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PERCURSO METODOLÓGICO Objetivos

2. A FILOSOFIA DE ESPINOSA E O COMUM

2.7. A constituição do comum

Castoriadis analisou três esferas da atividade humana a partir da observação da democracia na Grécia que pautaram o desenvolvimento filosófico moderno. A primeira diz respeito à esfera estritamente privada, do lar relacionada ao conceito oikos. A segunda, a esfera pública/privada, correspondente à ágora, é o local onde os cidadãos se encontram e estabelecem vínculos para além da esfera política. A terceira é a esfera pública/pública, relacionada ao conceito ekklésia, que incide diretamente nas decisões políticas enquanto lugar onde são deliberados e decididos os assuntos comuns (CASTORIADIS, 2013). A distinção entre ágora e

ekklésia é justamente o que define a esfera pública. Possibilitar o autogoverno do comum é

entender a primazia com que se apresenta como potência para articulação dessas esferas, em que esse espaço de encontro e discussão entre os cidadãos se torne uma escola diária de codecisão, ou seja, se torne um espaço político (DARDOT, LAVAL, 2017).

O comum se configura como um sistema político baseado na construção de instituições com regras e acordos determinados coletivamente por aqueles que se apropriam de determinado recurso e o gerem a partir de uma lógica colaborativa e pautada na reciprocidade. É

imprescindível considerar que o uso comum esteja vinculado à codecisão das regras e à

coobrigação resultante dela. O comum surge com o reconhecimento de que há instituições para além da estrutura do Estado, a partir de uma regulação coletiva auto-organizada. Ele se afirma enquanto um princípio político baseado na coatividade humana pautada na práxis, uma vez que apenas a atividade prática dos humanos pode tornar as coisas comuns. Não é um bem ou recurso, na medida em que não se constitui a partir de qualidades intrínsecas de determinada coisa (como sua forma inapreensível, não exclusiva e rival, características atribuídas a bens considerados comuns), mas como um princípio de autogoverno sobre regras de uso de determinados recursos e serviços. (DARDOT, LAVAL, 2017).

Dessa forma, tem-se que "há na sociedade formas coletivas de entrar em acordo e criar regras de cooperação que não são redutíveis ao mercado e ao comando estatal." (DARDOT, LAVAL, 2017, p. 159). Essa concepção baseia-se na ideia de que a ação humana não é, em essência, egoísta e individualizada, fruto de uma mente calculista que busca constantemente maximizar os benefícios individuais em detrimento à coletividade, conforme abordou Hardin em seu polêmico artigo sobre "a tragédia dos comuns" (HARDIN, 1968). Antes, tal comportamento egoísta que exploraria os recursos coletivos à exaustão é um produto social, consequência direta do desenvolvimento capitalista explorador dos recursos naturais, e não fruto de uma natureza humana essencialmente oportunista. Há diversas formas pelas quais os recursos podem ser geridos por determinada coletividade e é justamente sobre o estabelecimento de regras de

utilização que se pode estimular o estabelecimento de condutas mais cooperativas e sustentáveis (DARDOT, LAVAL, 2017).

A questão de propriedade é fundamental na proposição do comum e acompanha o desenvolvimento civilizatório humano desde o princípio. Locke considerava a propriedade privada como um direito natural, a partir da justificativa de que se referenciava à propriedade de si mesmo e no direito da autoconservação. Essa perspectiva se mantém até os dias atuais enquanto um dogma econômico fundamental, em que o indivíduo é proprietário do seu eu e do seu corpo e os bens são como prolongamentos, frutos e meios de conservação de si (DARDOT, LAVAL, 2017).

Essa característica jurídica e teológica do direito à propriedade vinculada ao desejo divino de conservação da vida é reformulada por Hume e Bentham em um entendimento de que o direito emana da autoridade política terrena (e não divina), que pauta a motivação e ação humana pela busca do prazer e pela vida em sociedade. A existência da propriedade, então, se justifica pela sua utilidade para os humanos enquanto instrumento econômico de geração de riquezas que garantam a vida humana, servindo como instituição inseparável do mercado e garantidora da eficiência na alocação de recursos. Dessa forma, estrutura-se o arcabouço filosófico para que a propriedade privada seja vista como um dos principais pilares para o desenvolvimento do capitalismo (DARDOT, LAVAL, 2017).

