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Os reflexos na gestão da assistência farmacêutica do SUS

2.3 Reflexos da atuação do TJDFT na Administração Pública do Distrito Federal

2.3.1 Os reflexos na gestão da assistência farmacêutica do SUS

É comum ouvir dos juízes do TJDFT, em tom de brincadeira, que sua função agora é “dar remédios”282 e que o governo deveria facilitar logo as coisas e colocar uma farmácia em cada gabinete. Mal sabem os magistrados que seu anseio já foi atendido há algum tempo, pois há cinco anos já está em funcionamento uma farmácia destinada só para eles: a Farmácia Ações.

Essa farmácia é um órgão da SES vinculado à Diretoria de Assistência Farmacêutica - DIASF283. Foi criada em 2004 e está localizada no Parque de Apoio da Secretaria de Saúde/SAI. Tem como função atender aos pacientes com mandados judiciais, para os quais deve dispensar todos os medicamentos constantes das ordens judiciais, exceto alguns excepcionais que são dispensados na Farmácia de Alto.284

Na assistência farmacêutica, a interface entre o Judiciário e a Secretaria de Saúde é feita por dois órgãos: a Procuradoria Geral do Distrito Federal – PGDF, responsável pela defesa do DF em Juízo, e a Assessoria Jurídico-Legislativa da SES – AJL, cuja incumbência é dar suporte jurídico à Secretaria de Saúde.

282 Boaventura de Souza Santos, ao fazer uma análise do Judiciário Brasileiro, deu destaque a esta situação:

“Como me referiu um magistrado deste país uma boa parte do seu trabalho é dar medicamentos” (SANTOS, 2007: 20).

283 A Diretoria de Assistência Farmacêutica (DIASF) foi criada pelo Decreto Nº 24.421 /04 e passou a ser o

órgão elaborador e gestor da política de Assistência Farmacêutica da SES/DF, em consonância com a orientação da Política Nacional de Medicamentos do Ministério da Saúde. Esse órgão centraliza as várias etapas da assistência, formando o chamado Ciclo da Assistência Farmacêutica, por meio das gerências técnicas, administrativas e operacionais.

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Os mandados judiciais são entregues pelos oficiais de justiça à PGDF, que os encaminha ao protocolo da SES-DF285, de onde são direcionados à AJL. Esse órgão é o elo entre as ordens judiciais e a SES, pois é responsável por acompanhar o cumprimento e por fornecer informações que darão suporte à elaboração das defesas judiciais286. Em suma, essa assessoria recebe e encaminha à Procuradoria Geral do DF todos os documentos necessários à instrução processual e, nos mandados de segurança, elabora as informações das autoridades impetradas.

A DIASF efetivamente analisa e executa a ordem judicial. Quando o medicamento está disponível em seu estoque, encaminha a determinação de cumprimento para a Farmácia Ações, órgão que realiza a dispensação do fármaco aos autores das ações judiciais. Por outro lado, quando não há estoque do medicamento, é feita aquisição em caráter emergencial, com dispensa da licitação.

Esse é o caminho geralmente percorrido quando um magistrado determina o fornecimento de medicamentos. É muito diferente do procedimento adotado em situações normais, nas quais os usuários do SUS postulam administrativamente os remédios indicados por seus médicos. Contudo, não parece um procedimento muito complicado, e realmente não é quando o fármaco solicitado está padronizado pela SES e, portanto, relacionado na REME- DF.

Em geral há estoque dos medicamentos padronizados, e no caso de desabastecimento – situação comum no DF – a compra emergencial é feita com preços já registrados com antecedência. Por outro lado, os medicamentos não padronizados raramente contam com algum estoque, até porque a Administração Pública não adquiri-los de forma ordinária e planejada287. A conseqüência disso é que os gestores da saúde se vêem obrigados a adquirir produtos pelo preço normal de mercado, sem os descontos que normalmente obtêm em compras de maior vulto. Ademais, é comum que os medicamentos não padronizados sejam fabricados por apenas um único laboratório, que atua em regime de monopólio e pode praticar

285 É comum, entretanto, que nos mandados de segurança, por serem impetrados contra o Secretário de Saúde, as

ordens judiciais sejam encaminhadas diretamente à SES-DF.

