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Os discursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do INCRA

A “questão quilombola” esteve desde seus primórdios alinhada às ações do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Ambos cumprem um papel fundamental no processo de titulação territorial e nas políticas relacionadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável que atravessam a realidade das “comunidades quilombolas”.

O Decreto nº 3.338/2000 instituiu o MDA, em substituição ao Ministério de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. Este Decreto foi posteriormente revogado por outro mais recente – o Decreto nº 4.723 de 2003. Neste dispositivo, é possível verificar a inserção de direitos e competências que deverão ser garantidos pelo MDA e por sua estrutura organizacional, tendo em vista as comunidades “quilombolas” como sujeitos de direitos específicos.

O primeiro artigo do Decreto nº 4.723 de 2003, apresenta as competências do MDA que estão relacionadas à reforma agrária, à promoção do desenvolvimento

109 O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, é uma autarquia federal criada pelo

Decreto nº 1.110, de 9 de julho de 1970 cuja missão prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. Atualmente o Incra está implantado em todo o território nacional, por meio de 30 superintendências regionais. Disponível em:< http://www.incra.gov.br/institucional_abertura>. Acesso em 09/11/2015.

sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares, e à identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.

Dentro do quadro institucional do MDA, o INCRA é o órgão que passa a se envolver diretamente com os direitos “quilombolas” ligados a titulação dos territórios. O MDA conta ainda com a Secretaria Executiva que deve auxiliar o ministro de estado na coordenação e supervisão destas atividades.

Pode-se afirmar que as abordagens sobre os direitos fundiários das comunidades “quilombolas” já começam a aparecer no II Plano Nacional de Reforma Agrária para o Brasil (PNRA), publicado em 2003 (o primeiro plano foi publicado em 1985) – mesmo ano em que foi emitido o Decreto nº 4887/2003, que sinaliza uma fundamental inflexão do Estado neste campo.

O II PNRA reconhece a diversidade social e cultural da população rural brasileira e a necessidade de efetivação dos direitos territoriais para os grupos tradicionais, afim de valorizar suas características econômicas e culturais, seu conhecimento e os saberes tradicionais para a promoção do etnodesenvolvimento (II PNRA, 2003).

É possível verificar no documento uma referência direta às comunidades “quilombolas”, onde há o reconhecimento de que este grupo “apresenta demandas distintas daquelas apresentadas pelos acampados e assentados, com suas raízes culturais e religiosas específicas” (II PNRA, 2003, p. 29). Assim, o MDA também passa a regular sua prática política através de categorias que interpretam o que seriam os “quilombolas” e produzem estes, como sujeitos diferenciados dos demais segmentos rurais, ou seja como grupos étnicos e tradicionais. Isto porque:

Trata-se de aproveitar suas experiências históricas e os recursos reais e potenciais da sua cultura, de acordo com projetos definidos segundo seus próprios valores e aspirações, portanto, a partir da capacidade autônoma de uma sociedade culturalmente diferente para guiar seu desenvolvimento (II PNRA, 2003, p. 29).

É neste contexto, que uma revisão das normas internas do MDA visando agilizar o processo de regularização de áreas “quilombolas”, começa a ser realizada. Ao mesmo tempo, que estas comunidades também passam a ser alvo de programas e políticas deste órgão, como por exemplo a inclusão, a partir do ano de 2007, na Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER).

Entre os beneficiários desta política estariam aqueles que o MDA nomeia de forma ampla como produtores familiares tradicionais. Estes seriam os extrativistas, ribeirinhos,

indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, povos da floresta, seringueiros e outros. As ações prioritárias da “Ater Quilombola”, segundo o MDA, objetivam o acesso do seu público alvo a serviços de assistência técnica e extensão rural pública, visando o fortalecimento da agricultura familiar e contribuindo para a promoção do desenvolvimento rural sustentável110

O discurso emitido pelo MDA acerca das comunidades “quilombolas”, as insere mais uma vez dentro de um contexto de especificidades, “relativas a etnias, raças, gênero, geração e diferentes condições socioeconômicas e culturais das populações rurais” (MDA, POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL, 2007, p. 20). Os “quilombolas” são, nesta chave interpretativa, caracterizados como agricultores familiares que possuem um modo de vida próprio, e que se relacionam de forma sustentável com os recursos naturais.

