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Policromia da (re)produção do género na Infância: uma proposta de análise visual a filmes da Disney

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Academic year: 2023

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MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO, GÉNERO, CORPO E VIOLÊNCIA

Policromia da (re)produção do género na Infância: uma proposta de análise visual a filmes da Disney

Débora Filipa da Costa Cardoso

M

2022

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Policromia da (re)produção do género na Infância: uma proposta de análise visual a filmes da Disney

Débora Filipa Costa Cardoso

Dissertação apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação com orientação científica da Professora Doutora Margarida Louro Felgueiras e coorientação científica da Professora Doutora Maria José Magalhães

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Resumo

Em sociedades nas quais o poder se encontra assimetricamente distribuído pelos grupos e classes sociais, meninas e mulheres confrontam-se com formas várias de violência baseada no género, na classe social, na ‘raça’/etnia e na idade, as quais limitam não somente a construção do seu projeto de vida, como a sua livre prossecução. Entre as manifestações da violência, destaca-se a perpetrada no domínio simbólico, especialmente, através da linguagem. Enquanto mediadora das interações sociais e alicerçada em valores, normas e princípios na génese da construção de signos e atribuição de significados, culturalmente alicerçados a várias dimensões e elementos do real, a linguagem não permanece incólume às relações de poder que atravessam a vivência em sociedade, podendo (re)produzi-las, por intermédio do recurso a estereótipos, por exemplo. Neste processo, também as imagens, como formas de linguagem, podem perpetrar violência, sedimentando, social e culturalmente, as relações de dominação. Importa, por conseguinte, debruçar o olhar sobre a infância, período no qual se iniciam a aprendizagem e construção da linguagem, e no qual as imagens são, não raras vezes, utilizadas como ferramentas primordiais no processo de desenvolvimento das crianças. A questão que nos orienta é interpelar o papel da Educação, com especial destaque para as instâncias educativas de educação pré-escolar, na visibilização, desconstrução e prevenção primária da violência. No seguimento desta proposta conceptual, a presente investigação adota como principal objetivo compreender de que forma as imagens podem perpetrar violência. Tendo em vista responder a tal objetivo, recorreu-se a uma revisão de literatura dos campos científicos dos Estudos de Género, Sociologia, Psicologia, Linguística e Educação, como quadro teórico-conceptual de alicerce à investigação. Metodologicamente, selecionaram-se produções cinematográficas da Walt Disney Company, como artefactos culturais significativos na Infância. Privilegiou-se uma proposta de análise visual a filmes produzidos entre 1938 e 2013, orientada pelas perspetivas críticas feministas, e, em especial, pela abordagem interseccional. Embora a análise se centre, particularmente, na categoria género, a investigação em torno da mesma obriga à consideração da intersecção com outras dimensões de análise, como a classe social, a

‘raça’/etnia e a idade, que são parte integrante da vida em sociedade. A análise das imagens mais consumidas por gerações de crianças desvelou representações estereotipadas sobre o género, que (re)produzem as assimetrias de poder socialmente enraizadas. Longe de construir um instrumento finalizado, a presente investigação visa constituir-se como ferramenta de reflexão sobre o papel das imagens utilizadas nas instâncias familiares e

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educativas, enfatizando a pertinência da prevenção primária da violência, e, inclusive, da (re)configuração dos contextos (socio)educativos como espaços nos quais se educam agentes da transformação social.

Palavras-Chave: género; violência; educação; linguagem e imagem; prevenção primária da violência

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Abstract

In societies with an asymmetrical power distribution by the social classes and groups, girls and women are confronted with various forms of violence based on gender, social class, 'race'/ethnicity, and age, which limit not only the construction of their life project, but also its free pursuit. Between the manifestations of violence, stands out the one perpetrated in the symbolic domain, especially through language. As a mediator of social interactions and based on values, norms, and principles in the genesis of the construction of signs and the attribution of meanings culturally based on various dimensions and elements of reality, language does not remain intact to the power relations that constrain the experience in society, (re)producing them, for example, through stereotypes. Images, as forms of language, can also perpetrate violence, socially and culturally reinforcing the relations of domination.

Therefore, it is important to focus on childhood, as the period in which language learning and construction begins, and in which images are often used as primary tools in the process of children's development. In this investigation, we question the role of Education, specifically, of the pre-school educational contexts in deconstructing and preventing violence. Following this conceptual proposal, the main objective of this investigation is to understand how images can perpetrate violence. In order to answer to this objective, we used a literature review of the scientific fields of Gender Studies, Sociology, Psychology, Linguistics and Education, as the theoretical-conceptual framework of the investigation.

Methodologically, there were selected film productions from Walt Disney Company, as significant cultural artifacts in childhood. We privileged a visual analysis proposal of films produced between 1938 and 2013, guided by feminist critical perspectives, in particular, the intersectional approach. Although the analysis focuses particularly on gender, research around this category required the consideration of the intersection with other dimensions of analysis, such as social class, 'race'/ethnicity, and age, which are an integral part of life in society. The analysis of the images most consumed by generations of children made visible stereotyped representations of gender which (re)produce socially rooted asymmetries of power. Far from being a finished instrument, this investigation aims to constitute itself as a tool for reflection on the role of images used in family and educational contexts, emphasizing the importance of the primary prevention of violence, and of the (re)configuration of the (socio)educational contexts as social change agents’ development spaces.

