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Como pensar uma saúde diferente?

1.1 A Construção do Sistema de Saúde no Brasil: controle, exclusão e esperança

1.1.4 Como pensar uma saúde diferente?

A sociedade disciplinar parece ter “evoluído” de tal forma que as ferramentas que

prendem os indivíduos aos controles dos sistemas de disciplina não necessitam mais ser tão fortes. A vida longe dos controles dos diferentes sistemas criados pelos saberes-poderes parece ser impossível. Os novos direitos adquiridos aumentam a dependência em relação ao Estado125, ao tempo em que expõe os cidadãos a uma nova e perigosa forma de exclusão. Temos, então, sérios problemas a enfrentar no caminho rumo a uma maior inclusão.

No campo da saúde, um importante passo no sentido de enfrentar essa situação é buscar entender a quem cabe excluir, quem pode decidir acerca da vida e da morte dos indivíduos e, a partir daí, pensar a quem deve pertencer essa autoridade. Sabemos que essa decisão já não cabe mais a um único soberano. Em nossa sociedade, tanto o poder soberano está diluído como também qualquer um pode estar na situação de homo sacer. Não é mais tão fácil distinguir aqueles que exercem o poder e os que estão submetidos a ele. A realidade é mais complexa126.

Para evitar que o controle exercido sobre os cidadãos (ou a ausência dele) implique disposição da vida dos que são considerados “irrelevantes”, é importante definir quem tem direito a decidir sobre a vida e a morte dos indivíduos, e quem deve assumir o papel de soberano.

Os estudos de Foucault e Agamben mostram que esse poder de decisão passou ao longo da história para as mãos de quem detém o poder biopolítico. Especificamente no campo

125 A experiência dos paradigmas anteriores já demonstrou que a exacerbação da autonomia individual ou da

colonização do espaço público pelo Estado pode gerar sérias distorções. A passividade diante do Poder Público pode aumentar de forma perigosa uma dependência que já é uma característica moderna. Como destaca Agamben (2002: 127): “[...] antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo mas contínuo. É como se, a partir de um certo ponto, todo o evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejariam liberar-se” (grifo nosso).

126 Agamben (2002: 128) enfoca essa situação: “Se, em todo Estado moderno, existe uma linha que assinala o

ponto em que a decisão sobre a vida torna-se decisão sobre a morte, e a biopolítica pode desse modo converter- se em tanatopolítica, tal linha não mais se apresenta hoje como um confim fixo a dividir duas zonas claramente distintas; ela é, ao contrário, uma linha em movimento que se desloca para zonas sempre mais amplas da vida social, nas quais o soberano entra em simbiose cada vez mais íntima não só com o jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o perito, com o sacerdote”

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da saúde, percebe-se que esse poder de decisão sobre a vida e a morte127 pertence hoje tanto àqueles que possuem determinados saberes – médicos, farmacêuticos, juristas, etc. – quanto aos que possuem (ou podem influenciar) o poder político.

Portanto, para evitar a exclusão, é necessária uma mudança na visão de quem é esse poder soberano. Ora, se os corpos e a vida dos indivíduos estão submetidos a uma decisão, eles mesmos devem ser os protagonistas e não apenas o objeto dela. Em outras palavras, se é a decisão política e o conhecimento que definem a vida dos cidadãos, é necessário que eles tomem essa decisão128 também participem na produção do conhecimento.

A valorização da participação social tanto no espaço da política - por meio da participação na formulação das políticas públicas e do controle social de sua execução -, quanto no compartilhamento dos saberes que estruturam o sistema de saúde (médico, jurídico, administrativo, etc.) pode transformar a potencial exclusão a qual os cidadãos estão expostos em uma efetiva inclusão de todos.

Isso porque na participação reside a grande esperança de mudança de nosso sistema de saúde. Se por um lado, a universalização do direito à saúde criou uma perigosa exclusão que potencialmente alcança todos os cidadãos, a inclusão formal que ela gera também abre espaço a uma inclusão efetiva sem precedentes. A universalização é, ao mesmo tempo, possibilidade de mais exclusão e oportunidade para inclusão efetiva. E a participação social é o fiel da balança.

É importante que os cidadãos tenham meios, procedimento e canais por meio dos quais possa participar e, a partir de então, abandonar o papel de clientes e buscar o protagonismo na formação do sistema de saúde.

Nossa proposta de leitura se baseia, portanto, na valorização da participação social como elemento para mudanças estruturais em todos os níveis de nosso sistema de saúde. No entanto, ela ainda carece de justificação normativa em face da Constituição.

127 AGAMBEN (2002: 171) destaca que nem mesmo vida e morte são conceitos propriamente científicos, mas

conceitos políticos que adquirem significado preciso somente através de uma decisão.

128 Se Foucault e Agamben estavam certos ao afirmar que as decisões (bio)políticas é que definem o que será

feito de nossos corpos (o que pode ir desde um produtivo controle ao extermínio), é imprescindível que antes possamos definir os contornos dessas políticas. Como conclui AGAMBEN (2002: 193), “nós não somo apenas, nas palavras de Foucault, animais em cuja política está em questão suas vidas de seres viventes, mas também, inversamente, cidadãos em cujo corpo natural está em questão a sua própria política.”

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1.2 Por uma concepção de saúde adequada ao Estado Democrático de