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2. A EDUCAÇÃO POPULAR COMO UM NOVO PARADIGMA NA AMÉRICA

2.1. A construção conceitual da Educação Popular na América Latina

Conceituar a Educação Popular na América Latina é um desafio, por ser um conceito amplo e pleno de abordagens e estudos das mais diversas áreas de conhecimento, de modo que o risco da simplificação também se evidenciou de forma clara, no sentido de não se apresentar apenas várias definições conceituais, mas

sim, explicitar os movimentos coletivos, as lutas populares que gestaram uma superação teórica de suas conceituações iniciais, na perspectiva de resgatar a contribuição da classe trabalhadora e seus processos organizativos e educativos em sua formulação.

Este foi um caminho difícil de ser trilhado, todavia, necessário para a compreensão do objeto de estudo desta dissertação, que emerge no seio deste debate como uma Campanha de Educação Popular, uma vez que, ao propormos analisá-lo à luz da abordagem dialética, essa abordagem requer que o consideremos em sua historicidade, e em sua relação com a totalidade social em que esteve inserida.

Por isso, ao pensarmos a Educação Popular, procuramos entendê-la enraizada no processo de acumulação capitalista e nos processos de luta e resistências dos povos latino-americanos. E como se estruturou como um campo de conhecimento, desde o sul do planeta, caracterizando um paradigma pedagógico latino-americano marcado pela identidade, pela história e luta no continente (Mejía, 2013).

É nesse sentido que Mota Neto (2016) destaca, citando Jara (1994), que elaborar uma teoria da Educação Popular no interior da história latino-americana supõe um esforço que vai muito além de realizar uma mera definição de conceitos e de encontrar uma formulação que seja aceita entre a maioria.

Ainda nessa direção de pensamento, Streck (2009) chama atenção para o fato de que ―quer definamos a Educação Popular a partir dos objetivos, do método, do conteúdo, do contexto ou dos sujeitos, sempre haverá dúvidas sobre o que ela é de fato‖ (STRECK, 2009, p. 2). Na concepção desse autor, é justamente nisso que reside uma de suas virtudes.

Na introdução do livro Perspectivas e Dilemas da Educação Popular, Paiva (1986) afirma que a ampliação do interesse pela Educação Popular, que ocorreu dos anos 1960 à metade dos anos 1980, foi acompanhada de um proporcional obscurecimento daquilo que se entende por Educação Popular, de modo que esse conceito foi sofrendo, simultaneamente, um estreitamento e uma desmedida ampliação.

A controvérsia de que tem sido objeto o conceito de ‗educação popular‘ entre nós nos últimos anos – já que há 15-20 anos ninguém teria dúvida em utilizá-lo para referir-se à universalização do ensino elementar ou aos programas de educação de adultos, fossem eles estatais ou não – mostra o seu caráter histórico. O que aí se inclui ou daí se exclui tem variado no tempo e, como mostra o caso brasileiro,

se modificando também ao sabor da conjuntura política. (PAIVA, 1986, p.17-18)

Assim como Thompson (2011), em seu famoso estudo sobre a classe operária inglesa, fala do ―fazer-se‖ da classe operária, ressaltando o movimento de ―auto fazer-se‖ das classes sociais ao longo da história, também a Educação Popular, tal como a entendemos, deve ser compreendida em seu constante processo de (re)fazer-se na ação, na prática, ao longo da história. Por compreendermos a Educação Popular como uma educação que se faz na ação, não é possível a encontrar pronta, pois a mudança é permanente. Ela acompanha o movimento da sociedade buscando sempre novos espaços para a sua realização, por isso, entendemos que se faz primordial nesse esforço de pensar teoricamente a Educação Popular, conhecer as experiências práticas dos sujeitos coletivos que realizaram experiências educativas caracterizadas como populares em diferentes contextos e momentos históricos.

Vários estudiosos tentaram sistematizar uma periodização da história da Educação Popular. Em seu estudo, Mota Neto (2016) nos mostra que, enquanto alguns entendem que só é possível falar em Educação Popular, propriamente dita, a partir dos anos 60, do século XX, outros enxergam a sua origem ou nas lutas de independência dos países latino-americanos contra a metrópole europeia ou na expansão da educação por meio da instrução pública no final do século XIX, ou ainda nas lutas do proletariado industrial do início do século XX.

Para Mejía (2013), é possível perceber a Educação Popular em dois períodos. O primeiro remonta às lutas pela independência na América Latina indo até a primeira metade do século XX, onde Simón Rodriguez e José Martí podem ser identificados como constituintes do primeiro tronco de pensadores que procuraram dar respostas às crises de contextos específicos pela Educação Popular.

De acordo com Mejía (2013), temos, como marco de uma educação que se denomina como popular nesse primeiro momento, a busca de uma educação própria, motivada pela ideia de que somos americanos e não europeus, materializada nas tentativas de construção de universidades populares ao longo do século XX, na América Latina, e nas experiências latino-americanas de construir uma escola própria ligada à sabedoria dos grupos indígenas.