286 A assessoria jurídica abastece a PGDF com informações sobre o medicamento solicitado: padronização,

importação, registro sanitário, disponibilidade de estoque na DIASF e esquema terapêutico entre outros.

287 É importante destacar que alguns medicamentos demandados em ações judiciais são padronizados apenas

para uso hospitalar, ou seja, o estoque existente na SES destina-se apenas ao abastecimento de hospitais, e não à dispensação aos usuários em tratamento ambulatorial. Dessa forma, quando se postula um medicamento dessa categoria, cria-se um problema de gestão semelhante àqueles provenientes do fornecimento de medicamentos não padronizados.

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preços muito elevados288. E a Administração é obrigada a adquirir tais produtos independente das condições de mercado e no exíguo prazo conferido pelos magistrados, que geralmente varia entre 72 horas e 10 dias289.

A intervenção judicial cria um padrão diferente de atuação dentro do SUS. Duas formas de selecionar, comprar e dispensar medicamentos. Duas formas de realizar a assistência farmacêutica. Duas formas de tratar os cidadãos290.

A coexistência da gestão ordinária do SUS com uma administração paralela destinada aos pleitos judiciais cria, portanto, não somente uma clara diferença de tratamento entre os usuários do SUS, mas também afeta em várias etapas o que os gestores chamam de “Ciclo da Assistência Farmacêutica”. A figura a seguir ilustra bem esse ciclo:

Figura 1.1: Ciclo da Assistência Farmacêutica (fonte: FIOCRUZ, 2001)

288 É exatamente para alcançar essa posição que inúmeros laboratórios que detêm a patente exclusiva de alguns

medicamentos, estimulam médicos a receitar seus produtos mediante o pagamento de comissões ou outras vantagens.

289 Para se ter uma idéia do quão insuficiente é esse prazo, o tempo médio para uma compra por meio de pregão

por registro de preço é de 120 dias, quando o medicamento já está contemplado em ata de registro de preço, o tempo médio é de 45 dias. Nas compras emergenciais, o prazo médio é de 30 dias. Somente a compra direta com provisão de fundos é capaz de atender tal prazo, pois a compra é feita de forma quase imediata, pois o medicamento é adquirido em aproximadamente 24 horas (GUIMARÃES et alli, 2006: 41).

290 Regra geral, a dispensação de medicamentos para os usuários do SUS é feita conforme critérios técnico-

administrativos, que são ditados pelo Ministério da Saúde quando existe repasse de verbas federais. Os medicamentos de atenção básica são dispensados nas farmácias dos centros de saúde e hospitais nos quais o paciente é atendido. Os medicamentos excepcionais (também denominados de alto custo) são entregues no Núcleo de Medicamentos de Alta Complexidade (Numac) que fica próximo ao Pronto-socorro do HBDF. Para receberem estes medicamentos os pacientes são cadastrados na Dipac (Diretoria de Procedimentos de Alta Complexidade) e apresentarem a documentação exigida pelo Ministério da Saúde.

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O grande e desarticulado291 volume de ordens judiciais para o fornecimento de medicamentos afeta gravemente o primeiro e mais importante aspecto desse ciclo: a seleção292. Quando os magistrados determinam o fornecimento de medicamentos não padronizados, e isso ocorre em aproximadamente 49,7% dos casos293, é descaracterizado todo o processo de seleção de quais fármacos deveriam ser adquiridos pela SES e disponibilizados para as farmácias públicas. Ademais, 62% das receitas emitidas por médicos do SUS e 86,5%294 das emitidas por médicos particulares indicam apenas a marca do medicamento, e não o nome da substância ativa, que é o padrão de compra para os gestores o SUS por imposição da Lei nº 9.787/99295. Tal situação dificulta ainda mais a seleção dos itens e impede a aquisição de substitutos genéricos aos medicamentos de marca.

A etapa seguinte é a programação296, que também é prejudicada em razão dos mesmos motivos acima expostos. O gestor não planeja o abastecimento de medicamentos que ele não ‘pode comprar’ (não padronizados). Ademais, não há previsibilidade das demandas oriundas do Judiciário e o espaço de tempo assinado pelos magistrados para o cumprimento das ordens é inferior ao necessário para qualquer procedimento licitatório. Há ainda uma dificuldade no gerenciamento das informações, pois diferentes partes do processo judicial são separadas em arquivos desconexos situados em até três órgãos diferentes: Gerência de Medicamentos da DIASF, Farmácia de Ações e AJL297.

