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6 O BRASIL CONTEMPORÂNEO E AS AÇÕES AFIRMATIVAS

6.1 Definição de ação afirmativa

A expressão ação afirmativa (affirmative actions) apareceu pela primeira vez nos Estados Unidos, através da Executive Order (Decreto Executivo) 10.925, de março de 1961, dois meses após o Presidente John F. Kennedy ter assumido a presidência.288 Com a medida, objetivava-se o combate à discriminação em cargos públicos e em empresas fornecedoras do governo, porém, acabou por tornar-se uma definição de amplo alcance e, desde a década de 1960, tem recebido os mais diversos conceitos.

Assim, a ação afirmativa recebe diferentes denominações: discriminação positiva, medidas compensatórias, medidas afirmativas, medidas reparatórias, ação positiva, equal oportunity policies. No entanto, todas essas designações têm a mesma essência, o mesmo sentido, embora conceitos diferentes.

No Brasil, o conceito com maior aceitabilidade é oriundo do estudo aprofundado realizado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa Gomes.289 Essa definição tornou-se referência em diversos estudos e ensaios acadêmicos sobre o assunto. De acordo com o Ministro Joaquim Barbosa Gomes, as ações afirmativas podem ser entendidas como:

[...] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal da efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

O referido conceito tem a qualidade de ser, ao mesmo tempo, claro e abrangente. Frisa que a tal medida pode ser tanto compulsória (em determinadas hipóteses, por força de lei) como facultativa; de origem pública, ou privada.

288 COHEN, Carl; STERBA, James. Affirmative Action and Racial Preference. New York: Oxford University,

2003, p. 12.

289 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro:

Por sua vez, Célia Maria Marinho de Azevedo,290 tratando da aplicação das ações afirmativas em relação à população negra e de afrodescendentes, define tais medidas como:

Medidas de teor compensatório [...] que visam reverter o quadro de permanente discriminação e exclusão da população negra em relação a direitos básicos de cidadania como educação, saúde, trabalho e lazer.

Para Sandro Cesar Sell291, a ação afirmativa pode ser compreendida como:

[...] um conjunto de estratégias políticas cuja finalidade é, em última análise, promover a igualdade de oportunidades sociais, mediante um tratamento preferencial daqueles que historicamente têm sido os perdedores na disputa pelos bens escassos de nossa sociedade (empregos, vagas em universidades, participação política etc.). Também pode ser definida como política de discriminação “positiva” dispensada aos segmentos populacionais que, devido ao preconceito que sofrem, encontram-se em posição de desvantagem na disputa pelas oportunidades sociais.

Sidney Madruga292 enfatiza como elementos conceituais das ações afirmativas:

I. a compulsoriedade ou voluntariedade e a temporariedade, ou não, das medidas a serem adotadas por órgãos públicos ou privados;

II. a concessão do benefício ou vantagem a determinados grupos sociais discriminados;

III. a busca da igualdade de oportunidades e tratamento;

IV. medidas direcionadas, em especial, à área da educação, da saúde e do emprego.

Conforme Ronald Walters293 “a ação a é um conceito que indica que, a fim de compensar os negros, outras minorias em desvantagens e as mulheres pela discriminação sofrida no passado, devem ser distribuídos recursos sociais como empregos, educação, moradias etc., de tal forma a promover o objetivo social final da igualdade. Nota-se claramente que a definição de ação afirmativa para Walters não indica nenhuma técnica de implementação das ações afirmativas, tais como no estabelecimento de preferências (por desempate, entre os concorrentes) ou o estabelecimento do sistema de cotas fixas. O seu fundamento filosófico é a compensação ou reparação. Ou seja, baseia-se no postulado da

290 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e

racismo. 1ª ed. São Paulo: AnnaBlume, 2004, p. 51.

