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Capítulo II- Propondo formas de conhecer o fenómeno

1. Investigar em Educação

1.2 A construção de conhecimento científico em Educação

Assim, para que a transformação social se materialize, revela-se necessário construir análises que mais do que segmentar poder e verdade, revelem a pertinência do exercício intencional do poder em prol da transformação do regime de verdade contemporâneo e ocidental, bem como, das condições que têm permitido a sua (re)produção e legitimação (Foucault, 1998 [1979]: 14).

O paradigma pós-moderno ou sócio-crítico (Amado et al., 2013), destaca-se, portanto, por ir além do reconhecimento das subjetividades implicadas no processo de produção de conhecimento científico, atribuindo à visibilização e análise das relações de poder socialmente enraizadas, o viés das perspetivas dos grupos dominantes que as (re)produzem, bem como à importância central da intervenção pela transformação dessas mesmas relações.

Deste modo, embora acolha os contributos do paradigma que o precede, enquanto marco do enfraquecimento da supremacia do paradigma hipotético-dedutivo, e procura pela adequação dos processos convencionados à produção de conhecimento científico às especificidades do objeto de estudo das Ciências Sociais e Humanas, o posicionamento sócio-crítico perfilha na conscientização (Freire, 2018 1968), condição sine qua non da transformação do status quo, identificado como excludente para os grupos e classes sociais distanciados da norma instituída. Na sua proposta, a Ciência não pode ser concebida como neutra, conforme defendido pelo paradigma positivista, sendo a visibilização das subjetividades, na qual se alicerça o Construtivismo, também insuficiente em sociedades desiguais e violentas. Deste modo, analisa a necessidade de (re)configuração dos modos de fazer Ciência conhecidos até então, impelindo à reflexão sobre o papel social e político do conhecimento científico, e respetivas formas de construir, com vista ao empoderamento dos grupos sociais na luta contra a dominação a que foram submetidos (Amado et al., 2013).

saber. Não obstante, a hibridez da Educação pode, de igual modo, enriquecer as grelhas de leitura e análise da realidade social e educativa construídas a partir deste campo de ação e reflexão, traduzindo-se em leituras, que por não se aprisionarem a uma só ciência, e seus modos de analisar os fenómenos, permitem construir uma visão holística, sem desconsiderar, porém, as especificidades de cada contexto e interações que nele se constroem.

Seguindo tal linha de reflexão, alia-se à complexidade e “especificidade do fenómeno educativo” (Amado et al., 2013: 19) a necessidade de sustentar a investigação que sobre ele incida em referenciais teórico-conceptuais das várias ciências, cuja articulação permite constituir os saberes da Educação, bem como, de recorrer a posicionamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos que considerem essas mesmas características.

Advogamos, nesta linha, uma proposta de aproximação, em vez de enquadramento, de uma investigação a paradigmas científicos, no plural, considerando tratar-se de uma lógica de múltiplas inscrições intencionais e adequadas às exigências colocadas pelo aprofundar de conhecimento num determinado âmbito, em vez de uma categorização estanque, aprisionada na sua conceção ontológica do conhecimento a lógicas simplistas, e seus impactos na produção, marcadas pelas limitações ao estudo do fenómeno (socio)educativo

Salvaguardamos não pretender advogar uma hibridez ontológica e epistemológica tal que inviabilize a produção de Ciência, mas, sustentar, em alternativa, o intercâmbio de influências entre os vários paradigmas, designadamente, aqueles que se inserem no múltiplo universo das metodologias qualitativas. Trata-se, portanto, de uma leitura sobre as formas de analisar o mundo e nele investigar que se pretende adequar à complexidade dos fenómenos sociais e educativos, da sua significação pelos sujeitos da investigação e impactos que exercem nas suas vidas, individuais e enquanto membros de grupos e classes sociais numa dada conjuntura histórica, política, social e económica, estabelecem relações com o poder (Amado et al., 2013; Foucault, 1998 [1979]).