Keywords: gender; violence; education; language and image; primary violence prevention

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Resumé

Dans les sociétés où le pouvoir est asymétriquement réparti entre les groupes sociaux et les classes, les filles et les femmes sont confrontées à diverses formes de violence fondées sur le sexe, la classe sociale, la « race » /l'ethnicité et l'âge, qui limitent non seulement la construction de leur projet de vie, mais aussi sa libre poursuite. Parmi les manifestations de violence, celle perpétrée dans le domaine symbolique ressort, notamment à travers le langage. Dans ce processus, les images aussi, en tant que formes de langage, peuvent perpétrer la violence, sédimentant, socialement et culturellement, les relations de domination. Il est donc important de se concentrer sur l'enfance, une période où commence l'apprentissage et la construction du langage, et où les images sont souvent utilisées comme outils primaires dans le processus de développement des enfants. La question qui nous guide est de questionner le rôle de l'Éducation, avec un accent particulier sur les instances éducatives de l'éducation préscolaire, dans la visibilité, la déconstruction et la prévention primaire de la violence. Suite à cette proposition conceptuelle, la présente enquête adopte comme objectif principal de comprendre comment les images peuvent perpétrer la violence.

Afin de répondre à cet objectif, une revue de la littérature des domaines scientifiques des études de genre, de la sociologie, de la psychologie, de la linguistique et de l'éducation a été utilisée comme cadre théorique et conceptuel de l'enquête. Méthodologiquement, les productions cinématographiques de la Walt Disney Company ont été sélectionnées comme des artefacts culturels importants dans l'enfance. Nous privilégions une proposition d'analyse visuelle de films réalisés entre 1938 et 2013, guidée par des perspectives critiques féministes et, en particulier, par l'approche intersectionnelle. Bien que l'analyse se concentre particulièrement sur la catégorie de genre, la recherche autour de celle-ci nécessite de considérer l'intersection avec d'autres dimensions d'analyse, telles que la classe sociale, la « race »/ethnicité et l'âge, qui font partie intégrante de la vie en société. L'analyse des images les plus consommées par des générations d'enfants a révélé des représentations stéréotypées sur le genre, qui (re)produisent des asymétries de pouvoir socialement ancrées. Loin de construire un instrument fini, la présente enquête vise à se constituer comme un outil de réflexion sur le rôle des images utilisées dans les instances familiales et éducatives, soulignant la pertinence de la prévention primaire de la violence, voire la (re)configuration des contextes ( socio)éducatives en tant qu'espaces dans lesquels les agents de transformation sociale sont éduqués.

Mots-clés: genre ; violence ; éducation ; langage et image; prévention primaire de la violence

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Agradecimentos

Após 2 anos de percurso conducente ao grau de mestre, não poderia findar a etapa que na presente dissertação se materializa sem tecer agradecimentos aos pilares deste transformador percurso formativo.

São parcas as palavras cujos significados permitam conter tudo o que por vocês sinto, e insuficiente o tempo no qual as poderia partilhar. Apresento, assim, um símbolo, que os permita melhor representar: a árvore.

Semente

Na semente te encontro, mãe. E que importante palavra para representar a pessoa cujo amor me acolhe desde os primeiros segundos de existência. A ti te agradeço por sempre estares presente, significando todos os pequenos e grandes passos da minha trajetória com o mais afetuoso e sincero abraço. A tua (re)criadora sensibilidade e (re)agente espírito vincam-se em mim a cada dia que passa.

Raiz

Pai, o suporte de quem sou. A ti te agradeço pelos sábios conselhos e encorajamentos.

Caule

Avós, já de vincado sorriso viajo até ao caule no qual vos encontro.

Em ti avô, recupero a sapiente voz que ecoa em todo o meu ser. A ti muito te agradeço, querido catalisador da (re)criadora reflexão, o berço de mundos do qual se alimenta o cérebro.

Avó! Em ti revejo a felicidade com a qual sempre me recebes. A palavra “mulher” em ti percebe os seus limites.

Ramos

Reconheço nos ramos o encaracolar dos vossos cabelos, tias. As mais próximas conselheiras, solícitas em todos os instantes que sempre me fazem recordar a importância da chuva que sobre esta planta vai caindo.

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Folhas

Aí te vejo, caras Vilminhas. Agradeço-te o reflexivo olhar, admirável apalavrar de sentidos e carinhosa companhia. Que bom é ter-te na minha vida!

Flor!

Na parte mais vezes contemplada da árvore, encontro-te L. Na flor vejo o teu abraço sincero e amável. Aproveito para lhe agradecer a presença na minha vida como força que me fez persistir em momentos desafiantes. Nada tem de frágil a flor que materializas, nela (re)significas a resistência.

Perto do fruto

Neste caminho, saliento o sempre empático olhar da Professora Doutora Margarida Louro Felgueiras, significante da sua paixão pela Educação e pelo seu potencial transformador. À Professora agradeço os sábios conselhos, e estimulantes reflexões (re)construtoras de mundos de significados, a atenciosa escuta e as calorosas palavras com que acalmou as minhas inquietações. Serão recordadas as carinhosas (re)orientações, a disponibilidade e a paciência ao longo deste período.

À Professora Doutora Maria José Magalhães agradeço a paixão pelos feminismos que em mim cultivou. A construção da igualdade pressupõe uma luta política que não poderia se não resultar da transformação das mentes.

Fruto

Com o vento do crescer (re)vejo-me no fim: o fruto deste ser por todas as suas partes construído.

E, como as plantas, espero continuar a crescer, recheando o ar dos saberes colhidos do campo no qual me debruço.

