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As distorções após a Constituição de 1988

1.2 Por uma concepção de saúde adequada ao Estado Democrático de Direito

1.2.2 As distorções após a Constituição de 1988

A tradição privatista que dominou as ações de saúde durante décadas não pôde simplesmente ser extirpada dos serviços de saúde. Da mesma forma, os interesses de influentes grupos privados que não foram contemplados na Constituição não abandonaram a cena política, e não demoraria a estar novamente influenciando o discurso constitucional e a produção legislativa infraconstitucional.

Várias práticas apontam para uma crescente ‘privatização’ da saúde pública, pois o SUS é alvo constante apropriações para atender a interesses de determinados setores privados: hospitais particulares, laboratórios, indústria de insumos hospitalares, planos de saúde146 etc.

Mas na nova conjuntura inserida pela Constituição de 1988 não foi mais possível identificar claramente a ação de grupos comprometidos com a defesa de interesses coletivos na área de saúde e outro grupo, comprometido com interesses econômicos, voltado a uma individualização lucrativa da saúde. As agendas sanitarista e privatista ganharam novos contornos.147

145 ROSENFELD, 2003: 18. 146 LONDRES, 2006:88/90.

147 CASTRO, 2003:387. Todavia, não é difícil perceber que um modelo voltado à assistência médica, individual

e hospitalocêntrica se apresenta muito mais lucrativo para o setor privado do que um modelo que prioriza a prevenção e a promoção da saúde, buscando uma abordagem mais coletiva desta. Da mesma forma, a pesquisa de tratamento de doenças e desenvolvimento de medicamentos raramente volta-se para os males que atingem grande parte da população, pois estes são exatamente os que atacam a parcela mais pobre e, mais uma vez, atender ao interesse coletivo contraria os interesses econômicos. Como salienta Claudia Fernanda de Oliveira

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A saúde suplementar ganhou grande projeção no cenário nacional, definindo uma nova exclusão após a Constituição de 1988. O crescimento do setor privado recebeu tratamento legal, por meio que a Lei nº 9.961/00, regulamentada pelo Decreto nº 3.327/00, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), além de regulamentar o plano de saúde e o seguro privado de assistência à saúde148. A regulamentação e regulação do setor privado, ao mesmo tempo que destinava-se a coibir abusos contra seus usuários, reafirmou a segmentação entre o sistema público e o privado, além de realçar as desigualdades latentes e o papel de cliente que os cidadãos desempenhavam nesse cenário.

A segmentação criada não trouxe, no entanto, segurança para os incluídos (usuários de planos de saúde), pois o setor privado, além de furtar-se de qualquer ação voltada à saúde pública, cria obstáculos ao acesso à saúde para seus próprios clientes e acaba por transferir parte de suas demandas para o setor público como forma de garantir seu lucro.149

Não são apenas problemas e prejuízos que o setor privado transfere para o setor público, mas também a lógica econômica em que se baseia a sua organização. As ações e políticas públicas do SUS também são influenciadas pela lógica de mercado em determinadas circunstâncias, conforme alertam Sueli Gandolfi Dallari e Deisy de Freitas:

De fato, o que se verifica, então, é que as estruturas estatais de prevenção sanitária passam a estabelecer suas prioridades não mais em virtude dos dados epidemiológicos, mas, principalmente, em decorrência da análise econômica do

custo/benefício. E isso, por vezes, acaba implicando a ausência de prevenção,

elemento historicamente essencial ao conceito de saúde pública.150 (grifo nosso)

A influência de interesses econômicos e da lógica econômica não prejudica apenas a prestação de ações preventivas151, como também as curativas, contribuindo para a queda da

Pereira (2004: 42): “Apenas 10% dos gastos mundiais em investigação e desenvolvimento médico são orientados para as doenças dos 90% mais pobres da população mundial.”

148 Apesar da normatização do setor várias polêmicas ainda permanecem, como a limitação da cobertura dos

riscos de doença, a cobertura de doenças preexistentes, a portabilidade do prazo de carência, entre outras.

149 Algumas das contradições do setor privado são bem descritas por Andréa Lazzarini Salazar, Karina Rodrigues

e Vidal Serrano: “Enquanto o sistema público trata, como não poderia deixar de ser, da saúde integralmente, de maneira harmônica e igualitária, tanto no que diz respeito ao aspecto preventivo, como também o assistencial e curativo, o sistema privado consegue a proeza de tratar a saúde de forma fragmentada, além de praticamente ignorar as ações de prevenção. Enquanto o sistema público deve garantir a assistência em todos os níveis de complexidade, o privado, fica desobrigado de garantir cobertura aos procedimentos ditos de alta complexidade para os portadores de doenças preexistentes, nos dois primeiros anos de contrato. Temos, dessa forma, uma postura por vezes contraditória, iniciada através da legislação e seguida pela atuação do Poder Público que, de um lado, se diz impossibilitado de implantar os princípios e diretrizes do SUS, especialmente devido à falta de recursos e, de outro, acaba permitindo a transferência do ônus dos tratamentos mais caros ou não cobertos pelas operadoras de planos de saúde exatamente para o sistema público” (grifo nosso) (SALAZAR, 2003: 375).