291 BISOL, 2008:331.

292 A seleção é um processo de escolha de medicamentos eficazes e seguros, imprescindíveis ao atendimento das

necessidades de uma população. Deve estar fundamentada em critérios epidemiológicos, técnicos, estruturais e econômicos. A seleção racional dos medicamentos proporciona eficiência administrativa e resolutividade terapêutica, seus objetivos são, portanto, tanto terapêuticos quanto econômicos. A responsabilidade por esta etapa do ciclo é da Comissão de Farmácia e Terapêutica, que faz o processo de seleção e atualização dos medicamentos a serem dispensados pelo SUS em cada estado da Federação (GUIMARÃES et alli, 2006: 20).

293 GUIMARÃES et alli, 2006: 28. 294 GUIMARÃES et alli, 2006: 62.

295 “Art. 3º - As aquisições de medicamentos, sob qualquer modalidade de compra, e as prescrições médicas e

odontológicas de medicamentos, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, adotarão obrigatoriamente a Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI).

§ 1º – O órgão federal responsável pela vigilância sanitária editará, periodicamente, a relação de medicamentos registrados no País, de acordo com a classificação farmacológica da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - Rename vigente e segundo a Denominação Comum Brasileira ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional, seguindo-se os nomes comerciais e as correspondentes empresas fabricantes.

§ 2º – Nas aquisições de medicamentos a que se refere o caput deste artigo, o medicamento genérico, quando houver, terá preferência sobre os demais em condições de igualdade de preço.” (grifo nosso)

296 Nessa fase o gestor deve reunir informações sobre o consumo de medicamentos, o perfil epidemiológico da

população atendida, a oferta e demanda dos serviços de saúde, recursos humanos capacitados e disponibilidade financeira. A partir destes dados é feito o planejamento para se garantir a continuidade no abastecimento de medicamentos.

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A aquisição298 dos medicamentos padronizados, ainda que por determinação judicial, não altera substancialmente a gestão da assistência farmacêutica. Por outro lado, a compra dos fármacos não padronizados costuma ser realizada de forma emergencial, com uso de verbas reservadas para situações extraordinárias: o “suprimento de fundos”. Além dos problemas decorrentes da falta de licitação, a ausência de previsibilidade das demandas regulares muitas vezes torna infrutíferas as tentativas de fazer ao menos um registro de preços. Se as quantidades adquiridas forem muito pequenas os fornecedores não se dispõem sequer a fazer ofertas299.

As etapas de armazenamento e distribuição são pouco afetadas, contudo, há de se ressaltar que o simples fato de existir uma farmácia a parte apenas para receber e armazenar medicamentos postulados em Juízo denota um desvirtuamento dos padrões ordinários de gestão da saúde.

A última etapa, a dispensação, é o objetivo final de todo o ciclo. Nesse momento os profissionais das farmácias públicas entregam os medicamentos aos usuários do SUS conforme determina a ordem judicial. É exatamente aí que residem alguns problemas. Os tratamentos indicados aos pacientes, regra geral, sofrem constantes modificações que dificilmente podem ser acompanhadas no trâmite das ações judiciais. A dinâmica clínica é superior à judicial. Os casos de alteração na demanda por mudança da prescrição, falecimento do autor da ação ou desistência do tratamento farmacológico geram altos índices de perdas financeiras para o DF. Muitas vezes, os medicamentos que sobram não são devolvidos e se perdem.300

O ato de dispensação vai além da mera entrega de medicamentos, inclui a orientação ao paciente para que faça o uso correto do produto (posologia, intervalos, armazenamento, reações indesejadas com alimentos e outros medicamentos etc.). Como o medicamento é dispensado em local diverso do atendimento, é comum que os usuários não recebam uma atenção farmacêutica de qualidade, até porque o número de profissionais não é suficiente para a demanda.301

298 Um processo adequado de aquisição deve propiciar agilidade das compras, confiabilidade dos medicamentos

adquiridos e alcance de preços competitivos. Objetiva o abastecimento de medicamentos em quantidade adequada e qualidade assegurada, ao menor custo possível (GUIMARÃES et alli, 2006: 21).