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Índice

Introdução ... 1

Capítulo I- Enquadramento teórico-conceptual: percorrendo grelhas de análise do fenómeno ... 4

1.Violência(s) ... 5

1.1 Aproximação de um conceito de violência: digressão sócio-histórica ... 5

1.2 A violência como ferramenta de resistência ... 13

2. Os Movimentos Feministas e os seus contributos ... 14

3. Género e Educação ... 25

3.1 O conceito de género ... 25

3.1.1 Género: para lá dos discursos dominantes ... 28

3.2.1. O papel da família enquanto agente de socialização primária ... 32

3.2.2. O Jardim de Infância como agente de socialização ... 33

4. Género e Linguagem ... 35

4.1 Os processos de aquisição e construção da linguagem na Infância ... 39

5. Género e violência(s): Na linha da prevenção primária da(s) violência(s) a partir do Jardim de Infância ... 41

Capítulo II- Propondo formas de conhecer o fenómeno ... 48

1. Investigar em Educação ... 49

1.1 Ciência e paradigmas científicos ... 49

1.2 A construção de conhecimento científico em Educação ... 56

1.3 A construção de uma investigação ... 61

1.4 Da investigação dos significados da(s) linguagem(ns)... 63

2. O estatuto da imagem em Ciência ... 66

2.1 A utilização de metodologias visuais no campo educativo ... 69

3. Ética e Moral na construção de uma investigação em Educação ... 75

3.1 Explorando a complexa relação entre Ética e Moral ... 75

3.2 Moral e Ética em Educação ... 76

3.3 Desafios éticos na construção de uma investigação baseada em imagens ... 78

Capítulo III-Para lá das cores e traços: uma proposta de análise visual ... 80

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1. Breve história do cinema ... 81

1.2 Breve história do cinema de animação ... 83

1.3 O universo cinematográfico da Walt Disney ... 83

1.4 A presença dos media na contemporaneidade ... 84

1.5 Visual(izar) o cinema como (re)produtor de violência(s) ... 86

1.6 Educação e Feminismos: o entrecruzar de contributos para a análise visual do cinema de animação... 89

1.7 Análise visual crítica de alguns clássicos de animação de princesas da Disney ... 92

1.7.1 Breve apresentação dos filmes analisados ... 92

1.7.2.1 Apresentação dos principais resultados visual(izados) ... 93

1.7.2.2 Análise da(s) violência(s) visual(izadas) ... 95

1.8 Da visual(izada) diferença à coletiva desconstrução: o papel do Jardim de Infância na prevenção primária da(s) violência(s) ... 129

Considerações finais ... 132

Visualizar a(s) violência(s) a partir das Ciências da Educação ... 132

A visualização da(s) violência(s) e as Ciências da Educação ... 133

Desafiante visual(izado): principais aprendizagens construídas com a investigação .... 136

Referências Bibliográficas ... 138

Apêndice ... 151 Anexos

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Índice de Tabelas e Gráficos

Tabela 1: Tabela de categorização da análise visual dos filmes visualizados...72

Gráfico 1: Evolução do número de subscritoras/es da plataforma Disney Plus em todo o mundo entre 2020 e 2022...85

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Introdução

A investigação na qual se alicerça a presente Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação1 adotou como foco temático o estudo da relação entre imagens, enquanto forma de linguagem, e a construção do género na Infância. Inicialmente analisado como categoria de análise em si mesmo, posteriormente, na procura por melhor adequar a grelha de abordagem, a partir da sua intersecção com a ‘raça’/etnia, a classe social e a idade.

Orientada pelo objetivo de investigar as imagens como possíveis (re)produtoras de violência(s) exercidas contra meninas e mulheres, apresentou-se uma proposta de análise visual a 3 filmes da Walt Disney Company dedicados à Infância entre os quais

“Snow White and The Seven Dwarfs”/“A Branca de Neve e os Sete Anões” (1937), “The Princess and The Frog”/“A Princesa e o Sapo” (2009) e “Frozen” (2013).

A justificação da pertinência da presente investigação no âmbito das Ciências da surge na sequência do interesse pessoal pelo aprofundamento de conhecimento a partir do entrecruzar dos contributos feministas e da multirreferencialidade epistemológica característica da Educação (Charlot, 2006). Por sua vez, e na esteira da(s) violência(s) visibilizadas pelos feminismos (Cova, 1998), está articulada com o seu reconhecimento como grave problema social, que entrava a livre construção e prossecução de um projeto de vida por meninas e mulheres (Magalhães, 2007; Magalhães et al., 2017), traduzindo- se, inclusive, nas suas manifestações diretas, em custos pessoais, profissionais, psicológicos, sociais e ao nível do desempenho escolar de meninas e mulheres (Lisboa, Carmo, Vicente, e Nóvoa, 2003).

A pertinência do estudo desenvolvido é, igualmente, enfatizada pelo reduzido número de investigações desenvolvidas no mesmo âmbito em contexto nacional, sendo que, as recolhidas a partir de uma pesquisa de literatura científica orientada pelos termos género, violência, educação, imagem e prevenção primária da violência2 nos Repositórios Científicos de Acesso Aberto em Portugal (RCAAP), embora fundamentadas numa grelha de leitura feminista, tendem a centrar-se em perspetivas ou semiótica de análise de imagens publicitárias, a partir dos saberes das Ciências da

1 A presente investigação foi informada pelos contributos do Projeto BO(U)NDS - Laços, Limites e Violência: Estudo longitudinal de programas de prevenção da Violência de Género em contexto escolar, promovido pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, coordenado pela Professora Doutora Maria José Magalhães, e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

2 Em simultâneo, ou em grupos de dois, pela ordem apresentada.

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Comunicação (Mota-Ribeiro, 2010), na análise visual de produções artísticas (Seixas, 2015), ou em análises de cinema centradas nas narrativas verbalmente realizadas (Pinto, 2019), desconsiderando as imagens e os seus impactos enquanto potência significante e, simultaneamente, produtora de significados (Saussure, 2006 [1916]). No âmbito da prevenção da violência em contexto de Jardim de Infância (Teixeira, 2015), não foram encontradas investigações centradas na desconstrução dos produtos visuais da Indústria Cultural (Adorno e Horkheimer, 1947 [1944]).

Uma pesquisa regida pelos mesmos termos no Google Scholar permitiu identificar uma abordagem do Brasil no âmbito da análise das imagens de filmes da Walt Disney Company a partir de uma perspetiva de cruzamento entre contribuições feministas e Educação, todavia, não explorou a(s) violência(s) (re)produzidas pelas imagens nem propôs a sua prevenção primária (Silva, 2021).