Em nossa busca por material documental que carregasse elementos discursivos referente à “questão quilombola”, dentro do campo de atuação do MDA e do INCRA, verificamos somente algumas publicações a respeito. Deste rol, além do material citado acima, fazem parte documentos legais direcionados ao processo administrativo de regularização fundiária das comunidades.

Este conjunto normativo vai sendo alterado a medida que novos critérios e interpretações vão sendo acrescentados ou excluídos. Fora deste rol, localizamos também a publicação no ano de 2012 de um relatório acerca do trabalho do MDA/INCRA com os processos de titulação territorial realizados. Este material enseja também recomendações e esclarecimentos para outras comunidades que venham a se autodefinir como “quilombolas” e que demandem a titulação de seus territórios.

As primeiras normas relacionadas à regularização fundiária dos “quilombos” podem ser encontradas na Portaria INCRA nº 307 de 1995. Esta define que o órgão deve efetuar a titulação111 das terras “quilombolas”, mas não especifica de forma mais

sistemática os procedimentos a serem adotados para tal.

Esta Portaria INCRA nº 307 apenas indica que as ações relacionadas aos assuntos fundiários referentes ao Artigo 68 do ADCT são de competência do INCRA, mas, não

110Em pesquisa realizada em 2011, que ouviu a totalidade das 9.191 famílias pertencentes a 169

comunidades “quilombolas” que já haviam recebido o título definitivo de seu território, Brandão, Da Dalt e Jorge (2015) encontraram um percentual de somente 1,3% de acesso a Ater.

111Lembramos que a primeira comunidade titulada foi a de Boa Vista, situada na região do Alto Trombetas,

chega a caracterizar o que seriam as comunidades “quilombolas. O documento cita apenas a necessidade da criação de um “projeto especial quilombola”, em respeito ao Artigo 68 do ADCT, no entanto, sem maiores definições. Outro ponto a ser destacado é que a Portaria limitava que o reconhecimento da propriedade definitiva destas comunidades ocorreria somente em áreas públicas federais desapropriadas por interesse social.

A categoria etnicidade, que já prevalecia na ressignificação do conceito de “quilombo”, ainda não haviam ganho forma institucional dentro do INCRA neste momento. No entanto, apesar da limitação que a Portaria nº 307/1995 carregava, o seu conteúdo já apresentava o reconhecimento estatal acerca da peculiaridade de grupos do meio rural que não subsistiriam de forma individualizada, mas sim sob a forma do uso comum de suas terras.

Neste sentido, esta primeira Portaria já apontava para a titulação coletiva da propriedade pertencente a estas comunidades – o que significa que, pelo menos, esta parte do aparato discursivo construído pela antropologia nacional e sistematizada na carta da ABA de 1994, já se tornara linguagem corrente neste órgão.

Em 2001 o INCRA, perde a prerrogativa de realizar as titulações, a partir do momento em que o governo FHC transfere tal competência para a FCP, o que já foi discutido por nós no primeiro capítulo desta Tese, quando apresentamos ao leitor o Decreto nº 3.912/2001. Após este Decreto de 2001, novos dispositivos emitidos pelo INCRA somente vêm a luz no ano de 2003, já no âmbito do Decreto nº 4887/2003, que amplia significativamente as funções do INCRA nas ações de regularização fundiária e formaliza a parceria entre este órgão e a FCP.

Baseando-se no Decreto nº 4887/2003 é que o INCRA passa a caracterizar as comunidades “quilombolas”: “como grupos étnicos, que se autodefinem a partir de relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições práticas culturais próprias” (INCRA, 2015)112. É possível verificar neste trecho categorias já

conhecidas por nós e emitidas por praticamente todos os agentes e agências envolvidos na “questão quilombola”.