299 Informação fornecida pelos gestores da Farmácia Central do DF.

300 Segundo relato dos gestores da Farmácia Central do DF e do Procurador Cícero Gontijo, algumas clínicas

particulares utilizam as sobras de medicamentos de alto custo em seus outros pacientes, e cobram por isso. É uma distorção grave, pois o dinheiro público é transformado em lucro particular por falta de controle.

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Em suma, a intervenção judicial na gestão da saúde gera distorções em todas as etapas do Ciclo da Assistência Farmacêutica, situação que torna extremamente difícil a busca por um

uso racional dos medicamentos302 nos momentos de prescrição, dispensação e uso. É importante que esse uso racional seja promovido em razão da economia que gera para o SUS e os seus usuários e também pelo fato do uso apropriado ser parte essencial da qualidade da assistência farmacêutica disponibilizada ao paciente e à comunidade..

As repercussões das decisões judiciais vão além de prejuízos administrativos e financeiros, pois alcançam também o plano orçamentário. Os estados e o Distrito Federal recebem uma provisão de fundos proveniente do Ministério da Saúde para a compra de diversos medicamentos, isso ocorre em grande escala no caso de medicamentos de dispensação excepcional303. O repasse de verbas é feito pelo Ministério da Saúde apenas mediante a comprovação por parte da Secretaria de Saúde da compra e dispensação desses medicamentos aos usuários do SUS. Tal comprovação é feita segundo procedimentos previamente determinados pelo MS.

No caso dos medicamentos excepcionais, é necessário o cadastramento dos usuários do medicamento e a emissão de um documento chamado APAC (Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade). Somente seguindo tais procedimentos o gestor local pode exigir do gestor federal a sua contraprestação nas despesas efetuadas, contudo, quando a compra é feita mediante determinação judicial, os medicamentos são adquiridos e dispensados sem a realização desse procedimento. Por conseqüência, o gestor local deixa de receber parte dos repasses que comporiam seu orçamento para as próximas compras304.

Assim, além dos prejuízos com o desperdício e desvio de medicamentos, a intervenção judicial afeta também a provisão orçamentária da assistência farmacêutica, contudo, não se sabe ao certo o impacto dessa intervenção, pois não existem números oficiais sobre o quanto é gasto com o cumprimento das ordens judiciais e o quanto se deixa de receber dos repasses federais. Mas é possível ter uma idéia.

Pesquisadores do Curso de Especialização em Gestão Pública da Assistência Farmacêutica, ligado à Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, realizaram um estudo no ano

302 Segundo definição da Política Nacional de Medicamentos, uso racional de medicamento: “É o processo que

compreende a prescrição apropriada; a disponibilidade oportuna e a preços acessíveis; a dispensação em condições adequadas; e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período de tempo indicado de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade”.

303 Entre os medicamentos de dispensação em caráter excepcional estão o de alto custo e os de uso continuado. 304 Informações fornecidas pelos gestores da Farmácia Central do DF e pelo Procurador Cícero Gontijo.

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de 2006 sobre o impacto dos mandados judiciais para fornecimento de medicamentos na SES- DF. Calcularam que para atender as demandas judiciais estavam sendo gastos cerca de R$ 1.660.000,00 mensais (para atendimento a 786 pacientes), equivalente a 70% do valor gasto mensalmente (R$2.340.000,00) com medicamentos para Atenção Básica e 34% do valor gasto mensalmente (R$4.900.000,00) com medicamentos do Programa de Medicamentos Excepcionais. No mesmo estudo foi apurado que cada ação judicial custa em média R$ 2.114,95 por mês aos cofres do Distrito Federal305.

Esses são números de 2006, e nos últimos dois anos o número de ações distribuídas aumenta a cada dia. Diante dessa situação é difícil dizer se surpreende mais a extensão do impacto da intervenção judicial na saúde ou a falta de estudos oficiais sobre a questão.

2.3.2 A interface entre o Distrito Federal e o TJDFT: a ação da Procuradoria