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PERCURSO METODOLÓGICO Objetivos

2. A FILOSOFIA DE ESPINOSA E O COMUM

2.1. Notas introdutórias à filosofia de Espinosa

A obra de Espinosa é vasta e possibilita inúmeras interpretações e diferentes caminhos de análise. Diversos autores e autoras se debruçaram em sua leitura e buscam, até a atualidade, diferentes significados que possibilitem conceber a realidade e os fenômenos sociais a partir dos conceitos espinosistas. Dentre estes autores, cabe mencionar aqui aqueles que auxiliaram a leitura que resultou no presente texto e que realizam interpretações inovadoras e atuais da obra do filósofo, como Antônio Negri, Gilles Deleuze e Marilena Chauí. É a partir de suas análises e interpretações que as obras de Espinosa possibilitaram uma análise empírica da realidade das hortas comunitárias de São Paulo. Para poder construir este entendimento e articulá-lo às reflexões presentes nesta pesquisa, será necessário apresentar certa gênese dos conceitos e das principais discussões que emanam da obra do filósofo.

A obra de Espinosa é considerada fundadora do materialismo e inaugura o período da modernidade filosófica por meio da conciliação de duas perspectivas a princípio inconciliáveis: a filosofia da Natureza e sua necessidade absoluta (em que a totalidade do real é inteligível ao intelecto) e a filosofia ética baseada na liberdade humana (atribuindo à razão uma função libertadora). Seu pensamento ataca diretamente a superstição religiosa, a tirania política e a servidão ética do indivíduo, buscando com radicalidade o exercício da razão livre e da alegria de pensar como formas de afastar o medo e a tristeza. Além disso, Espinosa confronta os saberes da época ao constituir uma ciência dos afetos (CHAUÍ, 2011, p.101-132) em que analisa os movimentos do desejo humano e suas paixões de forma geométrica, de forma que sejam inteligíveis, passíveis

18 As obras de Espinosa serão citadas com as seguintes siglas e abreviaturas:

E: Ética. As partes serão indicadas em algarismos romanos (E, I; IV etc); em arábico serão indicados, seguidos de abreviaturas: as definições (E, I, def. 6), os axiomas (E, I, ax. 1), os enunciados das proposições (E, I, prop. 5), os corolários (E, I, prop. 5, cor. 1), as demonstrações (E, I, prop. 5, dem.), os escólios (E, I, prop. 5 escólio 2), os postulados (E, I, prop. 5 post.) e os prefácios das partes (E, I, prefácio).

TP: Tratado Político. Em algarismos arábicos será indicado o capítulo, seguido do número do parágrafo: TP, 1 #2.

de moderação e que possam exprimir a potência constitutiva dos sujeitos em sua busca por felicidade. É a partir da conceituação de Deus como substância imanente necessária ao mundo que Espinosa constrói sua concepção sobre corpo e alma de forma inovadora e estrutura seu entendimento dos afetos como variação da potência vital dos sujeitos e da ética como a interiorização reflexiva que possibilita a expressão adequada desta potência. Nessa formação ontológica e constituinte do sujeito na expressão da sua potência individual, Espinosa identifica no agir ético e racional o cerne de sua concepção de política, em que a união dos humanos em uma vida comum se dá pela garantia do exercício de seu direito natural, de sua liberdade, por meio do direito civil constituído a partir da potência coletiva da multidão. É agindo de forma conjunta que as instituições políticas emergem e fundam o direito civil que garante a liberdade individual dos sujeitos.

O confronto que as ideias de Espinosa geram em relação aos poderes teológicos não é pequeno e explicita a importância de seu pensamento para a época. O filósofo se encontra no centro do debate entre transcendência e imanência do poder divino de Deus, debate esse que também delineia importantes noções políticas que serão analisadas ao longo da dissertação. Para Espinosa, Deus é a única substância necessária e livre, constituída de infinitos atributos infinitos (E.I, def.III e IV e prop. XI e XIV). Deus age por sua própria natureza, produzindo, por meio de sua potência, todas as coisas do mundo de forma imanente, ou seja, Deus ao mesmo tempo em que é causa de tudo que é criado é também expresso no efeito de sua criação; em outras palavras, tudo que é, é em Deus e por Deus deve ser concebido (E., I, prop. 15).