O comum fica, assim, restrito ao que não pode ser apropriado no momento, à "coisas naturalmente comuns" que são, de forma simultânea, propriedade de ninguém e de todos. Essa restrição é relacionada à doutrina jurídica e ao pensamento político que gera uma bipolarização entre o que é privado e o que é público, que se prolongará ao longo do século XIX e XX na oposição entre Estado e mercado. Essa doutrina surge inspirada no direito romano, em que o direito público é construído a partir do que não é privado, cujo foco dos juristas estava muito mais na figura do indivíduo-proprietário e sua capacidade de alienação do que é seu na troca mercantil do que nas propriedades vistas como coletivas (DARDOT, LAVAL, 2017).

O direito público surge com uma distinção dupla em seu bojo: de um lado, propriedades cujo domínio era do Estado, cabendo a ele conceder ou vender essas terras consideradas

públicas; de outro lado, uma zona de uso público, em que, por meio de uma decisão institucional, o próprio Estado delimitava a indisponibilidade de certas coisas para apropriação privada,

destinadas ao uso da coletividade. Essa distinção demonstra dois conceitos diferentes do público: a propriedade pública (parte do patrimônio do Estado) e o uso público (inapropriável pela sua destinação). É justamente esta esfera do uso público que mais se aproxima da instituição do

comum, uma vez que está fora do alcance da propriedade e que é institucionalmente destinado ao uso das pessoas. Em poucas palavras, é o público não estatal (DARDOT, LAVAL, 2017).

O comum traz uma perspectiva contrária ao direito de propriedade, na medida em que é inapropriável se instituído como um princípio que possibilita a sociedade viver junto. Isso se dá na medida em que o comum provém diretamente de uma atividade de pôr em comum que produz um direito, vinculado diretamente à ação humana, e não um bem que possa ser apropriado, trocado e possuído. Não se trata da natureza intrínseca das coisas em relação a possibilidade de sua apropriação, mas antes da sua qualificação pelo e no direito, por meio da ação humana. O comum se origina, assim, a partir do direito de uso dos cidadãos, privados de qualquer direito de propriedade, que destituem o sujeito proprietário como titular de direito e coproduzem normas jurídicas não estatais por meio do uso coletivo ativo. A ausência de qualquer relação com o sujeito proprietário indica, inclusive, em certos casos mais radicais, uma

'despersonalização do pertencimento' no plano jurídico. Portanto, não se pode transformar o direito de uso em um direito de propriedade ampliado, mas, antes, contrapô-lo radicalmente contra qualquer direito de propriedade, seja ele privado ou estatal. (DARDOT; LAVAL, 2017).

Esse deslocamento da questão para o terreno do uso ao invés da propriedade possibilita a criação de regras e acordos que garantam o proveito desse uso para todos, levando à concepção de instituição pela prática. A própria noção de comunidade pode ser entendida como a partilha de um dever ou obrigação que é construída a partir do exercício prático da colaboração. Como afirmam Dardot e Laval:

(...) cumpre estabelecer como princípio que a coobrigação nasce do compartilhamento de uma mesma tarefa ou atividade (...) Se o agir comum é um agir instituinte, é

precisamente porque consiste na coprodução de normas jurídicas que sujeitam todos os coprodutores, na própria qualidade de coprodutores, no decorrer da realização da tarefa. (DARDOT, LAVAL, 2017; p. 297)

