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2. A EDUCAÇÃO POPULAR COMO UM NOVO PARADIGMA NA AMÉRICA

2.3. Fundamentos da Educação Popular a partir de Paulo Freire

O paradigma da Educação Popular emergente na década de 1960, e predominante nas décadas seguintes constitui-se do conjunto de ideias formuladas e práticas empreendidas pelo educador Paulo Freire.

Desse modo, a pedagogia freireana pode ser considerada como uma síntese teórico prática da Educação Popular que direcionou diversas experiências de educação de adultos e orientou os movimentos educativos populares dos anos 1960. Essa pedagogia preconizava a centralidade no diálogo como princípio educativo e a tomada de consciência, por parte dos educandos, de seu papel de sujeitos produtores de cultura, de conhecimento e de transformação do mundo.

O período histórico em que a Ceplar se materializa coincide com a emergência do pensamento freireano, por isso, propomos a analisar a concepção de Educação Popular experienciada na Campanha a partir da análise de algumas categorias do pensamento de Paulo Freire. Destacamos assim: a dialogicidade, a

conscientização, a transformação e a centralidade na realidade dos sujeitos educandos.

A dialogicidade freireana se fundamenta na premissa primordial de que a educação, para ser popular, não se dá numa relação verticalizada, como transmissão do saber daquele que sabe para aquele que não sabe, mas sim, através da construção compartilhada de conhecimento. Isso pressupõe uma relação horizontal em que haja ―a superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos‖ (FREIRE, 2014, p.82)

Os círculos de cultura são a grande expressão dessa dimensão dialógica da pedagogia freireana. O Círculo de Cultura visa promover o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita articulado ao debate sobre questões centrais do cotidiano, indo além da aprendizagem individual do ler e escrever. Em contraposição às aulas tradicionais, no círculo de cultura, a palavra circula entre todos. Não há um professor detentor do conhecimento único, acabado, e sim um professor que detém um conhecimento não partilhado por todos e que o compartilha com os educandos, exercendo o papel de mediador sem que haja hierarquia do conhecimento, agindo como animador das discussões, cuja ação,

identificando-se, desde logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador. Isso tudo exige dele que seja um companheiro dos educandos, em suas relações com estes. (FREIRE, 2014, p.86) Colocando-se ao lado dos educandos, o educador se reconhece como um ser que também aprende e o educando se reconhece como sujeito e não apenas objeto do ato educativo.

A conscientização, para Paulo Freire, evidencia o processo de construção de uma consciência crítica24 em superação a uma consciência ingênua. Sendo a educação como prática da liberdade, para Freire (2001), uma aproximação crítica da realidade, o processo de conscientização requer que os homens reconheçam-se enquanto seres que estão no mundo e com o mundo e assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.

No livro Educação como prática da liberdade – o seu primeiro publicado no Brasil –, Paulo Freire expõe as suas ideias sobre o papel da educação na sociedade brasileira da primeira metade do século XX, que, para o autor, se tratava de um período de transição. Freire (1983) entendia o Brasil da época como uma sociedade em trânsito, ou seja, que vivia a passagem de uma época para outra, de uma sociedade ―fechada‖ para uma sociedade ―aberta‖, democrática. Nesse processo, o povo estava emergindo de uma situação de imersão25, querendo participar e decidir, ou seja, abandonando a condição de ―objeto‖ e passando a ser sujeito.

Para Freire (1983), a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade naquele momento de transição deveria ser com uma educação crítica e criticizadora, que promovesse a passagem da ―transitividade ingênua‖ à ―transitividade crítica‖, ou seja, que promovesse a conscientização.

Tínhamos de nos convencer desta obviedade: uma sociedade que vinha e vem sofrendo alterações tão profundas e ás vezes bruscas e em que as transformações tendiam a ativar cada vez mais o povo em

24 A criticidade, para Freire (1983, p.61), implica a ―apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade‖.

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De acordo com Paulo Freire, a imersão refere-se a um estado em que os homens se acham submersos, engolidos, envoltos em uma determinada realidade social sem que se deem conta disso, por estarem tão adaptados e acomodados. Para Freire (2014), só na medida em que os homens se descobrem ―em situação‖, ou seja, enquanto seres que se ―encontram enraizados em condições tempo-espaciais que os marcam e a que eles igualmente marcam‖, é que esta situação deixa de parecer-lhes uma realidade espessa, nublada, que os envolve, e, então, pode haver o engajamento. Mas, para isso, é preciso enxergar essa situação ―de fora‖, ou seja, ―emergir‖, para depois, ―inserir- se‖, engajar-se naquela situação inicial visando transformá-la (FREIRE, 2014, p.141).

emersão, necessitava de uma reforma urgente e total no seu processo educativo. Reforma que atingisse a própria organização e o próprio trabalho educacional em outras instituições ultrapassando os limites esmos das estritamente pedagógicas. Necessitamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política (FREIRE, 1983, p.88).

Para o autor, a educação na fase de transição fazia-se uma tarefa altamente importante, pois seria necessária uma educação dialogal e ativa através da qual se chegaria à ―transitividade crítica‖, ou seja, o povo, antes imerso, mas que estava emergindo, poderia, através da educação, inserir-se criticamente na realidade através da ação reflexiva para transformá-la. Essa inserção crítica é, para Paulo Freire, a conscientização, um processo que, uma vez iniciado, não tem fim.