A grande inflexão na “questão quilombola” representada pelo Decreto nº 4.887/2003, vai gerar a produção de material normativo visando organizar os novos critérios e procedimentos para a titulação dos territórios referidos no Artigo 68 do ADCT. O primeiro destes é a Instrução Normativa nº 16/2004 do INCRA, publicada com o

objetivo de regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das “comunidades dos quilombos”.

Neste documento, estas comunidades são definidas da mesma forma que no Decreto nº 4887/2003, como grupos étnico-raciais, detentores de recursos ambientais “necessários à preservação dos seus costumes, tradições, cultura e lazer, englobando os espaços de moradia e, inclusive, os espaços destinados aos cultos religiosos e os sítios que contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos” (Art. 4º, Instrução Normativa nº 16/2004). É importante observar que este dispositivo especifica como se fará a autodefinição da comunidade como “quilombola”. Esta:

Será demonstrada através de simples declaração escrita da comunidade interessada ou beneficiária, com dados de ancestralidade negra, trajetória histórica, resistência à opressão, culto e costumes (INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 16/2004, Parágrafo 1º).

Após este procedimento, caberia a FCP emitir uma certidão de Registro no Cadastro Geral dos Remanescentes de Comunidades de Quilombos do referido órgão. No ano de 2005, a Instrução Normativa nº 20 do INCRA é publicada, revogando a instrução Nº 16/2004. O objetivo desta nova Normativa era o mesmo do dispositivo anterior. No entanto, algumas considerações foram acrescentadas pelo INCRA. A autodefinição das comunidades, através de simples declaração e certidão de registro emitida pela FCP ainda estão presentes, mas acrescenta-se neste ponto mais um parágrafo:

§ 3º O processo que não contiver a Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos da FCP será remetido pelo INCRA, por cópia, àquela Fundação, para as providências de registro, não interrompendo o prosseguimento administrativo respectivo (Instrução Normativa nº 20 do INCRA de 2005).

Apesar deste artigo acima citado ter a função de dar celeridade ao processo de titulação ao não interrompê-lo devido à falta da certidão de reconhecimento, outras etapas acrescentadas à instrução normativa publicada em 2005, parecem ir em caminho contrário. Isto porque foi acrescentada a necessidade de realização de estudos sobre as comunidades que se identificarem como “quilombolas”, dando destaque à participação destas no processo de identificação do território e à importância de relatórios antropológicos para a caracterização espacial, econômica e sociocultural destas.

Além disto, a Instrução Normativa nº 20 de 2005, dá destaque à necessidade de coleta de informações mais amplas do que aquelas requeridas na Instrução Normativa nº 16 de 2004 (relacionadas diretamente a variáveis demográficas e socioeconômicas).

Na perspectiva da Instrução Normativa nº 20 de 2005 (como definido em seu 10º artigo), para o processo de titulação, o relatório técnico a ser produzido pelo INCRA, através de equipe interdisciplinar, deveria abordar, informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto as instituições públicas e privadas. Tal relatório deveria ser composto por:

I - Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sociocultural do território quilombola identificado, devendo conter a descrição e informações sobre:

a) as terras e as edificações que englobem os espaços de moradia; b) as terras utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural do grupo humano a ser beneficiado;

c) as fontes terrestres, fluviais, lacustres ou marítimas de subsistência da população;

d) as terras detentoras de recursos ambientais necessários à preservação dos costumes, tradições, cultura e lazer da comunidade;

c) as terras e as edificações destinadas aos cultos religiosos;

e) os sítios que contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos (INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 20/2005, ART. 10º).

A inclusão destas demandas mostra como a “questão quilombola” foi sendo transformada em um objeto específico dentro do INCRA, tendo em vista a sua atuação nos processos de titulação territorial. Em contrapartida, um forte cenário de oposição estava sendo formado contra estes dispositivos e contra os direitos territoriais que pareciam estar em vias de regulamentação.

De fato, o acréscimo de novos elementos nesta e em outras instruções normativas estão diretamente relacionados a um quadro de conflitos que começam a surgir. A importância e a força que as demandas por direitos dos “quilombolas” começam a ganhar no campo do Estado; principalmente o direito à terra, torna visível uma série de embates e impasses com grupos econômicos contrários ao Decreto nº 4.887/2003 (em especial com a bancada ruralista no Congresso Nacional).