Esta grelha de leitura alinha-se com uma visão dos paradigmas científicos como mais do que procedimentos convencionados no campo científico para obedecer a critérios de validade e rigor, considerando as relações que a Ciência estabelece com o mundo pelo qual é construída, e no qual se constrói. Nesta linha, os paradigmas condicionam os objetivos da Ciência e conhecimento que produz, podendo adotar posicionamentos diversos relativamente ao status quo, desde instrumento de dominação que legitima e

permite perpetuar violência simbólica (Bourdieu, 1997 [1996]) contra os grupos sociais subalternizados, ou como base de uma investigação-intervenção que objetiva a transformação social. O primeiro desconsidera a subjetividade e a ideologia dominante, camuflada sob um ilusório véu de neutralidade, o segundo (re)conhece os processos de subjetivação dos fenómenos, e suas manifestações contextuais, em si mesmas, perfilhando, no campo científico, perspetivas distanciadas da norma subalternizada pelo regime de verdade contemporâneo e ocidental (Foucault, 1998 [1979]), com vista à construção direta dessa transformação, através da emancipação dos grupos e classes estruturalmente oprimidos/as (Amado et al., 2013).

A pertinência de uma aproximação paradigmática encontra, aliás, no âmbito da presente investigação justificações pertinentes.

Detendo-se sob o objetivo de investigar as imagens como possíveis (re)produtoras de violência(s) contra meninas e mulheres, e, neste âmbito, interpelar o papel das instâncias (socio)educativas na construção da igualdade, adota um carácter eminentemente reflexivo e crítico. Propõe-se, deste modo, uma aproximação paradigmática articulada com uma perspetiva híbrida de cruzamento entre as grelhas de leitura propostas pelo paradigmas fenomenológico-interpretativo e sócio-crítico.

Argumentar em torno deste posicionamento conduz-nos até à aproximação entre a grelha interpretativa, do paradigma fenomenológico, e a grelha compreensiva, da lente sócio-crítica de construção de Ciência.

Considerando a posição a partir da qual o conhecimento é produzido, bem como, a sua relação com o status quo, a compreensão dos fenómenos a partir da análise crítica, reflexiva, e centrada na construção coletiva da mudança social, características do posicionamento sócio-crítico (Amado et al., 2013), não seriam possíveis sem a análise do contexto como universo de significados, que permitem subjetivar os fenómenos e, através da linguagem, (re)produzi-los, ou seja, das influências do paradigma interpretativo.

Neste sentido, a investigação foi construída a partir do reconhecimento do

“predomínio de uma Razão, universal […] eurocêntrica, masculina, branca, burguesa, setecencista” (Silva, 1996: 248), que impondo “visões particulares disfarçadas como universais” (Silva, 1996: 249), estigmatiza e subalterniza grupos sociais com base no seu género, ‘raça’/etnia, classe social e idade (Crenshaw, 1989; Collins 2000 [1990]), a presente investigação distancia-se do paradigma sócio-crítico por não possuir uma componente de co-construção e de intervenção participativa.

Embora reconheçamos a presente investigação como espaço de (meta)reflexão teórico-conceptualmente alicerçada sobre a(s) violência(s) (re)produzidas através das imagens, sem uma componente de co-construção e de intervenção participativa com os grupos (re)produtores de cultura em contextos (socio)educativos, como as crianças, as suas famílias, educadoras/es de infância, entre outras/os agentes das comunidades educativas com intervenção na Infância, prevista no tempo e espaço a si dedicado, conforme expectável na sequência de uma aproximação do paradigma sócio-crítico, sustentamos tratar-se de uma ferramenta que permita informar esse mesmo processo de intervenção pela transformação social a partir de contextos (socio)educativos.

Na linha de Harding (1996 1986) destaca-se, ainda, uma preocupação, não apenas ao nível da posição social, política e cultural a partir da qual o conhecimento científico é produzido, e, portanto, do standpoint de quem investiga no âmbito de uma objetividade forte (Harding, 2015) ,que permita reconhecer a vez e voz dos grupos e classes sociais em posição de subalternidade, no quadro da presente investigação, materializa, não tanto pela coparticipação desses mesmos grupos na construção de conhecimento cientifico, mas, na procura por referenciais epistemológicos, que se distanciem das visões androcêntricas e heteronormativas, veladas como neutras.

Articulando a teoria do Standpoint (Harding, 1996 [1986]), com as perspetivas de algumas teóricas da interseccionalidade (Crenshaw, 1989; Collins, 2000 [1990]), além do género, também a ‘raça’/etnia, classe social e a idade, surgem como categorias de opressão-exploração-discriminação por parte dos grupos sociais que se impuseram como dominantes, tendendo, por efeito, o standpoint de pessoas cujas vivências sejam atravessadas pela opressão-discriminação-exploração a diferir, substancialmente, dos pontos de vista de homens ocidentais, heterossexuais, de classe socioeconómica favorecida, por exemplo, situados numa posição social de privilégio.

