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A Constituição de 1988: disputas na formulação de um novo direito à saúde

1.2 Por uma concepção de saúde adequada ao Estado Democrático de Direito

1.2.1 A Constituição de 1988: disputas na formulação de um novo direito à saúde

Conforme observamos na primeira parte do capítulo, inúmeros fatores estavam em jogo para influenciar a construção da saúde na Constituição de 1988, com especial destaque para o embate de uma tradição privatista da saúde com uma nova visão representada pelos defensores da reforma sanitária. Interesses de diversos grupos estavam em contraposição. Velhas práticas arraigadas no sistema então existente, baseado em uma saúde de cunho curativo, foram revistas. Além disso, estava em pauta a construção de um direito à saúde.

A formação da compreensão de saúde da nova Constituição foi bem representativa do que Michel Rosenfeld chama de construção de uma Constituição e da formação de um sujeito constitucional130. O referido autor destaca que o sujeito constitucional não molda uma ordem política totalmente nova, não há uma criação no vazio131. Forma-se uma nova ordem sim, mas a partir das tradições e do contexto em que a nova Constituição é construída. Assim, a nova compreensão de saúde que se inaugurava em 1988 levou em conta a tradição privatista e as novas demandas do movimento sanitarista, as diversas concepções de saúde existentes na sociedade, além do modelo de saúde então vigente. Esse movimento é necessário, pois o texto exige contexto, e o processo de formação da Constituição recebe influxos de inúmeros setores sociais, sejam ou não hegemônicos.

Nesse ponto, reside uma característica interessante. Ao mesmo tempo em que são recebidos inúmeros influxos para a formação de uma identidade constitucional, deve-se buscar uma negação de todas outras identidades – um afastamento – para que seja possível a sua própria criação132. A partir daí, segue-se em um segundo momento no qual se busca uma identidade positiva, motivo pelo qual as identidades antes afastadas são revisitadas, mas, desta vez, sob o enfoque da nova identidade criada133.

Isto se dá porque os objetivos do constitucionalismo não podem ser perseguidos no vazio. O aparato institucional a ser criado deve se assentar “na história, nas tradições, no

130 ROSENFELD, 2003.

131 ROSENFELD, 2003: 34/35.

132 “A negação é crucial á medida que o sujeito constitucional só pode emergir como um ‘eu’ distinto por meio

da exclusão e da renúncia” (ROSENFELD, 2003: 50).

133 A busca por uma identidade positiva marca, sobretudo, o segundo estágio do desenvolvimento lógico do

sujeito constitucional. Mas uma tal identidade positiva só se torna possível se recorre às mesmas identidades descartadas no primeiro estágio de formação do sujeito constitucional (ROSENFELD, 2003: 53).

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patrimônio cultural da comunidade política pertinente”.134 Mas, como essa operação parte da Constituição, a incorporação das identidades pré-constitucionais antes descartadas agora se dá de forma seletiva. Segundo Rosenfeld, “as tradições incorporadas ao sujeito constitucional no segundo estágio o são em seu próprio benefício. Essas tradições só são invocadas à medida que sejam capazes de servir aos interesses do constitucionalismo”.135

Esse é o ponto diferencial para que a visão do movimento sanitarista sobre a saúde tenha sido incorporada de forma predominante na Constituição de 1988. Não foi apenas a força política deste movimento que permitiu tal incorporação, mas o fato de suas reivindicações serem compatíveis com o que exige o constitucionalismo (Estado de Direito e respeito aos direitos fundamentais) e com um princípio deontológico que deve ser respeitado em qualquer Constituição136 ou na interpretação de normas constitucionais: a igualdade.

Se assumirmos que o direito à saúde é importante para o exercício da cidadania e para uma vida digna – e é razoável partir deste pressuposto –, a saúde deve ser um direito garantido a todos, sem exceção, sob pena de desrespeito à igualdade. A manutenção de uma saúde, que era apenas direito do trabalhador, revelava uma tendência muito mais ao controle social do que à constituição de uma comunidade fundada em princípios137 nos quais o igual respeito e consideração devem ser pressupostos irrenunciáveis.

