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A origem da “questão”: as comunidades negras rurais e as ciências sociais

comunidades que atualmente são reconhecidas e mesmo já tituladas como "quilombolas", eram denominadas por pesquisadores das ciências sociais antes da Constituição de 1988. Uma busca por trabalhos científicos sobre o negro brasileiro no meio rural (este foi o primeiro contexto27 onde emergiu a categoria social “quilombola”), elaborados antes de

1988, nos mostra uma leitura diferenciada dessas comunidades.

Concordamos, após identificar este panorama, que antes da década de 1980, eram poucos os estudos que se interessavam por este cenário, já que, a maioria dos trabalhos tinha como foco o negro no espaço urbano28. Dentro deste pequeno leque, aparece a

dissertação de mestrado de Queiroz (2006), que iniciou em 197729 uma pesquisa

antropológica sobre um “bairro rural do Vale do Ribeira”: o autor estava se referindo a Ivaporunduva30 - localizada no estado de São Paulo - que nos dias atuais é reconhecida e

titulada como uma comunidade “quilombola”.

Como Queiroz realiza sua pesquisa antes da emergência da identidade “quilombola”, essa comunidade é caracterizada em seus escritos de diversas maneiras: ora como um “bairro rural”, ora como “negros caipiras”, e também como “sitiantes tradicionais” ou “camponeses negros”. Todas essas nomeações faziam referência àqueles que possuíam um vínculo com a terra e trabalhavam com o auxílio da família, e que seriam, mais tarde, enunciados como um grupo étnico possuidor de direitos específicos.

As primeiras informações sobre a comunidade que se tornara seu objeto de estudo referiam-se a um povoado distante, isolado e habitado por negros. Os “pretos eram pretos, mas eram também mestiços e brancos. Havia um número maior de pretos, é verdade, mas

27 Nos dias atuais, é possível encontrar comunidades quilombolas nos centros urbanos, a exemplo da

comunidade de Chácara das Rosas em Canoas-RS, e a Família Silva, em Porto Alegre-RS (ambas já com o título definitivo de propriedade da terra).

28É importante salientar que foi a partir da década de 1950, com a colaboração da Organização das Nações

Unidas para a Educação Ciência e Cultura (UNESCO), que estudos sobre as relações raciais começaram a surgir com força, com a colaboração de autores importantes para as ciências sociais como Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Octavio Ianni entre outros.

29 Este trabalho foi apresentado originalmente como dissertação de mestrado em Antropologia Social, em 1980, no Departamento de Ciências Sociais da FFLCH da USP.

30A comunidade de Ivaporunduva recebeu o título coletivo de propriedade de seu território como

“remanescentes de quilombos” em 2000, através do ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo). Parte de suas lideranças possui atualmente papel ativo no movimento social “quilombola” nacional.

a pesquisa (...) demonstrou não haver vestígios aparentes de traços de cultura africana” (QUEIROZ, 2006, p.22).

Na sua percepção, as tradições culturais poderiam ter sido perdidas pelo grupo ao longo do tempo, além de serem impactadas pelo catolicismo na região, que poderia ter dissolvido o que restou desses costumes. Mas, Queiroz (2006) lembra que registros históricos comprovavam que a região onde se encontrava Ivaporunduva, teria sido povoada a partir do estabelecimento de escravos alforriados, e de senhores que teriam se deslocado tendo em vista as atividades mineradoras presentes ali. Com o declínio das lavras, uma das fazendas da região - especificamente a localizada onde hoje se situa Ivaporunduva - encerrou suas atividades. No imaginário social local, estas terras pertenciam a uma senhora chamada Joanna Maria que teria doado as mesmas para o patrimônio da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Com isto, não restou aos escravos agora libertos, “outra opção senão a de proverem por si mesmos a sua subsistência, voltando-se para o cultivo das ‘terras da santa’ ” (QUEIROZ, 2006, p. 43). Como afirma o autor, foi assim que a população de Ivaporunduva passou da condição de escravos para a de camponeses, sem saber que mais tarde passariam para uma nova categoria social: a de “quilombolas”.

A apresentação deste estudo em específico é importante para situarmos neste primeiro momento como essas comunidades eram conhecidas nas ciências sociais, antes de se tornarem sujeitos de direitos, após 1988. As discussões sobre as mesmas, em estudos anteriores aos de Queiroz (2006), também já traziam elementos comuns quanto à caracterização e nomeação dos grupos de negros que viviam no meio rural.