291 SELL, Sandro Cesar. Ação Afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 9.

292 SILVA, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade brasileira.

Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 63-64.

justiça compensatória, que visa corrigir os efeitos da discriminação racial sofrida no passado pelos ascendentes dos indivíduos pertencentes ao grupo racial negro, entre outros grupos historicamente marginalizados. Essa discriminação cessou e tende a ser mantida contra os descendentes dos grupos dos grupos discriminados, tornando-se um enorme fardo para estes no presente, afetando os seus desenvolvimentos na maioria dos casos, embora o desenvolvimento pleno do seu potencial humano. Reconhece-se, por meio da justiça compensatória, que o ponto de partida para obtenção dos direito legais e legítimos na sociedade não foi o mesmo entre os grupos discriminadores e discriminados, uma vez que no processo de competição social os últimos partiram em desvantagem ante a discriminação (racial) proporcionada pelos primeiros.

Diante das definições trazidas, entende-se que ação afirmativa pode ser conceituada como aquela medida temporária que prevê um tratamento diferenciado para certos grupos excluídos, com o objetivo de garantir-lhes uma igualdade material (de fato) em relação a outros membros da sociedade (e que se encontram em situação privilegiada) e compensar esses grupos excluídos de sua situação de vítimas de discriminação ou de vítimas de injustiças históricas.

A definição acima foi proposta por encontrar-se fundamentada em elementos considerados relevantes e que caracterizam esse tipo de ação, tais como:

a) não serem medidas de caráter definitivo, podendo, assim, deixar de existir tão logo a condição de sua criação deixe de persistir no local em que foi implantada;

b) serem aplicadas a grupos excluídos, qualquer que seja o tipo de exclusão e independentemente desse grupo espelhar uma minoria ou não, pois o elemento essencial é a constatação da existência desse grupo pelo restante da sociedade e de sua condição histórica;

c) ter por objetivo buscar uma efetiva igualdade material, ou seja, igualdade real entre as pessoas que participam do mesmo círculo social, essencialmente às oportunidades e à competição sob as mesmas condições que as outras pessoas da sociedade, sem que as características culturais, fenotípicas, linguísticas, raciais ou a procedência, ou ainda, a condição de gênero, dentre outras, sejam consideradas de forma negativa;

d) compensar o grupo excluído em relação à discriminação sofrida pelo grupo e combater a discriminação.

Como visto, essas ações podem ser aplicadas tanto pelo Estado, através de suas instituições, como por particulares, pelas pessoas jurídicas como também pelas pessoas físicas ou naturais.

Realmente, diversas iniciativas para corrigir a desigualdade foram inicialmente tentadas pelo setor privado, de forma espontânea. Citam-se como exemplo, as várias Organizações Não Governamentais (ONGs) que incentivam, através de seus esforços, a promoção de igualdade para acesso às universidades públicas usando meios criativos, tais como cursos preparatórios especiais voltados às minorias étnicas e aos economicamente carentes.

De outro lado, o que mais interessa ao Direito Público são as políticas cogentes de Estado e são estas também o principal núcleo de controvérsia sobre ações afirmativas. A pesquisadora Vera Lúcia Benedito,294 da Michigan State University, salienta este ponto:

No início do século XXI, a ideia de formulação de programas e práticas sociais que corrijam desigualdades históricas encontra fóruns de repetitividade em várias partes do mundo, seja nas Américas, principalmente Canadá e Estados Unidos, Comunidade Européia e países dos continentes Africano e Asiático [...].

Guardadas as devidas proporções, entre os vários países que adotaram políticas de ações afirmativas emerge um ponto em comum: são políticas públicas, ou seja, políticas que emanam do Estado. Via de regra, a adoção de ações afirmativas requer a existência de um Estado politicamente forte que tenha capacidade primordial de monitorar e sancionar a implementação dessas políticas.

Portanto, em que pese o conceito supra transcrito ter todos os méritos de abrangência, tais medidas adquirem de fato verdadeira importância quando realizadas através de políticas de Estado, o que imprescindivelmente passará pela via legislativa. Neste contexto, as ações afirmativas que forem efetivamente estabelecidas por normas jurídicas devem respeitar os limites constitucionais, de acordo com os parâmetros fundamentais do Estado Democrático de Direito, por meio da aferição da constitucionalidade das leis.

294 BENEDITO, Vera Lúcia. Ações Afirmativas à Brasileira: em busca de um consenso. Caderno CRH.