Reforça-se, deste modo, a pertinência social e científica de Policromia da (re)produção do género na Infância: uma proposta de análise visual a filmes da Disney.

Pretende, assim, configurar-se como uma ferramenta de reflexão teórico- conceptualmente alicerçada que permita (re)pensar o papel das instâncias socioeducativas, em especial, o Jardim de Infância, um dos contextos de socialização decisivos no processo desenvolvimental das crianças, na visibilização da(s) violência visual(izadas) e na sua prevenção primária, como trabalho enquadrado com a promoção da igualdade.

No processo de desenvolvimento desta investigação imperou cruzar conceitos como Género, Violência, Educação, Linguagem e Imagem, assim como Prevenção da Violência estruturantes na construção de uma interpretação-compreensão com solidez teórico-conceptual em relação ao tema proposto.

A dissertação estrutura-se em três capítulos.

No Capítulo I- Enquadramento teórico-conceptual: percorrendo grelhas de análise do fenómeno, exploramos referenciais teóricos, filosóficos e conceptuais dos campos científicos da Sociologia, Violência(s), Linguística, Psicologia e Educação, articulando-os com a pluralidade de contributos dos movimentos feministas. Objetivou- se, fundamentalmente, conhecer o estado da arte, e construir uma interpretação do fenómeno. Encetamos o capítulo em digressão sócio-histórica pelas principais contribuições sociológicas e filosóficas em torno do conceito de violência, viajando até à pertinência dos movimentos feministas para a (re)conceptualização do fenómeno a partir de um prisma de género. Em seguida, vinculamos Género e Educação, centrando-nos nas

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(re)produções do género e responsabilidade da Educação na construção da transformação social. Aproximando-nos do final do capítulo, aprofundamos abordagens do campo da Linguagem, conhecendo o seu objeto de estudo como construção social e cultural, adquirida e construída desde os primeiros anos de vida da criança. Finalizamos partindo do reconhecimento da linguagem como (re)produtora de relações de poder, enfatizando o papel do Jardim de Infância, um dos principais agentes de socialização de género, na Infância, na prevenção primária da violência (Magalhães et al., 2017).

No Capítulo II- Propondo formas de conhecer o fenómeno introduzimos os posicionamentos ontológicos, epistemológicos e paradigmáticos na génese da metodologia de investigação acionada. Adotando um prisma crítico e reflexivo sensível às especificidades resultantes da construção de um estudo interpretativo-compreensivo sobre as imagens e a partir dos saberes da Educação, detemo-nos nas interpelações éticas que acompanharam a investigação, e sua pertinência no aprofundamento e construção de conhecimento científico.

A nossa proposta de análise do campo empírico selecionado é explorada no Capítulo III- Para lá das cores e traços: análise visual. Neste segmento, apresentamos, com maior detalhe, os instrumentos utilizados para analisar os filmes e séries selecionados, interpelando as interpretações construídas.

Viajando em retrospetiva desde os objetivos propostos, à materialização e finalização do processo, reservamos tempo e espaço para a Conclusão, debruçando-nos sobre a pertinência da investigação no campo das Ciências da Educação, bem como, sobre as principais aprendizagens consolidadas ao longo do processo e seu interesse para uma intervenção preventiva no jardim de infância .

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Capítulo I

Enquadramento teórico-conceptual:

percorrendo grelhas de análise do

fenómeno

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1.Violência(s)

1.1 Aproximação de um conceito de violência: digressão sócio-histórica

Derivada do latim violentia, preservou ao longo dos séculos, um carácter polissémico, reverberando distintos modos de ser analisada, social e culturalmente. Na contemporaneidade, de acordo com o sociólogo Michel Misse (2016), a procura pela etimologia do conceito assinala a ânsia pela sua compreensão e a pluralidade de visões sobre o fenómeno, traduzindo-se no desenvolvimento de teorias centradas na conceptualização deste fenómeno a partir de vários ramos do saber.

A Sociologia destacou-se neste âmbito, assumindo, segundo a investigadora britânica Sylvia Walby (2012), um papel preponderante na análise da violência, concebida, sob as suas lentes epistemológicas, como fenómeno complexo, inextricável das dinâmicas constitutivas da vida em sociedade.

Uma breve digressão sócio-histórica, desde a corrente funcionalista na qual se insere a proposta de abordagem do sociólogo alemão Émile Durkheim (2004 [1895]), ao quadro teórico-conceptual adotado por Max Weber (2003 [1919]; 2004 [1922]), e grelha de leitura marxista (Marx e Engels, 2005 [1848]) permite reforçar a perspetiva apresentada por Walby (2012).

Concebendo a sociedade moderna como organizada organicamente em sistemas, aos quais incumbiriam funções específicas, interdependentes entre si e essenciais à coesão social, Durkheim (2004 [1895]) robusteceu a corrente funcionalista, explicando a violência como resultante da desintegração das normas sociais que coligariam tais sistemas. À luz desta abordagem, a pobreza foi subentendida como categoria social catalisadora da violência, atribuída, por conseguinte, a grupos social e economicamente desfavorecidos (Durkheim, 2004 [1895]).

Não obstante a pertinência da proposta teórico-conceptual construída por Durkheim (2004 [1895]), esta é, na perspetiva de Walby (2012) desafiada pelo aprisionamento da grelha de conceptualização da violência à pobreza e à desviância.

Importa, assim, considerar outras abordagens sociológicas debruçadas sobre a (re)conceptualização da violência, entre as quais, a de Max Weber (2003 [1919]; 2004 [1922]). O sociólogo e economista alemão analisou a violência como fenómeno vinculado ao contexto social e económico no qual se manifesta. Sustentado uma abordagem

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longitudinal afirma um decréscimo no gerir de problemas com recurso à violência interpessoal, na Modernidade, Weber (2003 [1919]) e justifica-o pela repressão exercida pelos Estados, na sequência da consolidação de um monopólio da violência legítima sobre os/as cidadãos/ãs. O Estado como detentor do monopólio da violência legítima, procuraria mitigar e criminalizar outros tipos de violência considerados ilegais.