A este nível, importa, ainda, destacar o contributo teórico-conceptual de Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), no qual reconhecem a pertinência de abrir o campo científico aos conhecimentos produzidos no Sul e para o Sul, ou seja, de e para países não ocidentais. A sua abordagem deriva da conceção dos discursos sobre os/as colonizados/as como eivados pela perspetiva dos povos responsáveis pelo colonialismo, podendo articular-se com a proposta de Gayatri Spivak (1988) em torno do conceito de violência epistémica.

A proposta de reconhecimento do conhecimento produzido no Sul, para o Sul (Santos e Meneses, 2009), alinha-se, portanto com uma lógica de valorização da diversidade de perspetivas sobre o mundo, e das verdades às quais se associam (Foucault, 1998 [1979), situando-se como pilar de uma Ciência próxima do paradigma sócio-crítico (Amado et al., 2013) por preocupada com os impactos do conhecimento científico produzido (Bourdieu, 2001 1993).

No quadro da presente investigação, a aproximação do paradigma sócio-crítico materializa-se, também, por se priorizar o alicerce teórico-conceptual em literatura científica produzida a partir de posições políticas, sociais e culturais distintas, tendo em vista não somente visibilizar, como interpelar as relações de poder social e culturalmente intrincadas (Galtung, 1969; 1990).

A aproximação da investigação do paradigma sócio-crítico é, ainda, enfatizada pela grelha desenvolvida pelos investigadores estado-unidenses Egon Guba e por Yvonna Lincoln (1994), na qual propõem aferir a qualidade do conhecimento produzido ao abrigo de vários paradigmas científicos, através de alguns critérios. De acordo com a sua abordagem, não somente a investigação sócio-crítica é histórica, social, cultural e politicamente enquadrada, a posição social a partir da qual se investiga considerada e alvo de reflexão contínua, como a Ciência deve catalisar a intervenção em prol transformação social (Guba e Lincoln, 1994: 112).

Tendo a presente investigação sido construída com o horizonte colocado na visibilização das assimetrias de poder, na sua desconstrução e prevenção da(s) violência(s) que lhe subjaz(em), a partir de contextos (socio)educativos, aproxima-se, assim, de forma significativa do paradigma sócio-crítico (Amado et al., 2013)

Distanciando-nos de uma lógica de enquadramento paradigmático estanque num só paradigma, advogamos o posicionamento da presente investigação no cruzamento entre o paradigma fenomenológico-interpretativo e o paradigma sócio-crítico, destacando-se, no âmbito do primeiro, o carácter eminentemente interpretativo, o estatuto atribuído à subjetividade de quem investiga, e o impacto que a mesma exerce na significação do fenómeno, e, na linha do segundo, do contexto e conjuntura a partir da qual a investigação se constrói, em forte relação com o binómio verdade-poder (Foucault, 1998 [1979)

O carácter eminentemente reflexivo da investigação, bem como, a sua finalidade enquanto instrumento de reflexão, ainda não utilizado em contexto social amplo,

aproximam-na de uma intersecção entre o paradigma fenomenológico-interpretativo e o paradigma sócio-crítico.

É, todavia, vincado, o seu distanciamento do Positivismo, e máximas na qual se alicerça, considerando-se que permitem ocultar a(s) violência(s), obliterando os constrangimentos impostos pelos grupos sociais dominantes - homens brancos de classe socioeconómica favorecida, por exemplo - à livre construção e prossecução de um projeto de vida por parte de meninas e mulheres (Collins 2000 [1990]; Magalhães, 2007).

A partir do cruzamento da abordagem de Bourdieu (1989), em torno do conceito de poder simbólico, e da proposta conceptual de Spivak (1988), relativamente ao conceito de violência epistémica, é, ainda, possível pensar a Ciência Moderna, positivista, como (re)produtora de violência simbólica (Bourdieu, 1997 [1996]), contra os grupos subalternizados, invisibilizando as suas subjetividades e narrativas, que constroem sobre si mesmos (Gayatri, 1988), sob o axioma da neutralidade.

A perspetiva adotada na presente investigação opõe-se, portanto, aos axiomas da Ciência Moderna, materializada pelo paradigma dominante (Santos, 1995), como (re)produtora e legitimadora das desigualdades sociais, designadamente, pela sua fundamentação num standpoint (Harding, 1996 1986]) que não reconhece, através de um ilusório véu de neutralidade (Amado et al., 2013), camuflando as suas pretensões de construção de conhecimento científico universal.