propõe à Câmara uma sessão comemorativa do 96º aniversário da Lei Áurea. Durante o evento, Abdias discursou sobre a necessidade de uma Comissão do Negro para que todos se informassem das condições de desigualdade em que vivia a população afro- brasileira. O deputado também questionava a data de 13 de maio como dia da abolição da escravidão. Isto porque, desde este acontecimento, a vida da população negra ex-escrava, não tinha atingido um patamar aceitável de igualdade e inclusão social.

Também nesta conjuntura política favorável ao reconhecimento de direitos específicos, não poderíamos nos esquecer de sublinhar a mobilização de trabalhadores rurais31 que lutavam por uma reforma agrária imediata. O IV Congresso Nacional dos

Trabalhadores Rurais realizado em maio de 1985, pode ser considerado o ponto máximo de desdobramento das reinvindicações feitas por este movimento social antes da Constituição de 1988. Neste momento, muitas demandas menosprezadas ao longo da história do Brasil foram detalhadas e apresentadas aos órgãos fundiários oficiais, e nelas também estavam compreendidas as demandas por terra de grupos negros do meio rural (ALMEIDA, 1989).

A sinalização deste acontecimento é importante, pois, foi a partir daí que as modalidades de “uso comum da terra”, ignoradas na estrutura agrária brasileira, e nunca antes catalogadas, quantificadas ou cadastradas pelo planejamento governamental, começam a ser alvo de registro. Trata-se do “Laudo Fundiário (LF), elaborado pelo INCRA, que se destina a levantar informações sobre os imóveis rurais e seus detentores a qualquer título (...)” (ALMEIDA, 1989, p. 43) que começa a ser aplicado em 1986.

Podemos afirmar que estes sistemas de “uso comum da terra” foram constituídos das mais variadas formas, por diferentes segmentos camponeses e envolveram agentes distintos como indígenas, escravos e ex-escravos, agregados e etc. Segundo Almeida (1989) estes sistemas poderiam ser classificados, entre outras formas, como “terras de santo”, “terras de ausentes”, “terras de herança”, e principalmente, o que interessa a nossa pesquisa, como “terras de preto”.

31 É interessante notar que estas reivindicações por terra, feitas pelos trabalhadores rurais, datadas em 1985,

estarão presentes em 1986, na Convenção Nacional do Negro, o que nos remete a pensar na influência deste momento para a construção de demandas por direitos para a nova categoria social que estava por aparecer.

Mas, em qual perspectiva os “remanescentes de quilombos” se encaixam? E como estes foram incorporados à Constituição de 1988? Acreditamos que essas primeiras discussões levantadas por trabalhos acadêmicos e contabilizadas pelo poder público, sobre as terras de “uso comum” e, principalmente, o interesse pelo que seriam “terras de preto”, também colaboraram para a formação da categoria “quilombola”.

Tal denominação, formada por terras doadas, entregues ou adquiridas com ou sem formalização jurídica por famílias de ex-escravos ou pelo Estado, alcançando também áreas de antigos quilombos, atraiu o olhar de vários agentes e agências, transformando-se em um objeto de carga simbólica importante, junto ao momento propício de criação da categoria social “quilombola32”.

Assim, a produção destes novos sujeitos políticos de forma socialmente legitima, diferenciados pela denominação “quilombola”, tem início a partir da emissão do Artigo 68 do ADCT. Este dispositivo corresponde, portanto, ao reconhecimento público da existência de um grupo específico. Mas, tal dispositivo apresenta pressupostos confusos e indefinidos que indicam que seus criadores não esperavam as consequências futuras que este geraria.

Isto porque, o Artigo 68 do ADCT teria sido incorporado à Constituição “em uma formulação ‘amputada’ e, mesmo assim, apenas em função de intensas negociações políticas levadas por representantes do movimento negro do Rio de Janeiro” (ARRUTI, 2006, p. 67). Tal contexto ocorreu durante a Assembleia Nacional Constituinte, que acabou englobando também propostas da sociedade civil e de movimentos sociais.

A questão fundamental que Arruti (2006) procura mostrar na gênese da nova categoria social “quilombola” é a improvisação de um direito que se voltou para a questão fundiária de “agrupamentos negros rurais”, sem ao menos se entender quais seriam as demandas, e de fato quem seriam estes sujeitos.