Desenvolveram-se outras abordagens sociológicas e psicológicas centradas na tese diminuição de violência. Neste âmbito, destaca-se a tese da suavização dos costumes e do comportamento humano, sustentada pelo sociólogo alemão Norbert Elias (2006 [1939]). De acordo com a sua proposta, uma complexa teia de interações entre transformações económicas e sociais veiculadas pela Modernidade, e o desenvolvimento de maior controlo sobre a manifestação de impulsos violentos conduziram à diminuição da violência. Na sua tese, identifica o diálogo e a negociação como catalisadores, ainda que graduais, do decréscimo no recurso à violência interpessoal ao longo do processo civilizacional. Neste sentido, dever-se-ia ao processo de desenvolvimento civilizacional o decréscimo da violência interpessoal, na qual se inseriria a repressão e punição exercida pelos Estados modernos relativos ao recurso à violência interpessoal.

A perspetiva crítica de Walby (2012) sobre a abordagem weberiana (Weber, 2003 [1919]) centra-se na interação construída pelo sociólogo entre violência e Modernidade, refletindo sobre a violência como compartilhada entre os Estados modernos, detentores do monopólio do seu uso legítimo, e grupos sociais privilegiados pelos vários sistemas de opressão, discriminação e exploração, entre os quais o patriarcado e o sistema colonial.

Walby (2012) versa, ainda, sobre o conceito de modernidade, interpelando a tese de declínio da violência na modernidade construída a partir da proposta Weberiana (Weber, 2003 [1919]; 2004 [1922])3 com base na conceção - tácita ou explícita – deste período como experienciado invariavelmente entre vários grupos, e no padrão de desenvolvimento linear que lhe foi sendo atribuído. Deste modo, equaciona os impactos da construção única de modernidade, nas experiências de grupos desfavorecidos, entre os

3 Mais tarde, o psicólogo e linguística estado-unidense Steven Pinker (2011) conduziu uma investigação longitudinal neste âmbito, identificando, “anjos da nossa natureza” explicativos do aparente declínio da violência ao longo dos séculos, entre os quais, a empatia, a razão, e a moral, além do autocontrolo, já mencionado na análise de Elias (2006 [1939]). Não obstante as especificidades das perspetivas sustentadas por Elias (2006 [1939]) e Pinker (2011), as suas abordagens convergem na sustentação do declínio no recurso à violência na Modernidade, além da construção de grelhas de análise da violência sensíveis à sua interação com várias esferas da vida em sociedade, na procura por compreender as manifestações interpessoais do fenómeno.

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quais, as mulheres, e comunidades (consideradas) minoritárias, distintas das vivenciadas pelos grupos privilegiados (Walby, 2012).

Afigura-se, igualmente estruturante o contributo do sociólogo polaco Shmuel Eisenstadt (2000), o qual, propõe conceções múltiplas, e concomitantes, de modernidade, diretamente vinculadas a processos contínuos de (re)construção cultural, que permitem complexificar as grelhas de análise à luz das quais são tecidas as conceções dominantes de modernidade, de carácter unilateral e monolítico

À luz da linha de pensamento de Walby (2012) e Eisenstadt (2000), a tese de declínio da violência sustentada por Weber (2003 [1919]; 2004 [1922]), apresenta lacunas estruturais que invisibilizam a complexidade inerente à evolução do fenómeno ao longo dos séculos, e nas diversas conjunturas históricas, políticas, económicas e sociais, espácio-temporalmente enquadradas.

Destaca-se, ainda na Sociologia clássica, a perspetiva de Karl Marx (p.e. Marx e Engels, 2005 [1848]), teórico estruturalista cuja abordagem concebe a violência como força motriz da transformação social. Opondo-se diametralmente à leitura preconizada por Durkheim (2004 [1895]), no trabalho de Marx (Marx e Engels, 2005 [1848]) a violência é analisada como um instrumento de poder, imprescindível à luta de classes pela transformação do sistema vigente e das condições de vida da classe trabalhadora (designada pelo autor como proletariado). A sua perspetiva (re)conceptualiza a violência a partir da sua interação com o poder, assumindo, neste sentido, significativa pertinência no campo sociológico.

Não obstante, também na sua abordagem foram encontradas lacunas. Na perspetiva do sociólogo irlandês Siniša Malešević (2013), as principais críticas à abordagem de Marx (Marx e Engels, 2005 [1848]) sobre a violência centram-se na conceção do Estado como instrumento de opressão de classe, considerada redutora, designadamente, por não contemplar a complexidade inerente ao poder estatal.

Reside, todavia, na grelha de análise proposta por Marx (Marx e Engels, 2005 [1848]) um pilar estruturante na (re)conceptualização da violência, designadamente, por intermédio da conceção da modernidade como período no qual se enceta a violência estatal contra grupos sociais específicos como “[…] minorias e maiorias étnicas, mulheres, inimigos ideológicos (como 'kulaks', comunistas, fascistas, liberais), campesinato, aristocracia, trabalhadores, classes médias, movimentos e organizações

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religiosas, ateus, homossexuais, intelectuais [...]]”4 (Malešević, 2013: 281), entre outros, confrontados com constrangimentos vários na construção e prossecução de um projeto de vida.

Mais recentemente, o contributo estruturalista do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1989; 1997) complexificou a análise marxista do fenómeno (Marx e Engels, 2005 [1848]), concebendo-o como arreigado na vivência em sociedade, designadamente, no domínio dos símbolos (Bourdieu, 1989; 2002 [1998]), por intermédio do conceito de poder simbólico, posteriormente vinculado ao de violência simbólica.

