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As alternativas institucionais: em busca de uma resposta correta

3.1 A Magistratura de 1º Grau: Juízos singulares, experiências múltiplas

3.1.2 As alternativas institucionais: em busca de uma resposta correta

A complexidade e os desafios que as demandas por medicamentos trouxeram para o seio do Judiciário Distrital foi tratada com indiferença pela maior parte dos magistrados que, após alguns debates iniciais, aderiram a uma conformação jurisprudencial que impressiona por sua pobreza discursiva.

O crescimento das demandas por medicamentos, contudo, chamou a atenção de alguns magistrados que perceberam a deficiente prestação jurisdicional dispensada a tais casos. A experiência adquirida no reiterado enfrentamento dos problemas destacados no tópico anterior fomentou a busca por critérios mais claros para decidir sobre saúde e a disposição de melhor apreender as peculiaridades de cada caso concreto.

Dentre os critérios construídos merecem destaque:

a exigência de que o medicamento postulado em Juízo seja registrado pela ANVISA e tenha sua comercialização liberada no Brasil, de forma a evitar que a Administração Pública seja obrigada a adquirir fármacos de eficácia duvidosa ou em fase experimental;

a prescrição do tratamento por médico vinculado ao SUS, em atenção ao que determina a Portaria 14 da Secretaria de Saúde335;

a inclusão do medicamento na RENAME ou na REME-DF (medicamento padronizado).

A adoção de tais critérios, longe de representar uma solução final, deu início a um debate efetivo e plural: finalmente o Judiciário passou a ter algo a dizer sobre saúde. Outras questões importantes surgem a partir do estabelecimento dessas balizas: o que fazer se a

335 Regra geral, para aferir se o médico é conveniado ao SUS, procura-se na prescrição o timbre da SES/DF. Tal

procedimento, com o tempo, mostrou-se insuficiente, pois vários dos médicos que trabalham para o SUS também fazem a clínica particular e podem usar facilmente o papel timbrado da SES/DF para aviar receitas aos seus pacientes de clínicas privadas. É mais um exemplo de apropriação privada do serviço público.

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prescrição do medicamento for realizada por médico vinculado ao SUS, mas no exercício da medicina privada? E se o único medicamento disponível para determinado tratamento não for padronizado? O Juiz pode determinar o fornecimento de um medicamento genérico em substituição ao de marca que foi postulado na inicial?

Essas e outras ponderações permitiram que as novas demandas por medicamentos deixassem de ser ‘mais do mesmo’ – um modelo que deveria receber uma resposta padrão –, e obtivessem a atenção devida para as peculiaridades que tornam único cada caso. E a individualização dos casos exige instrução adequada dos processos, exatamente o que as partes não estavam dispostas a fazer.

Assim, para atender à necessidade de uma adequada instrução processual, um número crescente de Juízes decidiu lançar mão de seus poderes instrutórios. Nesse sentido, novas ações merecem destaque:

a exigência de comprovação da recusa do fornecimento do medicamento por parte da Secretaria de Saúde, de modo a permitir um controle adequado do ato administrativo;

remessa de ofícios à Secretaria de Saúde (ou o contato telefônico) para a obter informações sobre o tratamento prescrito, a possibilidade de substituição terapêutica por um medicamento padronizado, os custos do tratamento, dentre outras informações importantes para firmar a convicção do magistrado;

marcação de audiência preliminares (ou de justificação), para oitiva das partes e, quando necessário, do médico que prescreveu o tratamento e do profissional que represente a Secretaria de Saúde.

A iniciativa de marcar audiências preliminares foi uma das experiências mais bem sucedidas e difundidas na 1ª instância do TJDFT. Com esse novo procedimento, aplicado pelo Juiz Alvaro Ciarlini e experimentado inicialmente na 2ª Vara de Fazenda, foi possível estabelecer um contato direto com os usuários do SUS e obter valiosas informações para a resolução da demanda. Muitas vezes, o simples estabelecimento do diálogo nas audiências foi suficiente para por fim às lides e facilitar que os autores obtivessem acesso ao tratamento adequado ao seu quadro clínico.