Nesse sentido, fazia-se necessária uma educação que fosse corajosa, propondo ao povo, ―a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época em transição‖ (FREIRE, 1983, p.59). Uma educação que cumpra essa tarefa não pode surgir das camadas dominantes. Somente uma educação que seja, essencialmente, popular. Para tal, é preciso uma pedagogia própria,

que tem de ser forjada com ele (o oprimido) e não para ele, enquanto homens ou povos na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação em que essa pedagogia se fará e refará (FREIRE, 2014, p. 43).

Dando continuidade, a centralidade na realidade dos sujeitos educandos se destaca, também, como uma matriz da educação dos oprimidos proposta por Paulo Freire, pois, se para realizar a superação da dicotomia educador-educandos, a educação problematizadora se faz dialógica, este diálogo precisa partir da realidade dos sujeitos educandos, pois estes só aprendem se o conhecimento for significativo para eles.

Ao se constituir numa educação que visa a conscientização do oprimido, esta se faz ―num esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham‖ (FREIRE, 2014, p.100). Requer, portanto, o reconhecimento dos educandos como sujeitos, pois, enquanto sujeitos, os seres humanos se reconhecem como membro de uma classe, de uma etnia, de um gênero, possibilitando, assim, o seu engajamento numa causa com a qual se identifique.

Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‗tratamento‘ humanista, para tentar, através de exemplos

retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‗promoção‘. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção (FREIRE, 2014, p.56). (grifos nossos)

É preciso que a educação dos oprimidos conte a história do oprimido e não a história do opressor. Uma educação que se oriente pela exaltação dos heróis que as classes dominantes elegeram para propagar o exemplo de conduta, por eles considerado adequado, e a estrutura de sociedade que continue lhes beneficiando, somente está a serviço da dominação. Uma educação que seja popular não pode se pautar pelo ―esquecimento‖ das lutas das classes dominadas ao longo de sua história. Daí que uma educação libertadora não pode ser elaborada nem praticada por quem domina e aprisiona.

Na medida em que serve à libertação, percebemos que o fim último dessa educação conscientizadora é a transformação da realidade. O oprimido tem a ―função ontológica‖ de realizar a sua libertação, mas ao se libertar o oprimido não liberta só a si, liberta também ao opressor, pois a libertação do oprimido não se dá através da troca de lugar na contradição opressores-oprimidos, mas no fim desta relação, com ―o desaparecimento dos primeiros enquanto classe que oprime‖.

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e

passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente

libertação. (FREIRE, 2014, p.57) (grifos nossos)

No esforço de compreender a Educação Popular a partir das formulações de Paulo Freire, encontramos em seus escritos a defesa de uma educação essencialmente popular, na medida em que é forjada nas/pelas classes populares, a partir do diálogo sobre a sua realidade e sendo orientada para promover a conscientização sobre seu lugar no mundo e com o mundo. Trata-se, pois, de uma concepção de educação que não se limita ao âmbito escolar nem se reduz à mera reprodução de conteúdos úteis à manutenção do capital. Tendo como fim a libertação do oprimido, uma educação que seja popular não objetiva a conformação social, mas sim a transformação da sociedade.

A partir de Paulo Freire, temos também o entendimento da Educação Popular enquanto processo, não sendo um fenômeno datado e situado, mas que se faz e se

recria no movimento da sociedade, interrogando, a cada momento histórico, o ―lugar de onde faz a sua leitura de mundo e a sua intervenção‖ (STRECK, 2009, p.2). Por isso, a Pedagogia Freireana entende que a educação ―para ser tem que estar sendo‖ (FREIRE, 2014, p. 102), pois, assim como os seres humanos, enquanto sujeitos históricos são inacabados, inconclusos, a realidade, sendo histórica, também é igualmente inacabada, ―desta maneira, a educação se faz constantemente na práxis‖ (FREIRE, 2014, p. 102).

É nessa direção de pensamento que Paulo Freire inicia a sua Pedagogia do Oprimido, colocando que ―mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu ‗posto no cosmos‘, e se inquietam por saber mais‖ (FREIRE, 2014, p.39). Como destaca Streck (2009), essa é uma tarefa que se coloca para cada geração e que ela precisa responder lançando mão das ferramentas de seu tempo.

A tarefa que se colocava, no momento em que Paulo Freire desenvolvia suas ideias, era a necessidade de superar o que ele chama de ―concepção bancária da educação‖ e construir uma educação que servisse à libertação e não à conformação. Sua pedagogia surge como uma alternativa emancipadora diante dos programas e campanhas educativos então predominantes, inspirando e orientando os movimentos educativos populares que, contrapondo-se àquelas práticas, brotam no início da década de 1960.

Ao mesmo tempo, tínhamos, naquele momento histórico, o campesinato brasileiro assumindo, pela primeira vez, uma perspectiva de classe social que estava buscando a sua libertação através de sua organização. E esse movimento do campesinato vai dialogar com os princípios e fundamentos da Educação Popular libertadora, pois tínhamos, de um lado, um processo de organização social de classe, e por outro, um processo de organização da educação, numa perspectiva não escolar, e sim da educação como um movimento cultural, ambos na direção da libertação e emancipação dos sujeitos. Tal vai ser o perigo representado por esse ―casamento‖ de ideias e ações que vai gerar uma reação por parte de setores das classes dominantes no sentido de conter a ameaça que vinha das classes trabalhadoras.

No capítulo seguinte, contextualizaremos este cenário de constituição do campesinato como classe, com o surgimento das primeiras grandes organizações

camponesas nos anos de 1960, e ao mesmo tempo, a organização dos movimentos educativos populares, dentre estes a Campanha de Educação da Paraíba – Ceplar.

3. EMERGÊNCIA DOS MOVIMENTOS CAMPESINOS E DOS