Segundo a sua abordagem, fundamental no âmbito de estudo da violência, importa pensar as relações entre os vários grupos e classes sociais como assimetricamente relacionados com o poder. A partir de tal premissa, a proposta teórico-conceptual de Bourdieu (1989) parte da conceção de que os grupos e classes sociais dominantes têm acesso aos sistemas de símbolos, como a arte, a língua e a religião através do poder simbólico, impondo social e culturalmente a sua perspetiva como universal, logo, inquestionável, por intermédio do que Bourdieu conceptualiza como doxa (Bourdieu, 1989; 2002 [1998]). Instituindo um padrão de especificidades físicas e modos de pensar, agir e viver, culturalmente alicerçados, a doxa situa-se na génese da concessão de oportunidades de sucesso à construção e prossecução dos projetos de vida desses mesmos grupos e classes, ao passo que, reproduz e legitima, no campo simbólico (Bourdieu, 1989;

2002 [1998]), a dominação daqueles/as cujas especificidades se distanciem da norma instituída. Neste âmbito, importa pensar a teia de relações de dominação-subordinação, significada no conceito de doxa (Bourdieu, 2002 [1998]), como um instrumento de (re)produção da diferenciação social.

O exercício do poder simbólico pelos grupos e classes sociais dominantes interliga-se, por sua vez, com a perpetração de violência simbólica em manifestações veladas, difíceis de identificar, porém, de ação penetrante nas experiências das/os dominadas/os. Intrincando-se na vivência em sociedade a partir da cultura de alicerce às práticas (re)construídas socialmente, a violência simbólica e o poder do qual deriva, materializam-se por intermédio dos sistemas de símbolos, omnipresentes desde o nascimento e decisivos na organização da vida humana. Segundo Bourdieu (1997), reside

4 Tradução livre de “[…] ethnic minorities and majorities, women, ideological enemies (such as ‘kulaks’, communists, fascists, liberals), peasantry, the aristocracy, workers, the middle classes, religious movements and organizations, atheists, homosexuals, intellectuals […] (Malešević, 2013: 281).

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na internalização e legitimação das relações de dominação pelos grupos e classes sociais subalternizados a (re)produção da violência no campo simbólico.

No entanto, devido à sua ação quase impercetível, os impactos da violência simbólica nas experiências de tais grupos não são percebidos facilmente por aquelas/es que os constituem. Sincronicamente, a violência simbólica não é, também, visível aos grupos e classes sociais que a perpetram sem que o saibam. Não obstante, e ainda de acordo com a proposta teórico-conceptual de Bourdieu (1989; 1997; 2002 [1998];

Bourdieu e Eagleton, 1996), a resistência daquelas/es cujas experiências a violência simbólica constrange é possível.

Comparativamente às abordagens sociológicas precedentes, a grelha de leitura adotada por Bourdieu (1989; 1997; 2002 [1998]; Bourdieu e Eagleton, 1996) ressignificou a conceptualização de violência predominante, distanciando-a do comportamento desviante (Durkheim, 2004 [1895]), e de uma visão centrada unicamente no Estado (Weber, 2003 [1919]; 2004 [1922]), propondo, em alternativa, uma visão partilhada da violência entre este e as classes dominantes (Bourdieu, 2014 [2012]), ao mesmo tempo que a aproxima da criação da desviância, com o estabelecimento e imposição da norma no domínio simbólico (Bourdieu, 1989; 2002 [1998]).

É, aliás, a ênfase atribuída a formas veladas deste fenómeno que aproxima a grelha de análise cunhada por Bourdieu (1989; 1997; 2002 [1998]) Bourdieu e Eagleton, 1996) das abordagens sociológicas precedentes, especialmente por não aprofundar a relação entre a violência no campo simbólico com as suas manifestações diretas e impactos na vida das classes e grupos sociais contra os quais é exercida.

Salienta-se, todavia, a diversidade de perspetivas em torno da violência e os seus contributos para a conceptualização do fenómeno, desde a sua conceção enquanto comportamento desviante, atribuído a grupos em situação de vulnerabilidade social, a abordagens mais abrangentes, ao abrigo das quais, a violência é identificada como um fenómeno complexo, enraizado nas estruturas sociais e (re)produzido pelo estado (Marx e Engels, 2005 [1848]) por intermédio de sistemas de símbolos, construídos, e, simultaneamente, construtores, da interação social (Bourdieu, 1989; 1997; 2002 [1998]).

Mais tarde, e já distanciada das fronteiras epistemológicas da Sociologia, a violência foi conceptualizada a partir da perspetiva filosófica pós-moderna de Michel Foucault (1999 [1975]). Na sua proposta, o filósofo francófono, concebe o processo de evolução da violência como marcadamente irregular, sustentando incumbir aos Estados a construção de instrumentos de controlo e disciplinação (Foucault, 1999 [1975]) que

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permitam agir punitivamente sobre a violência interpessoal. Robustecendo a sua perspetiva através de dimensões de análise até então não equacionadas, Foucault (1999 [1975]) volta a sua análise para o corpo, como locus do exercício de violência, não mais explícita, como sucedia na Idade Média, época na qual a tortura operou como instrumento de punição, mas discreta, ainda que de ação profunda. Neste sentido, concebe a modernidade como período no qual se assistiu à transformação da forma de governação do Estado, reverberada na utilização de mecanismos de controlo flexíveis, com vista à disciplinação (domesticação/correção) dos corpos (Foucault, 1999 [1975]).

Do ponto de vista sócio-histórico e teórico-conceptual, a pertinência da sua abordagem é enfatizada enquanto catalisadora de reflexões sobre a interação entre violência, poder, Estado, bem como, em torno do modo como a violência se intrinca, subtilmente, na vivência humana há já vários séculos.

