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PERCURSO METODOLÓGICO Objetivos

2. A FILOSOFIA DE ESPINOSA E O COMUM

2.2. Desejo e conatus: a potência de agir

Marilena Chauí faz uma arqueologia do conceito de desejo em seu livro "Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa" (2011). Surgido a partir de diversos conceitos, dentre eles appetitus, o desejo é preenchido de ambiguidade entre ataque e demanda, atividade e passividade,

necessidade e falta. Ao mesmo tempo que indica a tomada do destino nas próprias mãos sem a necessidade de consultar os astros (em desiderium e bóulesis), significa também a carência oriunda da privação deste saber sobre o destino, que impele à busca exterior em busca de preenchimento (como em hormé). Sendo dinâmico e tendo como locus as relações intersubjetivas, o desejo nunca foi objeto de uma ciência até a modernidade, mas apenas da retórica, como modo de persuasão e moderação sobre a inconstância e instabilidade das paixões, e da ética, onde a razão assumia o objetivo de educar as paixões para assumirem sua direção natural. Por ser mescla de atividade e passividade, o desejo, incrustado naturalmente nas particularidades de cada indivíduo, nos coloca sob o poderio das contingências, da Fortuna incerta e caprichosa, e exige algum tipo de

intervenção para a correta direção da vida humana (CHAUÍ, 2011).

A tradição filosófica e religiosa, por meio da retórica, buscava, dessa forma, três possíveis caminhos para lidar com o desejo: a ascese do desejo (Platão), a educação do desejo (Epicuro e Aristóteles) e a abolição do desejo (estoicos e cristãos). O cristianismo, herdando os preceitos da moral estóica, situa a oposição entre a contingência e a vontade guiada pela razão, onde a autonomia dos humanos perante o cosmos submete-se ao pecado e aos caprichos do Mal quando estes julgam estar inteiramente sobre o próprio poder de seu desejo, transgredindo a vontade racional que os aproxima de Deus (CHAUÍ, 2011).

O desencantamento do mundo, uma série de acontecimentos que se dão em grande parte a partir da nova mecânica de Descartes e do entendimento do corpo sob o paradigma da máquina, possibilita uma nova forma de concepção de alma e corpo que eleva o desejo a um patamar de objeto de um saber matemático, dedutivo, prático e inteiramente racional. É a partir do novo conceito de movimento que Hobbes elabora o conceito de conatus, ou esforço de autoconservação dos seres, que surge a partir do desejo em relação a outros corpos externos. Os contemporâneos de Espinosa viam o desejo dentro do campo do conhecimento imaginativo ligado às sensações, enquanto atribuía-se à razão as faculdades de agir e julgar. A razão deveria se impor sobre a imaginação e estabelecer seu domínio, tendo a ética profundamente relacionada com uma moral normativa que teria ações virtuosas como fim (CHAUÍ, 2011).

Espinosa surge então como o principal filósofo que adentra o campo dos desejos e dos afetos a partir de uma análise geométrica, de forma a entendê-los pelo que são, sem lamentá-los, detestá-los ou dominá-los, mas entendê-los e compreender o que pode a mente para moderá-los (TP, 1 § 1 e 4). Ele radicaliza o conceito de conatus de Hobbes enquanto a essência singular dos seres para perseverar na existência, chamando-o de desejo enquanto dele temos consciência. Em suas palavras, "o esforço pelo qual cada coisa se esforça para perseverar em seu ser não é nada além da essência atual da própria coisa" (E., III, prop. 7). Desejo é movimento, mas não em direção a um fim, mas como estado do corpo, como intensidade, que se realiza em meio a um campo de forças em conflito que são largamente superiores e mais potentes. O conatus assume a característica de resistência frente à destruição do corpo pelas forças externas a ele que o impele a agir de determinadas maneiras (CHAUÍ, 2011). Chauí nos mostra que, de acordo com Espinosa:

(...) definidos pelo conatus como potentia agendi, ou potência de agir, os indivíduos se definem pela variação incessante de suas proporções internas de movimento e repouso, ou variação de sua força interna para a conservação, de sorte que o esforço de

autoconservação visa manter a proporção interna no embate com as forças externas, pois são elas que podem destruí-lo, como também são elas que o auxiliam a regenerar- se e ampliar-se. (CHAUÍ, 2011, p.48)

É na relação com outros corpos que perseveramos, resistimos e nos potencializamos ou não para nossa ação no mundo e para o entendimento do que nós somos, mesmo que ainda no campo das ideias imaginativas, uma vez que "as ideias que temos dos corpos externos indicam mais a constituição do nosso corpo do que a natureza dos corpos externos" (E., II, prop. 16 corolário II). É também na relação com o Outro e na abertura do nosso corpo para ser afetado de inúmeras formas que pensamos e conhecemos mais sobre o mundo e sobre nós, uma vez que quanto mais um corpo tem a capacidade de afetar e ser afetado, mais apta estará a mente para

perceber as coisas que acontecem a esse corpo e exercer sua potência de pensar (E., II, prop. 14). Esse conhecimento nos impele a fazer mais, buscando a perseverança do nosso ser nos processos que nos alegram e nos potencializam de forma reflexiva e afirmativa na existência. Como nos apresenta Chauí, "é esse vínculo entre desejo e ação determinada que o transforma no principal objeto da ética e da política modernas" (CHAUÍ, 2011, p. 48).