A expressão da eternidade de Deus se dá pela identidade de sua existência, de sua essência e de sua potência, o que desmonta radicalmente a imagem historicamente construída pela tradição teológica de um Deus antropomorfo, transcendente (separado do mundo),

onipotente, onisciente e onipresente, incorporado como legislador, monarca e juiz do Universo. Nessa concepção, difere-se liberdade (como a escolha entre duas possibilidades) de necessidade (o que acontece sempre e não pode deixar de acontecer como acontece), entendendo que Deus arbitra a partir de uma escolha voluntária livre, tendo um poder onipotente (capacidade infinita de produção), mas exercendo apenas parte de sua potência de acordo com escolhas ocultas e ininteligíveis para nós. A tradição teológica assumiu assim que havia uma separação clara e distinta entre o necessário, o que acontecia "por natureza" em um automatismo bruto, e a liberdade, ou o que acontecia "por vontade", fruto da ação racional e inteligente, à imagem de Deus (CHAUÍ, 2011, p.122-123). O que está em nosso poder, segundo essa tradição, é apenas o que é possível entre alternativas contrárias, da qual se supõe uma escolha deliberada. Esta noção é chamada de metafísica do possível (CHAUÍ, 2011, p.123).

A contestação de Espinosa se dá justamente nisso: Deus é sua própria potência criadora (seu poder é idêntico a sua potência), presente no mundo no incessante processo de constituição, exprimindo e sendo expresso em todas as coisas existentes, denominado por Deleuze como eterno

movimento (DELEUZE, 2017). Não há diferença entre necessidade e liberdade, visto que Deus é

substância (ou seja, é causa de si e existe em si por si mesmo) que produz incondicionalmente (ou seja, é infinito) e é causa eficiente de todas as coisas do mundo, permanecendo nelas e sendo por elas exprimida de uma forma determinada e imanente. Deus existe necessariamente (E. I, prop. XI) e não opera de forma contingente, mas expressando sua própria potência criadora. Não há arbítrio ou decisão por uma vontade própria de Deus: sua própria ação exprime sua essência (E., I, prop. 36). Daí a famosa expressão de Espinosa "Deus ou Natureza", em que, como diz Chauí, "o que chamamos de 'leis da Natureza' não são decretos divinos, mas expressões determinadas da potência absoluta da substância" (CHAUÍ, 2011, p.125). Da mesma forma é dizer que a liberdade nada mais é do que a expressão própria da essência da Natureza, ou seja, de Deus. Espinosa constrói assim o que é chamado de ontologia do necessário (CHAUÍ, 2011).

De acordo com Espinosa, apesar de Deus ser constituído por infinitos atributos infinitos, apenas dois são conhecidos por nós: Pensamento e Extensão. A atividade destes atributos produz modificações que expressam a substância divina que podem ser tanto infinitas como finitas. Desta forma, o atributo Extensão produz todo o universo material enquanto um modo infinito de expressão da substância e, a produção desse modo, por sua vez, constitui os corpos enquanto expressão finita da substância. De forma semelhante, a atividade do atributo Pensamento produz o modo infinito denominado Intelecto de Deus que, por sua vez, produz mentes como modos finitos de expressão. Portanto, tanto os corpos quanto as mentes são efeitos imanentes que possuem como causa adequada a Substância Divina, expressando-a e sendo expressadas por Ela de modo finito no mundo (E., I, prop. 16 e II, prop. 1, 2 e 7 escólio). Desta forma, constitui-se a chamada teoria do paralelismo, amplamente discutida por Deleuze em sua obra (2017, Segunda Parte), onde é traçada a relação entre corpo e mente como modos singulares distintos de expressão da atividade imanente de uma mesma Substância.