O Artigo 68 do ADCT teria, portanto, uma forma “amputada”, ao ser aprovado sem maiores discussões, tendo como “caldo ideológico” o Centenário da Abolição. É daí, que o termo “remanescentes de quilombos” toma forma, ligando os grupos de negros do meio rural do momento presente, com o passado histórico de Zumbi dos Palmares.

32 No ano de 1948 o primeiro jornal “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro” foi publicado no

Rio de Janeiro sob direção de Abdias do Nascimento - Militante do Movimento Negro e posteriormente deputado federal pelo PDT/RJ. O que queremos mostrar é que o “quilombo” já estava desde o início em um campo de visibilidade como símbolo de destaque para militantes da causa negra.

Na perspectiva de Fiabani (2008, p.36) o Quilombo de Palmares tinha uma carga simbólica naquele momento, influenciando as discussões que resultariam mais tarde no Artigo 68 do ADCT, pois, a maioria das lideranças do movimento negro, ativistas e intelectuais ligados a questões raciais:

Já haviam escolhido Zumbi como herói. Em sentido de oposição à data da Abolição; o quilombo foi apropriado por parte da esquerda brasileira, contrária ao regime militar, como exemplo de resistência, irreverência e apelo à liberdade (...).

O que percebemos, portanto, é que o contexto político e social da década de 1980, influenciou a criação do Artigo 68 do ADCT. E, apesar das mobilizações e vocalizações terem inicialmente como cena o contexto urbano, o movimento negro, ativistas, cientistas sociais e intelectuais também acabaram entrando no campo dos conflitos fundiários ligados as inicialmente nomeadas “comunidades negras rurais”.

Essas comunidades, que começaram a ser mapeadas já no início da década de 1980 nos estados do Maranhão e Pará pelo Movimento Negro da região, tiveram as suas demandas vocalizadas no mês de agosto de 1986 através da 1ª Convenção Nacional do Negro pela Constituinte. Em atendimento a convocatória nacional, para que vários segmentos da sociedade pudessem contribuir na construção da Carta Magna, representantes de 63 entidades ligados as questões raciais participaram conjuntamente dessa Convenção.

A Convenção organizou em um documento, reinvindicações que foram enviadas em 1987 para a Assembleia Nacional Constituinte. No documento, o grupo de participantes esclarece que a “denominação de negros engloba todos aqueles que possuem caracteres, fenótipos, e ou genótipos, dos povos africanos que aqui foram trazidos para o trabalho escravo” (CONVENÇÃO NACIONAL DO NEGRO, 1986, p. 1), e propõem um leque de direitos presentes em várias esferas como saúde, educação e segurança.

No título sobre a questão da terra, elaborado pela Convenção, é possível encontrar a primeira demanda por titulação territorial para a população negra, tanto no contexto urbano quanto rural, e parece ser, no rol de nossas pesquisas, a primeira referência aos “quilombolas”. No texto, aparece grafado: “será garantido o título de propriedade da terra às comunidades negras remanescentes de quilombos, quer no meio urbano ou rural” (CONVENÇÃO NACIONAL DO NEGRO, 1986, p. 6).

Em fevereiro de 1987, instalou-se no Brasil a Assembleia Nacional Constituinte33

e logo após, em abril, foram formadas Subcomissões Temáticas. É possível encontrar na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, os primeiros apontamentos responsáveis por construir, mais tarde, o dispositivo voltado para os “quilombolas”. Ressaltamos, mais uma vez que estes tinham sido inicialmente apontados na Convenção Nacional do Negro em 1986.

As audiências públicas contaram com a participação dos deputados constituintes, antropólogos, sociólogos, líderes do Movimento Negro e historiadores. Nelas, as intervenções foram enfáticas quanto à desigualdade social vivida pelos grupos negros no Brasil. Por isso, apontavam a necessidade de medidas compensatórias, que colaborassem para a isonomia e pagamento da dívida histórica que o país teria com os descendentes de escravos.

Na ata da 16ª reunião (realizada em 25 de maio de 1987) que tem como pauta a votação do anteprojeto da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias34, é possível localizar no título Direitos e Garantias a ementa que

resultaria mais tarde no Artigo 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. O artigo colocado em votação, e mais tarde aprovado, afirmava que: “O Estado garantirá o título de propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes dos Quilombos” (ATAS DE COMISSÕES, 1987, p. 179).