A vocalização destes discursos contrários à titulação dos territórios “quilombolas” é o pano de fundo para a ação do INCRA, que se vê premido a ampliar as etapas e exigências do processo, com o fim de torná-lo mais “justificado” e melhor instruído frente a possíveis questionamentos judiciais. Assim, em conjunto com matérias jornalísticas,

setores conservadores ensaiaram um movimento “antiquilombola”113. É neste contexto,

que um grupo interministerial foi criado em 2007114, para analisar as questões

relacionadas as titulações territoriais destas comunidades.

É neste grupo de trabalho interministerial que se institui em 2008, a Instrução Normativa nº 49 do INCRA, revogando a anterior (a instrução normativa nº 20 de 2005). Nesta nova Instrução, há uma norma que será alvo de intenso debate. Trata-se do artigo 6º desta, que indica que a autodefinição da comunidade como “quilombola” deveria ser primeiro certificada pela FCP, mediante inscrição no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos do próprio órgão, para somente depois ter início o processo de titulação.

Esta condição muda a regra anterior que possibilitava ao INCRA iniciar o processo de titulação apenas com uma “simples declaração” de autodefinição da comunidade, enquanto se aguardava a emissão do certificado. Novas exigências para o relatório técnico de identificação e delimitação também são apresentadas na Instrução Normativa de 2008, que demanda maiores detalhamentos no âmbito do processo. Isto certamente traria maior morosidade e novos custos para a titulação.

O estabelecimento de novas regras, gerou uma série de discursos que questionavam a burocratização que vinha sendo imposta e que prejudicaria a efetividade do direito dos “quilombolas” ao título fundiário definitivo. Neste contexto, é o grupo de “intérpretes” da antropologia que se destaca mais uma vez, vocalizando os fatores negativos destas instruções normativas.

A ABA, diante desta configuração, publicou em 2008 um documento, intitulado Carta de Porto Seguro, que objetivava debater as instruções normativas publicadas pelo INCRA após o ano de 2003 e as consequências destas peças normativas. A demanda principal da ABA era que o Estado respeitasse o “saber antropológico”. Esta demanda se opunha, portanto, ao fato do INCRA ter definido uma lista de itens que deveriam obrigatoriamente estar presentes no relatório necessário para a tramitação do processo de titulação dos territórios “quilombolas”. Segundo a ABA:

(...) A definição da demanda de uma autarquia pública federal como o Incra não deve se dedicar ao exercício especulativo de prever todos os itens descritivos que podem vir a ser necessários à caracterização

113O “dossiê imprensa antiquilombola” pode ser pesquisado no site:<

http://www.koinonia.org.br/oq/dossie_antiquilombola.asp>. Acesso em 11/11/2015.

114 De acordo com Oliveira (2009) o Gabinete de Segurança Institucional vinculado ao Gabinete da

Presidência solicitou a Advocacia Geral da União um grupo de trabalho interministerial para rever a instrução normativa nº 20 de 2005 do INCRA. Tal dispositivo estaria dando poderes excessivos ao INCRA, o que estava causando conflitos entre alguns ministérios, como o do Meio Ambiente e Minas e Energia.