O desejo é a fonte do processo constitutivo das sociedades humanas. É a partir dele que o ser persevera na existência em busca de afetos de alegria que aumentem sua potência de agir e existir no mundo. Espinosa identifica nos indivíduos uma intercorporeidade originária (CHAUÍ, 2011, p.73), em que a vida se realiza na coexistência com outros corpos por meio das afecções

(possibilidade de um corpo afetar e ser afetado). O conhecimento gerado a partir destas afecções, na experiência imediata, é sempre imaginativo, confuso, parcial e incompleto, mas que serve de base para o indivíduo se situar no mundo.

Enlaçado nas imagens, o desejo enlaça nosso ser à exterioridade (coisas, corpos, os outros), carregando-a para nossa interioridade (sentimentos, emoções) e, simultaneamente, enlaça o interior ao exterior, impregnando este último com os afetos, fazendo todos os seres surgirem como desejáveis ou indesejáveis, amáveis ou odiosos, fontes de alegria, tristeza, desprezo, ambição, inveja, esperança ou medo. (CHAUÍ, 2011, p.50-51).

É denominado como afeto a afecção que promove uma variação da potência do sujeito e sua consciência desta variação (E., III, def. 3). Espinosa nos apresenta três afetos primários, dos quais todos os outros decorrem de formas infinitamente variadas: desejo, alegria e tristeza. O desejo, aqui, é o próprio sentimento que nos determina a existir e a agir de maneira determinada, fazendo parte intrínseca de nossa essência humana singular. Espinosa o entende como todos os esforços, impulsos, apetites e volições do homem, que variam, opõe-se e reforçam-se dinamicamente no Homem. "Nele (no desejo) e com ele é tecida a irredutível individualidade de nossas vidas. Somos desejo, e nossos desejos são nós" (CHAUÍ, 2011, p.64). A alegria é o afeto que expressa o aumento do conatus de um sujeito, ou seja, quando nos alegramos, nossa potência de agir expande e aumenta, ao passo que a tristeza é o afeto diretamente inverso, diminuindo o conatus. Dessa forma, é possível concluir que somos definidos pela intensidade da nossa força de existir, que varia conforme somos afetados por forças internas e externas a nós. Essa força de existir é sempre afirmativa, pois nos impele a perseverar na existência, buscar sempre relações com o que nos fortalece e desfazer os laços com o que nos enfraquece. No entanto, a infinidade dos afetos, sua complexa interação entre si e o fato de nosso corpo nunca ser afetado inteiramente por um único afeto dificultam nossa compreensão sobre eles. De que forma é possível perseverar em meio ao mar revoltoso das relações que nos afetam? (CHAUÍ, 2011)

Espinosa apresenta algumas saídas. Nosso conatus, sendo definido pela intensidade da nossa força de existir, depende diretamente da qualidade atribuída a nosso desejo enquanto causa

adequada ou causa inadequada. Dizemos que o desejo é causa adequada quando ele é causa eficiente

total de seus afetos, definido inteiramente pela nossa potência. Dizemos que, nosso desejo sendo causa adequada, nós agimos e tomamos parte na Natureza do mundo. No entanto, quando o desejo é causa inadequada, estamos no campo da paixão e da passividade, em que somos causas eficientes parciais de nossos afetos, de forma que padecemos de forças que são exteriores a nós. Assim,

somos parte da Natureza, mas não tomamos ativamente nosso papel na interferência no mundo. A

moderação dos afetos nos leva a mudança em sua qualidade, para que deixemos de ser causa inadequada (que nos leva a ter ideias igualmente inadequadas da causa dos afetos) para sermos causa adequada, em que nossa virtude se iguala a nossa potência enquanto precursora de desejos que emanam da nossa própria essência (CHAUÍ, 2011).

Esse é o princípio em que se baseia a ética em Espinosa, a partir da interiorização da causalidade dos afetos. É o reconhecimento de que nossa ação não se movimenta a partir de uma finalidade externa a nós (que denominamos paixão), mas a partir da nossa essência desejante que fortalece nosso esforço de perseverar na existência. O conatus fortalecido dessa forma é potência em expansão, que encontra em si mesmo o poder de expandir-se sem depender de nada que é externo a si (CHAUÍ, 2011).

Assim, chega-se a um importante postulado no conhecimento de Espinosa. O ato de conhecer as causas de forma adequada aumenta nossa alegria, da forma que o aumento da alegria nos torna capazes de conhecer racionalmente a Natureza da qual somos e tomamos parte. A razão não impera sobre as paixões e afetos, dominando-os e controlando-os como se fossem contrários à Natureza, mas, antes, os modera, encontrando a justa medida que media a relação entre os afetos que emanam de nossa potência e favorecendo aqueles que expandem nossa alegria de viver e nossa capacidade de atuar. Essa razão, no percurso ético e constituinte do ser, não oprime os desejos a operarem de determinada forma, mas torna-se desejante ao ser vivenciada como um afeto, com a alegria de conhecer as causas adequadas do que se passa em nós e assim, viver eticamente de acordo com nossa própria natureza (CHAUÍ, 2011).