A criação de um corpo jurídico em comum, para além do Estado e suas estruturas, por meio do trabalho coletivo é crucial na medida em que insere sujeitos na tarefa ativa de produção da sociedade e desenvolve o direito de forma progressiva e constante. É Proudhon que observa e analisa o desenvolvimento da força coletiva da sociedade e a forma com que é apropriada pelo capitalismo para sua expansão. Essa força coletiva é o motor da vida social, uma vez que se baseia na solidariedade, na potência ampliada na constituição da multidão e na produção de direitos sociais pela e para a sociedade. A fonte da lei, assim entendida, não se origina, como no direito romano, na figura do legislador, mas no próprio bojo social a partir da prática instituinte

dos cidadãos enquanto negação do controle estatal e religioso da vida (DARDOT, LAVAL, 2017). Como diz Proudhon:

Abaixo do aparelho governamental, à sombra das instituições políticas, longe dos olhares dos homens de Estado e dos sacerdotes, a sociedade produzia lentamente, e em silêncio, seu próprio organismo; criava uma ordem nova, expressão de sua vitalidade e autonomia, e negação da antiga política e da antiga religião.20 (PROUDHON, 1982 apud

DARDOT, LAVAL, 2017; p.394)

Para ele, o direito social é soberano e deve prevalecer sobre a soberania do Estado, sendo contrabalanceado pela organização jurídica da própria sociedade. Para além do universalismo, que uniformiza a comunidade como um superindíviduo e suprime as

singularidades, e contra o individualismo liberal, que isola o sujeito da rede de relações complexas da sociedade, Proudhon defendia uma organização jurídica emanada diretamente da força da sociedade a partir do contrato e da livre associação entre as pessoas. O estabelecimento de uma

constituição social que surge da força coletiva da sociedade é o reconhecimento de que há uma razão

comum que dá origem a ordens e regras sociais pautadas na solidariedade, no protagonismo cidadão e na cooperação. Nessa perspectiva, as formas de associação devem ser entendidas como instituições inteiramente políticas, não como ferramentas de gestão econômica e regulação social (DARDOT, LAVAL, 2017).

A tendência encontrada na sociologia diz respeito à confusão da instituição pelo instituído, em que é definida como um conjunto de crenças, hábitos e práticas sociais predecessoras ao indivíduo, sendo o fato social preestabelecido sua característica principal (DARDOT, LAVAL, 2017; CHAUÍ, 1982). Isso delimita que anteriormente ao sujeito há um contexto social no qual ele se insere que lhe é imposto em maior ou menor grau, em que importa menos a forma como tais regulamentos são decretados, mas sim o quanto são obedecidos. Porém, outros olhares para a questão da instituição têm demonstrado sua força enquanto verbo: o ato de legislar, de estabelecer um estado de coisas por meio da força da prática. Nesse sentido, a instituição não se assemelha apenas ao que já está constituído pelas práticas sociais passadas, mas incorpora simultaneamente sua dimensão de práxis, de construção de regras no próprio ato de instituí-las pela força da prática (DARDOT, LAVAL, 2017).

Hardt e Negri (2016) apresentam essa discussão como duas linhas: uma majoritária, que entende o contrato social como a base das instituições, na medida em que subsume o conflito com o consentimento do sujeito à transferência do seu direito de rebelar-se, trazendo unidade ao corpo social; e outra minoritária, que assume o conflito como interno e constante alicerce da

sociedade, evidenciando os caminhos tortuosos da própria constituição da multidão. Espinosa alinha-se à vertente minoritária, em que a instituição possui uma conflituosidade assumida em seu interior e se coloca, assim, de forma democrática justamente por estar aberta ao conflito e

constituída por ele. Além de assumir o conflito interno, as instituições, nessa visão, também ampliam a ruptura social operada pela revolta à opressão de forças dominantes sobre o corpo social (HARDT, NEGRI, 2016).

Outros dois elementos constituem a concepção de instituição abordada pelos autores. As instituições, enquanto sistemas de crenças, hábitos e costumes sociais, consolidam novas formas de vida surgidas na prática social, adquirindo esse caráter de práxis instituinte em ato. Além disso, a instituição mantém-se aberta a sua própria transformação, não se separando o instituído do seu próprio ato de constituição. As diversas singularidades existentes que a compõem a inserem em uma dinâmica permanente de autotransformação, contrapondo-se à linha majoritária que reconhece o instituído enquanto algo paralisado e cristalizado no corpo social (HARDT, NEGRI, 2016).

