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2 O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE

2.2 A Constituição de 1988 e a inclusão das minorias

Mesmo nos dias atuais, é patente o preconceito racial, mesmo que minoritário, envolvendo os negros; ainda se faz presente a oposição ao se contratar empregados com tal matiz, notando-se o resultado no quadro homogêneo das empresas profissionais em que nem todos os segmentos da sociedade estão representados. E o que fazer diante da flagrante exclusão?

É de fundamental importância a proteção de todos os indivíduos para que se possa fazer a prevenção da dominação de uns indivíduos sobre seus semelhantes e para a paralisação da elevação ininterrupta das desigualdades sociais. Partindo-se do reconhecimento das injustiças sociais representadas pela proteção de alguns em detrimento da perda de

72 PAIXÃO, A. L. Crime, controle social e consolidação da democracia. In: O´DONNEL, G. (Org.); REIS, F. W. A democracia no Brasil: Dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice - Ed. Revista dos Tribunais, 1988. p.175. 73 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. p.48.

muitos, também foi reconhecida a urgência da busca pela promoção dos direitos fundamentais de todos os seres humanos.74

A Constituição da República foi promulgada sob este contexto, trazendo consigo o estabelecimento de regras e mecanismos capazes de reconhecer, no campo normativo, o progresso social e a promoção dos direitos fundamentais de indivíduos que fazem parte do mesmo núcleo social inferiorizado. O Texto Maior de 1988 evidencia que a norma infraconstitucional dos direitos tem a obrigação, em primeiro grau, de garantir que todas as pessoas são essencialmente iguais, de modo a evitar que um indivíduo tenha mais valor que outro e que a igualdade apregoada no texto constitucional adquira um sentido puramente formal, sobretudo no quesito da isonomia de oportunidades de que deve ser conferida a todos, sem qualquer espécie de distinção.

Ao se reportar ao racismo, o diferencial da Constituição Federal de 1988 está voltado a dois elementos essenciais, quais sejam: reconhecer que existe o racismo no Brasil e a objetividade na aplicação da punição sobre práticas discriminatórias75. O artigo 4º, VIII, absorve dentre os princípios regidos nas relações internacionais, o repúdio ao terrorismo e ao racismo. O termo repúdio constitui, como sentido, algo maior que uma simples rejeição; significa, nas palavras de José Afonso da Silva,76“uma rejeição qualificada pela repulsa”.

No que tange ao racismo especificamente, José Afonso da Silva o define como uma maneira grave de discriminação, por implicar na difusão de uma teoria ou conduta com o objetivo de apresentar e justificar a superioridade de uma raça sobre outra e está fundado num processo de prevenção de uma raça ou cor contra raças ou cores diferentes, que culmina na rejeição, no descaso e, no limite, em maus tratos com relação ao “outro”. Sob este aspecto, a discriminação que resulta tanto do racismo como do preconceito é representada pela distinção, exclusão e restrição contra determinados indivíduos e numa preferência com relação a outros indivíduos, tendo como justificativa a raça, a ascendência ou a origem e como objetivo final a anulação ou restrição do reconhecimento, do gozo e do exercício dos direitos de uma pessoa ou grupo específico.

A nossa Constituição, em seu artigo 5º, XLI, afirma que a “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e aponta nesta direção. Contudo, o artigo 5º, XLII traz consigo um aspecto inovador, visto que institui à prática do

74 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. p. 25-28. 75 LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais.

São Paulo: Manole, 2005, passim.

racismo uma tutela penal, ao determinar que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”

A severidade apresentada na forma como o constituinte prescreve a prática do racismo evidencia, em seu cerne, a importância e a consternação devotadas ao tema, sustentadas sobre o reconhecimento da excepcional gravidade que as práticas racistas suscitam. A Constituição Federal repele todas as atitudes pautadas em teorias racistas e discriminatórias. Com base no caráter nocivo e lesivo destas condutas, é constituída a classificação destas enquanto crime inafiançável77 (que não admite o estabelecimento da liberdade provisória, ou seja, que o acusado responda ao processo em liberdade, coibindo-lhe, inclusive, o pagamento de fiança), imprescritível78 (extinção da punição após um determinado período, nos casos que envolvem uma puniçãopronta e efetiva) e sujeito à pena de reclusão.