antropológica de um território étnico. A tentativa de dar exaustividade a tal relação de itens, além de implicar em uma concepção errada e distorcida do trabalho antropológico, tem duas graves implicações: a) ao estabelecer tal lista, a proposta de norma distorce elementos fundamentais do conceito de "grupo étnico", seja segundo a bibliografia consagrada sobre o tema, seja segundo a legislação vigente em âmbito nacional e internacional, em especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada como legislação nacional pelo governo brasileiro em 2004 (dec. nº. 5.051); b) ao estabelecer tal lista, a norma produzirá uma relação tão vasta quanto inútil de tópicos descritivos que, sendo incapaz de apreender o caráter variável e particular implicado na definição de cada situação territorial, criará, porém, uma obrigação, que transformará qualquer trabalho realizado em preza fácil de contestações, capazes de atacá-lo com base em argumentos puramente formais e externos ao seu mérito propriamente antropológico. Com isso, desconhece que, diferentemente de outras perícias técnicas, o relatório antropológico não trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores, mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua história, sociedade e ambiente, de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele. Como corolário deste papel principal, a Antropologia também tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado, ao confrontá-lo com concepções e conceitos que lhe são externos. A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agências de Estado como fruto de decisão política explícita, e não transferida para o exercício antropológico por meio de constrangimentos legais ou normativos. Diante destas considerações, repudiamos a pretensão do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropológicos, tendo em vista interesses conjunturais e externos ao legítimo debate público em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diálogo entre antropólogos e agências de Estado (...) (ABA, CARTA DE PORTO SEGURO, 2008 p. 2-3 – Grifos nossos).

Através desta Carta, percebemos que o grupo de “intérpretes” que se aglutina em torno do saber antropológico, procurou contrapor ao INCRA sua posição autorizada dentro do campo da “questão quilombola”. Esta adviria do fato dos antropólogos reivindicarem o lugar de “especialistas” nas complexas questões que giram em torno da organização social dos grupos que solicitam o autoreconhecimento como “quilombolas”.

Assim, os antropólogos explicitam que o relatório antropológico não poderia ser enquadrado em normas definidas nas instâncias burocráticas do Estado. Ao contrário, deveria ser construído a partir dos formatos teóricos e metodológicos próprios da produção do conhecimento no campo da ciência antropológica. Os resultados do trabalho de campo, realizados a partir desta perspectiva científica, seriam posteriormente “decodificados” e repassados ao Estado para fazer parte do processo correspondente as titulações territoriais. Este grupo de “intérpretes” responsáveis pela ressignificação do

conceito de “quilombo”, questionava a falta de autonomia intelectual e científica frente às determinações do INCRA.

O que estava em jogo era, mais uma vez, a interpretação da “questão quilombola”. Os antropólogos ao discutirem as instruções normativas publicadas pelo INCRA após 2003, referentes ao processo administrativo para titulações territoriais, apontavam que este não poderia ser reduzido a uma agenda de reforma agrária.

Por isso, a Carta de Porto Seguro dava destaque principalmente para a nomeação das “comunidades negras rurais” ou urbanas como “grupos étnicos” e à categoria “alteridade”, como formas de compreende-las e interpreta-las. Segundo a ABA, estas categorias e os significados produzidos por estas chaves interpretativas eram necessárias para a investigação antropológica e deveriam estar balizadas nas normativas do INCRA. Até este momento em que escrevemos (abril de 2016), a última Instrução Normativa sobre o processo de titulação territorial “quilombola” foi publicada pelo INCRA no ano de 2009. Trata-se da instrução de nº 57, que se encontra, portanto, em plena validade. O seu texto, mais uma vez, não acata as demandas dos antropólogos relativas à necessidade de maior autonomia na produção dos laudos que compõem o processo de titulação e nem abre mão da certificação como fase prévia independente do documento de autodeclaração da comunidade.

A lista de elementos que devem estar contidos no laudo antropológico foi também ampliada. Como podemos ver no art. 10º da Instrução Normativa nº 57 de 2009, o laudo deveria ser fundamentado por meio de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas, etnográficas, e antropológicas, com informações gerais sobre:

 Referencial teórico utilizado pelos antropólogos;

 Informações sobre relações territoriais e sobre a ancestralidade negra das comunidades;

 Apresentação da metodologia de trabalho e informações sobre aspectos demográficos, sociais e de infraestrutura;

 Informações censitárias e histórico da ocupação, com base na memória do grupo, relatos e fontes documentais e indicação de sítios arqueológicos que contenham reminiscências históricas;

 Levantamento de práticas tradicionais e coletivas e outros.

Percebe-se que parte destas demandas continuam apontando para requisitos que seriam mais adequados ao conceito histórico-cronológico (e, portanto, não ressignificado,