O segundo período, começaria em meados do século XX, seguindo na atualidade, que corresponde, para o autor, ao período de desenvolvimento do pensamento pedagógico de Paulo Freire.

Lembra Mejía (2013) que esse período, caracterizado como auge da Educação Popular, coincide com um momento específico em que se dão uma série de construções conceituais e práticas de crítica à colonialidade na América Latina, dentre as quais estariam à teoria da dependência, a teologia da libertação, a investigação-ação participante etc.

Así, la educación popular llega al siglo XXI com um acumulado construido em sus luchas por transformar la sociedade y hacer posible la emancipación de todas las formas de dominio que le permitem proponerle al mundo de la educación em sus diferentes vertientes uma concepción com sus correspondientes teorias, propuestas pedagógicas y metodológicas para ser implementada em los múltiples espacios y âmbitos em los cuales se hace educación em esta sociedade. (MEJÍA, 2013, p.372)

Como alerta Paludo (2015), os processos de independência vivenciados na América Latina possibilitaram a formação de países que continuaram dependentes e servis.

A formação dos estados nacionais não foi acompanhada de menor exploração do trabalho, valorização da cultura dos povos nativos e de seus descendentes, dos escravos libertos e nem de um desenvolvimento voltado para as necessidades internas. A industrialização foi forjada no ideário do crescimento econômico e não no de desenvolvimento humano e, portanto, social; nunca deixou de estar ligada aos interesses internacionais, importando tecnologia e fornecendo produtos aos mercados; as mudanças foram realizadas com o suprimento externo de capital e o controle financeiro. Isso impediu o desenvolvimento em bases autônomas e não permite a superação do colonialismo. (PALUDO, 2015, p.221-222).

A colonialidade refere-se ao padrão de poder político, econômico e cultural que permaneceu na América Latina, mesmo após o fim da situação colonial, verificando- se através do racismo, da desigualdade de classes, do patriarcado, da intolerância contra religiões minoritárias e outras formas de opressão impregnadas na sociedade. A invasão, exploração e colonização da América Latina que se iniciou com os espanhóis e portugueses, foi seguida pelos ingleses, holandeses e, depois, estadunidenses.

O conjunto de práticas que busca a superação dessas colonialidade, não apenas por meio da libertação política, mas através do questionamento e busca por libertação de todas as relações de poder implicadas na organização

socioeconômica, na cultura, no conhecimento, na educação e nas mentalidades, é chamado de decolonialidade. De acordo com Mota Neto (2016), o conceito de decolonialidade

designa o questionamento radical e a busca de superação das mais distintas formas de opressão perpetradas contra as classes e grupos subalternos pelo conjunto de agentes, relações e mecanismos de controle, discriminação e negação da modernidade/colonialidade. (MOTA NETO, 2016, p.17)

Mota Neto (2016) destaca, ainda, que a decolonialidade, diferente das teorias tradicionais, não é pensada exclusivamente por intelectuais, mas é forjada, também no interior das lutas e dos movimentos de resistência, entre os quais figuram o Movimento Sem-Terra brasileiro, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indígenas e afros na Bolívia, no Equador e na Colômbia, bem como a Educação Popular, pensada como movimento.

Sendo assim, a Educação Popular, enquanto conjunto de práticas de resistência à educação formal e de crítica à sociedade instituída (Mota Neto, 2016), dialoga com o pensamento descolonial e decolonial presente nos estudos latino- americanos atuais.

A partir do que é colocado pelos autores acima referenciados, entendemos que na Educação Popular é uma educação tomada como instrumento político a serviço da transformação das relações sociais através da construção de um novo saber. Nesse sentido, acentuamos a natureza transformadora da Educação Popular: o seu fim último é a transformação da ordem social vigente com a mediação da educação.

Como bem colocou Brandão (1984), ―a possibilidade concreta de produção de uma nova hegemonia popular no interior da sociedade classista é o horizonte da educação popular‖ (BRANDÃO, 1984, p.70), cuja concepção e prática vão, ao longo da história, se reformulando. A década de 1990 foi um tempo de revisões para a educação popular (EP) na América Latina. Revisão de teorias, conceitos, metodologias, estratégias de ação, perfil de atuação dos educadores, material utilizado, etc.

É neste sentido que concordamos também com Santos e Souza (2011) que entendem a Educação Popular como ―um campo de construção de hegemonia, por meio do qual a aquisição de um conjunto de conhecimentos, valores e ideias acumuladas historicamente e desejáveis culturalmente é apropriado‖ (SANTOS; SOUZA, 2011, p.2013).

Em se tratando de Brasil, no entanto, a Educação Popular nem sempre esteve carregada deste sentido transformador e do pensamento questionador decolonial. O tópico seguinte aborda os caminhos da Educação Popular no Brasil.