E são pressupostos irrenunciáveis porque a igualdade é fundamento tanto da Democracia quanto do Estado de Direito. Assim, uma Constituição elaborada sob o paradigma do Estado Democrático de Direito deve levar a igualdade a sério138, conforme bem destaca Ronald Dworkin:

Posso ter dado a impressão de que a democracia e o Estado de Direito são conflitantes. Não é isso; pelo contrário, esses dois importantes valores políticos estão enraizados em um ideal mais fundamental, o de que qualquer governo aceitável deve tratar as pessoas como iguais. 139

134 ROSENFELD, 2003: 53. 135 Id-Ibidem.

136 Para ROSENFELD (2003: 36), o constitucionalismo moderno requer além de governo limitado e a aceitação

do Estado de Direito, a proteção de direitos fundamentais.

137 Segundo DWORKIN (2003: 254/255), “os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus

direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam.”

138 “Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração

pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade” (DWORKIN, 2005: IX).

139 DWORKIN, 2000: 38. Conforme destaca Rosenfeld (2003:46), a igualdade é tão importante para Dworkin

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E, se o princípio democrático somente pode ser concretizado em conjunto com a idéia de Estado de Direito, conforme aponta Habermas140, a igualdade passa a ser necessária em qualquer regime que se pretenda democrático ou que respeite o rule of law. É assim que, ao final de intensos debates e embates de diferentes interesses e concepções, a compreensão de saúde como direito fundamental e, portanto, universal, foi acolhida pela Constituição Federal. Não se pode negar que algumas das reivindicações da ‘agenda privatista’ também foram inseridas no texto constitucional. Afinal, a partir dos parâmetros constitucionais, todas as identidades relevantes devem ser revisitadas, pois “as tradições pré-revolucionárias não são completamente erradicadas, mas transformadas e seletivamente incorporadas na nova ordem forjada pelo sujeito constitucional”.141 Espera-se isso principalmente das tradições que são

hegemônicas, como era o caso da privatista.

Assim, os grupos privados também influenciaram a elaboração do texto constitucional, contando com a articulação de partidos políticos mais conservadores – PTB, PFL (atual DEM) e PDS142. Obtiveram resultados políticos importantes, especialmente na garantia de participação da iniciativa privada no SUS143, mediante contratos e convênios.144

É importante observar que mesmo essa apropriação da concepção privatista está em consonância com os preceitos do constitucionalismo, pois é uma expressão dos direitos e liberdade, em especial da liberdade de empreender. Além disso, vale lembrar que a intenção de atribuir todas as funções de relevância pública (como a saúde) ao Estado é um traço característico do Estado Social que não deve ser repetido.

Os contornos gerais que do direito à saúde na Constituição Federal de 1988 mostram que o texto constitucional, fruto de intensos debates, foi concebido sob os auspícios de um Estado Democrático de Direito, pois não perpetuou a visão clientelista predominante até então. As diretrizes de universalização, igualdade e integralidade incluíram todos os cidadãos

140 HABERMAS, 2003: 171. 141 ROSENFELD, 2003:35. 142 CASTRO, 2003: 386.

143 Para confirmar tais esclarecimentos, basta observar a dicção dos artigos 197 e 199 da Constituição Federal de

1988: “art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. [...] art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.”

144 CASTRO, 2003: 386. Para confirmar tais esclarecimentos, basta observar a dicção dos artigos 197 e 199 da

Constituição Federal de 1988. “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”

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como potenciais usuários do sistema público de saúde, ao tempo que as diretrizes de participação social e descentralização da gestão possibilitaram aos usuários dos SUS serem não só clientes, mas também co-gestores do sistema.

Essa notável evolução normativa abriu espaço ao desenvolvimento do sistema de saúde, contudo, uma norma, por mais adequada que seja, não pode revolucionar sozinha a realidade e salvar a sociedade de seus males. O texto constitucional escrito é invariavelmente incompleto e aberto a novas interpretações145, e a partir de sua promulgação inicia-se o seu processo de incessante reconstrução. Tal processo é natural e necessário, contudo, pode também dar espaço a distorções aptas a utilizar o direito à saúde contra o próprio direito à saúde.