Esse esforço repercutiu na postura das partes em Juízo – em especial o DF – que passaram a instruir de forma mais adequada os autos no intuito de obter êxito na demanda. Da mesma forma, o implemento qualitativo nas decisões de 1ª instância aumentou a influência

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delas nos julgamentos proferidos em 2ª instância. Em suma, a postura ativa dos magistrados na busca de informações tem transformado o tratamento dado às demandas por medicamentos.

Como é de se esperar, nem todas as reações a essa nova postura podem ser consideradas legítimas. Dentre as práticas questionáveis está o movimento dos advogados dos autores, em especial a Defensoria Pública do DF336, de direcionar a distribuição das demandas para o plantão judicial, mesmo que a causa não seja urgente. O objetivo é fugir da análise criteriosa dos Juízes das Varas de Fazenda Pública e obter a resposta padrão favorável que os Juízes Plantonistas costumam apresentar337. Outra prática comum dos autores é a realização de pedido administrativo concomitante com a ação judicial. Conforme narram os magistrados, é comum que o demandante faça a requisição administrativa em um dia, e no seguinte distribuição sua ação cominatória.

A despeito de tais abusos, as contribuições obtidas com as experiências vividas pela magistratura de 1º grau são muito relevantes para formular as estratégias para lidar com as conseqüências da judicialização das políticas de saúde. Isso porque, além do potencial de mudança que tais ações apresentam, reconhecemos que são legítimas sob o prisma do Estado Democrático de Direito, pois valorizam a participação do cidadão no processo judicial e dão o devido valor às políticas públicas e normas administrativas que estruturam o SUS.

Além disso, tais experiências possibilitaram a superação de debates estéreis – tal qual a dicotomia direito à saúde x reserva do possível – e trouxeram à tona os problemas reais subjacentes à judicialização das políticas de saúde. Quatro sérios problemas destacados pelos magistrados entrevistados parecem essenciais para nosso estudo:

lidar com a falta de organização administrativa e planejamento da SES, que gera um desabastecimento de medicamentos padronizados, sem subverter a organização administrativa que estrutura o SUS;

o descompasso entre os tratamentos prescritos pelos médicos da SES em relação às diretrizes terapêuticas e protocolos clínicos aprovados pelos gestores

336 Grande parte das ações judiciais nessa área é patrocinada pela Defensoria Pública do DF, cuja denominação

correta é Procuradoria de Assistência Judiciária do Distrito Federal.

337 Cumpre destacar que os Juízes Plantonistas em geral são magistrados mais modernos que ainda não tiveram a

experiência de trabalhar nas Varas de Fazenda Pública e, por isso, não estão a par das novas experiências que descrevemos. O índice de provimento dos pedidos é muito alta. Mas já existe, felizmente, um movimento dos magistrados das Varas de Fazenda para conscientizar os Juízes Plantonistas desta ‘estratégia’ e transmitir o conhecimento obtido com as novas experiências realizadas.

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do SUS, o que denota ou uma indisciplina médica ou a desatualização das políticas públicas de saúde (ou ambas)338;

a difícil tarefa de compatibilizar a legislação sobre saúde com as políticas públicas nessa seara, especialmente quando os medicamentos postulados não são padronizados, mas são os únicos adequados ao tratamento do usuário do SUS que vem a Juízo;

respeitar as políticas públicas, em especial a RENAME e a REME-DF, e ao mesmo tempo lidar com as freqüentes denúncias de desatualização destas listas339.

Uma última contribuição importante dessa nova postura é sua capacidade de influenciar a 2ª instância. Com maior ou menor entusiasmo, os magistrados entrevistados afirmaram que perceberam um reflexo de suas idéias nos votos dos Desembargadores. Além disso, a instrução processual mais completa permitiu que os Desembargadores, que tem poder de revisão sobre os Juízes das Varas de Fazenda, pudessem ter acesso a peculiaridades do caso e ponderar sobre a forma como suas decisões podem ser efetivamente cumpridas e evitar a imposição de ordens inexeqüíveis340.