Para Espinosa, o corpo é uma unidade estruturada, complexa e dinâmica formada por um conjunto relacional de outros corpos fluidos, moles e duros em constante mudança de estados de repouso e movimento, estrutura descrita em sua pequena física (E., II, prop.13). A mente, por sua vez, é a ideia de seu corpo, a consciência da vida do seu corpo e a consciência de ser consciente disso, uma força pensante que afirma ou nega ideias ou imagens e que não está separada do seu objeto, pois é a própria atividade de pensá-lo. O paralelismo se dá na relação entre a mente e o corpo de uma forma que não é hierárquica e de dominação entre eles (como

pensavam a tradição filosófica e Descartes), mas como expressões isonômicas de uma mesma Substância que obedecem às mesmas leis e princípios, mas expressando-se diferentemente. São diferentes modos de uma mesma substância, de forma que assumem características ativas ou passivas conjuntamente, e não separadas entre si: uma mente pode o que pode seu corpo. Assim como o corpo é uma estrutura complexa de outros corpos, também a mente se estrutura de forma complexa pelo encadeamento de ideias, sejam elas adequadas (ou verdadeiras, ideias em que conhecemos a gênese ou causa necessária de algo a partir do trabalho da mente ao pensar) ou inadequadas (ou imaginativas, ideias que surgem a partir da experiência imediata ou noções vagas que ignoram a causa real ou premissas) (CHAUÍ, 2011).

Um corpo pode afetar e ser afetado de inúmeras maneiras por corpos externos (E., II, prop. 13 post. 3 e 6), enquanto a mente cria ideias dessas afecções e desses corpos de uma forma confusa e fragmentada, vivendo imaginariamente a partir de imagens, sensações e memórias criadas pelas formas que o corpo foi afetado. O conhecimento gerado desta forma pela mente não apreende a essência dos corpos externos e tampouco de seu próprio corpo, mas gera associações, diferenciações, generalizações e conexões entre essas imagens para se orientar no mundo, ao que se chama de ideias imaginativas (CHAUÍ, 2011).

As ideias imaginativas urdem um tecido de relações e causalidades abstratas que pretendem oferecer-se como explicação dos acontecimentos, como interpretação dos afetos e como conhecimento do real. Embora a gênese das imagens esteja nas afecções corpóreas (a maneira pela qual o corpo se percebe e percebe os demais corpos quando afetados por eles ou quando os afeta), na mente, as ideias imaginativas envolvidas pelas imagens corporais desconhecem essa gênese e fabricam outra, como se as ideias imaginativas houvessem nascido sem relação com as imagens corporais. (...) A imaginação relaciona imagens por semelhança, contiguidade espacial e sucessão temporal, opera com analogias e, para explicar o que não compreende e cuja causa verdadeira ignora, inventa uma causalidade nova e inexistente, a causalidade segundo fins, ou causa final (CHAUÍ, 2011, p.153-154).

Espinosa chama esse encadeamento de ideias imaginativas como ordem comum da

Natureza, na qual as coisas se relacionam sem, no entanto, sabermos por que e como isso

acontece. No entanto, esta não é a expressão da potência da mente, mas sim o primeiro gênero do conhecimento da realidade. O acesso à verdade se dá quando a mente assume a sua potência natural para pensar e, assim, buscando a gênese e as causas adequadas e eficientes do que ocorre no mundo, gera ideias adequadas e nos faz reconhecer aquilo que o filósofo denomina de ordem

Neste sentido, Espinosa apresenta três gêneros de conhecimento, sendo o primeiro relacionado à imaginação e vinculado às percepções por experiência vaga e às ideias imaginativas surgidas a partir destas percepções; o segundo relacionado ao exercício da razão, constrói noções comuns a partir das propriedades gerais das partes e do todo, no entendimento das leis universais da natureza e da concordância ou conveniência entre as partes; e o terceiro gênero, exercício próprio do intelecto que expressa o atributo divino, que conhece adequadamente as essências singulares das coisas por meio de uma ciência intuitiva (E., II, prop. 40 escólio 2). A passagem das ideias inadequadas da mente (do primeiro gênero do conhecimento) para as ideias adequadas (do segundo e terceiro gênero) é a expressão do aumento da potência do indivíduo (CHAUÍ, 2011).