Estamos nos referindo a autores citados por Queiroz (2006) em sua dissertação, que haviam anteriormente publicado trabalhos sobre esta mesma perspectiva: Antônio Candido (1964) e Maria Isaura Pereira de Queiroz (1967). Ambos se preocuparam em analisar a sociabilidade, atividades religiosas, o trabalho, enfim o modo de vida desses grupos, mostrando-nos que questões e conceitos relacionados à identidade, etnicidade e direitos territoriais, ainda não tinham entrado em cena.

Outros trabalhos científicos já na década de 1980 e 1990, como o livro Terras e

territórios de negros no Brasil, organizado pelo núcleo de estudos sobre identidade e

relações interétnicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também abrem caminho para as discussões sobre o negro no meio rural, mas, trazendo novos elementos para o debate. Neste período, é possível notar a emergência da categoria “comunidade negra rural” junto aos pesquisadores que se interessavam pelo tema. Questões

relacionadas à aplicabilidade do Artigo 68 do ADCT, como uma legislação específica para estes grupos, também já podiam ser encontradas.

Entre os autores presentes neste livro podemos citar, o trabalho de Bandeira (1990) que traz reflexões sobre a territorialidade negra e a invisibilidade de direitos de ordem jurídica; Gusmão (1990) que discute o direito à terra como mercadoria privada e como “patrimônio comunitário” e; Leite (1990) que já começa a tomar as “comunidades negras rurais” a partir do conceito de “quilombo” como forma de resistência.

O primeiro texto do livro, de autoria de Bandeira (1990), relaciona as “comunidades negras rurais” à escravidão, ao apontar o domínio dos brancos sobre os negros na história do Brasil, e a posição inerte do Estado, que após a libertação dos escravos não teria oferecido nenhuma “proteção jurídica para assegurar condições de sua inserção como produtor independente na agricultura brasileira” (BANDEIRA, 1990, p. 17). É interessante notar que a autora, em nenhum momento, utiliza a categoria “quilombola” para se referir a essas comunidades; nomeando-as como “comunidades negras remanescentes”, ou “comunidades negras rurais”.

Em seguida Gusmão (1990, p. 27) afirma que os “grupos negros” são uma descoberta do meio agrário brasileiro e estes se diferenciariam de outros camponeses por serem capazes de acionar “elementos históricos de constituição da família negra”.

Assim, o vínculo com a escravidão também é notável nas ideias da autora. Além disso, defende que os conflitos territoriais neste meio rural surgem a partir da oposição entre propriedade privada e patrimônio coletivo, que marca um “tempo de luta” para estes “grupos negros”, com a “volta dos brancos” para suas terras. A autora repete os argumentos de Bandeira (1990, p. 21) para explicar o surgimento dos conflitos territoriais: “os brancos vão embora – os negros constituem comunidades étnicas – os brancos voltam – as comunidades étnicas de negros entram em dissolução”.

Para Leite (1990, p. 39) é necessário ressaltar que as “comunidades negras rurais” foram formadas por um processo histórico “que transformou africanos em escravos e em seguida em negros”. A autora utiliza a história do Quilombo de Palmares para exemplificar o início do “território negro”, que é como nomeia o que hoje se denomina como comunidades “quilombolas”.

Percebe-se que Leite também inicia reflexões sobre o “território negro” no espaço urbano (onde comunidades “quilombolas” também seriam tituladas mais tarde). Acredita ainda na ambiguidade entre estes dois espaços, pois segundo a mesma, no meio urbano a luta estaria no plano ideológico contra a discriminação, e já no campo, a luta pela

manutenção da terra exigiria “uma mobilização maior para assegurá-la, e significa o único meio de subsistência” dessas populações (LEITE, 1990, p. 45). Ou seja, a luta de grupos negros no contexto urbano, estaria relacionada ao “mundo das ideias”, e no meio rural possuiria uma forma mais material e urgente.

As conceituações e pontos de vista apresentados até aqui, marcam dois momentos de leitura sobre os negros no meio rural: como “camponeses negros” e como “comunidades negras rurais”. Ao apresenta-las, a ideia não é a de emoldurar e engessar conceitos e características que as marcam, mas sim, mostrar como as palavras têm o poder de nomear e engendrar novas categorias.

No entanto, de qualquer forma é interessante perceber que antes da Constituição de 1988, os trabalhos que tomavam como objeto de estudo os “camponeses negros”, traziam elementos de seu espaço, história e sua cultura, enquanto que a representação da categoria “comunidades negras rurais” nos trabalhos futuros, começaram a priorizar novos termos, reorientados pelo impacto do Artigo 68 do ADCT.

Estes novos trabalhos delinearam um novo objeto de estudos, relacionado a direitos territoriais e conflitos no meio rural, vividos por grupos que estavam começando a ser definidos como uma coletividade diferenciada. Estamos nos referindo aos “remanescentes de quilombos”.