Em comparação com as conceptualizações de violência precedentes (Weber, 2003 1919; 2004 1922); Bourdieu, 1989; 1997; 2002 [1998]; 2014), salienta-se, no contributo de Foucault (1999 [1975]), a visibilização da desproporcional punição física exercida contra os grupos (e classes) sociais (Foucault, 1999 [1975]), a partir de uma visão, na qual, a violência cujas manifestações se revelam difíceis de identificar, por complexas na forma de organização e exercício do poder do Estado, se articulam com a violência perpetrada sobre os corpos, estância material da vida humana.

A lente preconizada pelo filósofo converge, todavia, com as principais abordagens sociológicas centradas na compreensão da violência (Durkheim, 2004 ([1895]; Marx e Engels, 2005 [1848]; Weber, 2003 1919; 2004 1922); Bourdieu, 1989; 1997; 2002 [1998]; 2014 [2012]), desconsiderando a violência interpessoal perpetrada entre grupos sociais, e, inclusive, no seu cerne.

Diacronicamente, e apesar das diferenças entre as abordagens precedentes, destaca-se como elemento comum a ênfase concedida a formas indiretas de violência, entre as quais, a violência exercida pelo Estado (Weber, 2003 1919]; Marx e Engels, 2005 [1848]; Bourdieu, 2014 [2012]; Foucault, 1999 [1975]), desconsiderando-se o carácter complexo e multidimensional do fenómeno, inclusive, quando analisado em interação com manifestações físicas de violência, como as perpetradas sobre o corpo, por obliterado sob a assunção do declínio da violência na Modernidade, em concomitância ao processo de desenvolvimento humano, civilizacional (Elias, 2006 [1939]; Pinker, 2011) e das formas de governação do Estado (Foucault, 1999 [1975]).

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De um prisma histórico, a construção de abordagens centradas nas manifestações interpessoais do fenómeno, exercidas entre grupos socioeconomicamente desfavorecidos (Durkheim, 2004 [1895]), ou a sua conceção a partir de formas estruturais (Marx e Engels, 2005 [1848]), e simbólicas da violência (Bourdieu, 1989; 1997; 2002 [1998]), embora centrais para a compreensão da violência a partir do campo sociológico, invisibilizou a complexidade do fenómeno, e as interações que estabelece com várias esferas da vida social, cultural e política.

Deste modo, e não contemplando, nas análises que tecem, as relações de poder existentes entre os vários grupos sociais, e no seu cerne, desconsiderando manifestações físicas e psicológicas do fenómeno, o modo como se intrinca nas vivências dos grupos e classes sociais contra as quais são perpetradas, a análise da violência circunscreveu-se a um viés andro e eurocêntrico que desconecta os seus impactos nas subjetividades de determinados grupos e classes sociais. Tal análise é alicerçada pela investigação desenvolvida pelo sociólogo Manuel Eisner (2003), na qual denuncia a violência baseada no género e idade como não tendo diminuído na modernidade, ao contrário do verificado com outros tipos de violência interpessoal grave. Na sua sequência, não somente a tese de declínio da violência na Modernidade, e os pilares nos quais se alicerça (Weber, 2003 [1919]; Elias, 2006 [1939]; Pinker, 2011), seriam insuficientes para descrever a evolução do fenómeno, como invisibilizaria as categorias sociais de cuja análise o fenómeno não se deve desprender.

Ante tal quadro, importa conhecer e refletir em torno de abordagens sobre a violência que permitam compreender o fenómeno para lá das suas manifestações indiretas (Durkheim, 2004 [1895]; Bourdieu, 1989; 1997; 2002 [1998]; Bourdieu e Eagleton, 1996), e do seu vínculo à ação do Estado (Foucault, 1999 [1975]), considerando-se o seu carácter complexo e multidimensional.

Neste âmbito, o sociólogo Johan Galtung (1969), opõe-se a uma conceptualização compartimentada da violência nas várias formas sobre as quais se pode manifestar, defendendo, em alternativa, uma flexibilização do conceito, tendo em vista a abranger as várias formas de violência, sem menosprezar, todavia, um certo grau de especificidade que permita informar e sustentar solidamente a prática (Galtung, 1969).

Seguindo esta linha de pensamento, Galtung (1969) concebe como violência a

“diferença entre o potencial e o atual”5 (Galtung, 1969: 168). Seguindo a sua linha de

5 Tradução livre de “as the cause of the difference between the potential and the actual” (Galtung, 1969:

168).

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pensamento, a violência pode ser evitada se os recursos de que um determinado grupo ou classe social dispõe não forem inferiores ao seu potencial (Galtung, 1969: 169). Destaca- se, ainda, a sua abordagem em torno das manifestações de violência que poderão ser estruturais ou interpessoais, e, respetivamente, indiretas ou diretas (Galtung, 1969: 169).

Concebendo a violência estrutural como enraizada na estruturação social, associa-lhe uma desigual distribuição de poder entre os vários grupos e classes sociais, reverberada na imposição de vários constrangimentos à construção e prossecução de um projeto de vida por parte dos grupos sociais subalternizados, baseada nas suas especificidades físicas, psicológicas, bem como, nas crenças, valores e normas que veiculam. Galtung (1990), interliga, inclusive, tal condicionamento, traduzido, em última análise, em desiguais oportunidades ao longo da vivência (Galtung, 1969) ao conceito de violência cultural, discutindo o seu peso na legitimação das relações de opressão- discriminação-exploração socialmente enraizadas.

Enquanto complexo de símbolos, valores, princípios que orienta as vivências das pessoas, concedendo-lhes significados, e um contexto de pertença (e, simultaneamente, de exclusão, como aponta Bourdieu (1989), assimilado e (re)produzido através do processo de socialização, a cultura constitui-se, na perspetiva de Galtung (1990) como legitimadora da desigualdade, opressão e discriminação estruturais, e, por conseguinte, legitimadora, também, do exercício da violência direta contra as categorias sociais com menos poder, através da interiorização de tal desigualdade como aceitável (Galtung, 1990).