Castoriadis também traz uma perspectiva similar, reforçando a primazia do instituinte sobre o instituído enquanto poder de criação pautada na concepção imaginária da sociedade. A força do novo, de novas concepções, relações e instituições, compõe o fazer histórico e é testemunho da capacidade humana para a construção do mundo social. Para o autor, o

imaginário possui duas dimensões: a instituinte e a do instituído. Enquanto a última se refere às significações e instituições já existentes, constituídas por um poder soberano em sua função legislativa, a primeira é a fonte de onde emerge as novas possibilidades de ação e pensamento. A sociedade, no desenvolvimento do modo capitalista de produção, se incumbiu de negar a dimensão instituinte por ela estar referida diretamente à política, na medida em que traz um questionamento à instituição dada e apresenta sua alternativa. O poder efetivamente instituinte, portanto, é aquele que se constitui pela obra coletiva de consolidar novas significações

imaginárias emergentes da vida social preexistente, num exercício de garantir a autonomia e um poder de participação a todos (CASTORIADIS, 1982).

De forma conclusiva,

Os homens, embora 'façam' sua história, fazem-na sempre em circunstâncias e condições que eles não escolheram, que eles 'encontraram sempre aí', porque foram herdadas das gerações anteriores. Por esse lado, o 'fazer' dos homens é sempre condicionado pelos resultados da atividade daqueles que os precederam. (...) ao agir em determinadas condições, os homens agem sobre essas condições de tal modo que 'estabelecem' novas condições. Eles subvertem assim o antigo estado de coisas e trazem à existência o que não possui precedentes na história. (DARDOT, LAVAL, 2017; p.462-463)

Ao construir o novo em sua ação prática a partir das condições já existentes, é exercida uma mudança não apenas estrutural na sociedade, mas também interna aos sujeitos. Não são produto das novas condições estabelecidas, mas, antes, os sujeitos se produzem em e por sua ação prática no mundo. A práxis se forma justamente pela autoprodução do sujeito que se

modifica no curso de sua ação em um processo de subjetivação, e não em decorrência dela. Daí o conceito de práxis instituinte, na medida em que produz seu próprio sujeito na continuidade do processo de estabelecimento de novas regras sociais que buscam se renovar para além do ato criador. Assim, o comum é entendido no seu próprio movimento de instituição, em que os sujeitos se engajam na atividade de forma a não separar o produto dela das relações que constroem entre si, dos valores e significações construídos e das regras sociais que são institucionalizadas no fazer (DARDOT, LAVAL, 2017).

A nova sociedade em gestação se forma, portanto, no horizonte do comum: A criação de organismos cooperativos e associações livremente escolhidas, auto- organizadas e autogeridas, à margem do mercado lucrativo e do Estado, no setor da alimentação, da educação, da guarda de crianças, da habitação e do lazer parece restabelecer o grande sonho de constituição de enclaves emancipados dentro da sociedade. (...) Pressupõe condições materiais, institucionais e subjetivas que, se ainda não estão reunidas na atualidade, poderiam se concretizar sob o efeito do entusiasmo coletivo para fazer essa 'outra coisa' que tenha sentido, ou pela rejeição às formas capitalistas e mercantis de produção e troca, que se tornaram ecologicamente insustentáveis e psicologicamente repulsivas. (DARDOT, LAVAL, 2017; p.536)

Para isso, é necessário cidadãos ativos politicamente, assumindo suas responsabilidades na produção do comum e capazes de construir instituições em que sejam coprodutores

conscientes de seus direitos, e não apenas consumidores de serviços. Tais sujeitos se constituem na própria prática afirmativa no território onde ocorrem os encontros e a produção da cidade a partir do desejo de transformação. O desejo e o afeto ampliam a potência de ação de forma a constituir a multidão que, em sua práxis, cria instituições e constrói ativamente o comum.