A Constituição Federal, em seu artigo 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII, também apresenta a proibição da discriminação salarial e na esfera profissional, por meio da demonstração das normas de isonomia material pautadas no impedimento de distinções embasadas em fatores como diferença de salários, exercício de funções e o estabelecimento dos critérios de admissão dos profissionais portadores de deficiência. Este trecho configura outro aspecto, o da esfera pública do mundo do trabalho, no qual, por vezes, o racismo também é revelado.

Em especial, com relação à questão do racismo, os elementos que a compõem se encontram, via de regra, atrelados ao ditame preconceituoso com relação à origem, à raça e à cor. De formas por vezes veladas e por outras ostensivas, pessoas negras são alvos de uma discriminação fundamentada na ideia de supremacia de uma raça superior sobre uma raça inferior. A Constituição atesta que “a lei penal tem de inserir regras jurídicas sobre crime de preconceito de raça, para que, no plano do direito penal, não possam ficar sem punição os atos – positivos ou negativos – que ofendam a outrem, porque a acusação se prende ao preconceito de raça” ou à própria ideia de supremacia de uma raça considerada superior sobre outra considerada inferior.”79

Ocorre que a Constituição de 1988 assumiu uma abrangência maior que as Constituições anteriores, sobretudo pelo fato de ecoar os avanços elencados na legislação internacional.

77 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p.141. 78 Ibidem. p.142.

79 PONTES DE MIRANDA, p.48, 49 apud SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São

O Texto Maior de 1988 atestou a importância do combate ao preconceito e a qualquer discriminação com relação à origem, raça e cor e estabelecendo, no art. 12, § 2º, que “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo os casos previstos nesta Constituição”. Além da inovação de caracterizar o racismo não apenas como uma contravenção isenta de imposições jurídicas, mas como um crime de natureza inafiançável e passível de punição, a Carta Cidadã de 1988, no artigo 68, também trouxe inovações no âmbito do direito à propriedade das comunidades quilombolas, ao estabelecer que “os direitos de propriedade definitiva dos descendentes dos quilombos que continuam a ocupar suas terras são reconhecidos e o Estado é obrigado a fornecer os títulos respectivos”.

Assim, sob todos estes aspectos, ratifica-se a inconstitucionalidade de quaisquer condutas ou atitudes com motivação discriminatória. Segundo Eunice Prudente,80 “a identidade (igualdade aritmética) não prevalece entre os homens. A igualdade consagrada pela justiça, ou seja, a igualdade que norteia as Constituições atuais é a igualdade geométrica, que concebe tratamento desigual aos desiguais”. E a necessidade de tratamento desigual aos desiguais ocorre em razão dos desvios tangentes aos assuntos que dizem respeito à moradia, à qualidade plena de vida e saúde, à educação apropriada, condições justas de trabalho e à satisfação das necessidades básicas por parte do governo, como forma de resguardar os direitos fundamentais da pessoa humana.81

Dalmo Dallari82leciona que “por diversos motivos, algumas práticas discriminatórias foram muito agravadas nos últimos tempos, acentuando antigos e novos preconceitos. [...] As oportunidades para uns e outros são muito diferentes e por isso as pessoas se tornam socialmente diferentes, desprezando-se a igualdade natural.”

Ainda afirma Dalmo Dallari83: “um direito só existe realmente quando pode ser usado”. Existe vasta declaração de direitos que se encontram enunciados nalei, contudo, por diversas formas de barreiras, acabam desconhecidos pelos indivíduos ou não colocados em prática. Também ocorrem situações em que os indivíduos conservam o entendimento de que houve desrespeito aos seus direitos e, por falta de condições para a defesa, são destituídas de maiores possibilidade de agir. No processo de defesa dos direitos, as pessoas que não

80 PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil. São Paulo: Julex

Livros, 1989. p.192, 203, 204.

81 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. p. 12-30. 82 Ibidem, p.48.

conseguem usufruir de seus direitos ou não têm ciência destes, sofrem o prejuízo da falta de informação e consciência de seus direitos e da possibilidade de defendê-los.

2.3 Igualdade racial no Brasil, uma breve radiografia do antes e depois da Constituição