A presença deste artigo na votação do anteprojeto é marcada pela atuação de dois constituintes: Benedita da Silva (PT/RJ) e Carlos Alberto Caó (PDT/RJ), que foram informados das demandas formuladas pelo movimento negro na Convenção Nacional do Negro em 1986 (FIABANI, 2008). Ao pesquisar a página da Web do Senado Federal, é possível localizar o momento que marca a entrada da nova categoria social “quilombola” no campo do Estado, no que diz respeito à proposta de regulamentação das terras das “comunidades negras remanescentes de quilombos”.

33 As discussões do novo texto constitucional na Assembleia Nacional Constituinte tiveram início nas 24

Subcomissões Temáticas, agrupadas em 8 Comissões. Após aprovados nas Subcomissões, os textos seguiram para as Comissões Temáticas respectivas, onde foram elaborados os capítulos por temas. Os três anteprojetos de cada Subcomissão foram reunidos em um anteprojeto único e, em seguida, transformado em um Anteprojeto de Comissão. Disponível em:< http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte>. Acesso em 20-05-2014.

34 As Atas desta Subcomissão estão disponíveis em:< http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissoes-e- subcomissoes/comissao7/subcomissao7c >. Acesso em 20-05-2014.

A constituinte Benedita da Silva, antes da 16ª Reunião da Subcomissão que citamos acima, foi quem enviou uma sugestão (número 9015 – de 6 de maio de 1987) ao anteprojeto de texto constitucional, justificando que eram necessárias medidas de ação compensatória para os cidadãos afro-brasileiros no que diz respeito aos direitos à cidadania e igualdade de condições tendo em vista a “experiência histórica da escravidão” no Brasil.

Por isso, a sua sugestão era que fosse acrescentado na parte relativa à Ordem Econômica da futura Constituição os seguintes artigos: “Será garantido o título de propriedade da terra às comunidades negras remanescentes dos quilombos” e o “Estado priorizará na distribuição de títulos de propriedade de terra, como medida compensatória, o pleito da comunidade afro-brasileira35”.

Mais à frente, já na fase das emendas ao anteprojeto da Constituição Federal, aparece a proposta (número 19155 em 13-08-1987) do deputado Carlos Alberto Caó, cuja formulação era a seguinte:

Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes dos quilombos, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem como todos os documentos referentes à história dos quilombos no Brasil.

Com a aprovação da Constituição Federal em 1988, as propostas de Benedita da Silva e Carlos Alberto Caó, resultaram no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que ficou com a seguinte redação36: “Aos remanescentes

das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

O que percebemos é que o direito a titulação do território dos “quilombolas” acabou por ficar localizado no corpo “transitório” da Constituição, ou seja, fora do texto constitucional já definido. Isto porque, este direito foi configurado como Ato de Disposição Constitucional Transitório (ADCT). Nessa perspectiva, Cavalcanti37 (2011),

35 Diário Nacional da Assembleia Constituinte. Disponível em:< http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/sugestoes- dos-constituintes/arquivos/sgco9001-9100>. Acesso em 19-05-2014.

36 De fato, a proposta original do deputado Caó acabou sendo dividida. A referência aos direitos territoriais

foi colocada nas Disposições Constitucionais Transitórias e a referência ao patrimônio histórico acabou sendo incorporada nos artigos 215 e 216.

37 CAVALCANTI, Ricardo Russell Brandão. ADCT: função e interpretações práticas. In: Âmbito Jurídico,

Rio Grande, XIV, n. 88, maio 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9457&revista_cadern o=9>. Acesso em maio 2014.

esclarece que apesar de serem normas constitucionais, os ADCTs marcam um leque de questões que durante a aprovação da Constituição não haviam ficado claras, ou não restava mais tempo para o debate.

Assim, ao que parece, a finalidade do que foi alocado no ADCT, ou ao menos a principal finalidade, parece ser a espera de novos debates, possíveis modificações e inclusões de artigos na Constituição Federal. É o que nos remete, por exemplo, a ideia de “transitórias” que nomeia tais atos (CAVALCANTI, 2011).

Certamente este lugar legislativo ocupado pelo Artigo 68 não esconde a carga simbólica que carrega a citação a esta categoria social nova, os “remanescentes das comunidades dos quilombos”, ou mais simplesmente, os “quilombolas”, a partir da sua enunciação na Constituição de 1988. É sobre este aspecto que passaremos a refletir logo a seguir.

1.3 Reflexões sobre o Artigo 68 do ADCT: Cadê o quilombo que estava aqui?