150 DALLARI e FREITAS, 1995.

151 Em breve síntese, o aspecto curativo é ligado à saúde como uma singela ausência de doenças. As ações de

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qualidade do serviço prestado às populações mais carentes em comparação aos detentores de planos de saúde. Um bom exemplo é a questão da implantação do sistema de ‘duas portas’152, meio pelo qual se institui nos hospitais públicos um atendimento diferenciado aos pacientes. De um lado os usuários de planos privados de saúde, que pagam e recebem pronto atendimento e, do outro, o restante da população, com atendimento gratuito, porém de baixa qualidade. Atitude semelhante também é encontrada em hospitais particulares conveniados ao SUS que, com freqüência, rejeitam pacientes do SUS para atender aos que utilizam plano de saúde153.

Alguns hospitais públicos ainda enfrentam o problema da criação de fundações de

apoio a eles vinculadas. Tais entidades, que são, na prática, uma distorção da saudável parceria entre o setor público e o privado, buscam captar recursos públicos para aplicação em ações e serviços científicos ou culturais de interesse de seus dirigentes. É a utilização do dinheiro público para a consecução de interesses individuais, muitas das vezes totalmente dissociados das finalidades às quais foram destinados os recursos públicos154.

As práticas mencionadas, que podem ser associadas a uma visão da saúde vinculada aos ideais do Estado Liberal, convivem com outras ações que veiculam uma influência das diretrizes que caracterizavam o Estado Social.

Uma dessas ações é a crescente intervenção do Judiciário no sistema público de saúde155. As ordens judiciais se direcionam especialmente à prestação de serviços de saúde

Não há ação sobre a causa, mas apenas assistência para a recuperação do doente. No segundo aspecto, o

preventivo, o esforço concentra-se na prevenção das doenças, a ação é adiantada, contudo o foco permanece o mesmo: a doença. A diferença entre as concepções está no tempo de intervenção. O terceiro aspecto traz uma abordagem diferente. Esse novo marco foi consagrado na Constituição da Organização Mundial de Saúde – OMS. Ele vincula a saúde às questões de bem-estar e qualidade de vida. Ultrapassa os aspectos curativo e

preventivo para uma atitude de promoção da saúde. Tal noção aproxima a saúde de suas questões determinantes e condicionantes, buscando mudar o enfoque da doença para a saúde em si.

152 “Tem sido muito comum os hospitais públicos instituírem um sistema de atendimento desigual ao paciente. A

chamada ‘duas portas’ traduz-se pela preferência de atendimento, nos hospitais públicos, às pessoas que possuem planos ou seguro-saúde, ou que se dispõem a pagar pelos serviços prestados. Para cada tipo de clientela, um tipo de acesso aos serviços; para os que pagam, garante-se atendimento prioritário, sem filas, em sala de espera confortável, com consulta pré-agendada etc.; aos demais (cidadãos brasileiros, com direito à saúde), o atendimento é de segunda classe; consulta e exames com espera de meses, filas, a insensatez e o desrespeito na marcação de todas as consultas do dia em um único horário, sendo atendido aquele que chegar primeiro; salas de espera sem o menor conforto, cirurgias agendadas em datas incompatíveis com a necessidade da intervenção e assim por diante” (CARVALHO e SANTOS, 2002: 79).

153 “Embora legalmente injustificável, visto que as operadoras privadas de saúde devem obedecer às diretrizes do

SUS, e, também, moralmente questionável, as instituições privadas recusam-se (ou procuram desculpas para tanto) a internar pacientes que não tenham seguros de saúde privados, pois é certeza de deficit devido à baixíssima contraprestação governamental.” (SCHWARTZ, 2001: 150)

154 Sobre as fundações de apoio e as distorções por elas geradas cf. Carvalho e Santos, 2002: 95/99. 155 Fenômeno que trabalharemos com maior atenção no capítulo 2.

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curativos: medicamentos de alto custo, cirurgias, internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), entre outros. Por meio do Judiciário, atualmente, é possível garantir o acesso a praticamente qualquer serviço de saúde.

Por melhores que sejam as intenções dos magistrados ao intervirem na gestão do SUS, a formatação atual dessa intervenção não têm contribuído para a redução da dependência do cidadão em relação ao Estado, e, tampouco, tem colaborado para o desenvolvimento do SUS156. Ao contrário, da forma como tem ocorrido, as ações judiciais demonstram um potencial para realçar desigualdades e desvalorizar a participação social na saúde.

Em suma, com o propósito de realizar o direito à saúde, tanto influências privatistas quanto visões estatizantes têm interpretado esse direito de forma que podemos considerar incoerentes com o paradigma do Estado Democrático de Direito.

1.2.3 A valorização da participação social em busca de inclusão: uma concepção