Não obstante, o autor reconhece ser difícil a uma cultura ser violenta na sua totalidade, devendo, por efeito, privilegiar-se a referência a especificidades dessa mesma cultura como possivelmente violentas. Aliás, o recurso a tal consideração poderia, em si mesmo, constituir-se como o exercício de violência sobre a cultura em questão (Galtung, 1990).

Deste modo, em alternativa a uma afirmação de uma dada cultura como violenta, Galtung (1990) sugere uma análise a partir de aspetos considerados violentos em tal cultura. Assim, evita-se o fechamento em relação a essa cultura, a sua invisibilização, bem como, das pessoas que a (re)produzem, e, por outro lado, a perpetração de violência cultural contra outra cultura.

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1.2 A violência como ferramenta de resistência

Ante a perceção unilateral das perspetivas sociológicas clássicas, e vieses que lhe são inerentes, urge a necessidade de compreender como a violência, na sua complexidade, é analisada nos trabalhos de outros/as pensadores/as, de abordagens mais inclusivas.

Frantz Fanon (1968 1961), a partir do ponto de vista dos povos colonizados, concebe a violência como instrumento de poder, mobilizado pelos colonizadores, com vista à imposição da sua hegemonia, encontrando-se permanentemente no processo de governação da sociedade. Por intrincada no processo de criação das colónias como tal, e exploração daqueles/as que as habitavam, Fanon (1968 1961) concebe a violência como imprescindível no processo de libertação da relação de dominação-opressão a que foram submetidos pelos colonizadores (Fanon, 1968 1961), sob a máxima de que somente a

“violência absoluta” (Fanon, 1968 1961: 27) poderá potenciar a transformação da condição dos povos subalternizados.

Embora alvo de crítica, configurada, por exemplo, na abordagem do sociólogo sul africano Karl Von Holdt (2013), dada a sua defesa do uso da violência no processo de libertação das colónias, a grelha de leitura apresentada por Fanon (1968 1961) constitui um contributo fundamental no campo da violência. Preconizando uma abordagem para lá da interação visível entre poder e violência, Fanon (1968 1961) equaciona a internalização da opressão e dominação na consciência dos/as colonizados/as, expropriados/as da sua liberdade, enquanto instrumento de poder que os/as conduz a pensar e agir à luz dos pressupostos que os povos colonizadores visavam enraizar. Deste modo, não somente “o colono faz a história e sabe que a faz” (Fanon, 1968 1961: 38) como “o colono é que fêz e continua a fazer o colonizado” (Fanon, 1968 1961: 26).

A este nível, é pertinente cruzar o pensamento de Fanon (1968 1961) com o conceito de violência epistémica cunhado pela teórica indiana Gayatri Spivak (1988), como forma de exercício do poder simbólico, característica pela espoliação dos/as colonizados/as, não só do seu território, como da narrativa construída em relação a si mesmos/as.

Sob esta abordagem, os discursos sobre os/as colonizados/as, poderão ser concebidos como eivados pela perspetiva dos povos colonizadores, na medida em que, situados numa posição social de poder e privilégio, procuram superiorizar os valores e princípios da cultura dos países ocidentais, desconsiderando, ou mesmo invisibilizando,

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em tal processo de busca pela imposição da hegemonia ‘branca’ como normativa, as narrativas produzidas pelos povos colonizados, baseadas na sua vivência e significados por si atribuídos ao mundo (Spivak, 1988).

Complementando a proposta de Spivak (1988), a investigadora mexicana Marisa Belausteguigoitia (2001), caracteriza a violência epistémica como a distorção, esquecimento, ou mesmo, supressão dos sentidos atribuídos pelos/as colonizados/as ao meio envolvente e fenómenos que nele tomam lugar, invisibilizando a sua cultura, história e experiências, resultando na inferiorização do seu próprio modo de vida. Na sua perspetiva, o grau de violência epistémica exercido é suscetível de ser avaliado a partir do nível de reconhecimento do povo ou pessoa individual representado numa dada narrativa com a sua versão pós-‘edição’ (Belausteguigoitia, 2001).

Alicerçada na grelha de leitura conceptualizada por Spivak (1988) Belausteguigoitia (2001) caracteriza os processos pelos quais se analisa, deturpa ou obscurece a cultura e experiência dos/as colonizados/as, como atravessados por uma antinomia, na medida em que, se por um lado, são eivados pelas perspetivas eurocêntricas, por outro, “estes processos reconhecem como necessária a violência do reconhecimento da dificuldade/impossibilidade de ouvir o[/a] índio[/a] desde a sua língua e desde o seu corpo”6 (Belausteguigoitia, 2001: 237). A este nível, a autora reconhece a importância de se equacionar a “traição/tradução”7 (Belausteguigoitia, 2001: 238) da experiência do/a subalternizado/a, como um distanciamento face à realidade vivenciada pelo/a mesmo/a.

2. Os Movimentos Feministas e os seus contributos

Cunhada no século XIX, mais concretamente entre as décadas de 1870 e 1880, a expressão ‘feminismo’, caracteriza-se, segundo Anne Cova (1998) pelo seu carácter impreciso, sendo, ao longo da história, mobilizados vários adjetivos para auxiliar no seu processo de conceptualização. Por conseguinte, à utilização de tal termo subjaz “um mosaico de situações diferentes, muito afastadas de um conjunto homogéneo e a aparente comunhão de ideologias sob a bandeira do feminismo” (Cova, 1998: 9). Importa, assim, pensar em feminismos.

6 Tradução livre de “estos procesos reconocen como necessária la violência del reconocimiento de la dificultad/ impossibilidad de oír lo[a] índio[a] desde su lengua y desde su cuerpo” (Belausteguigoitia, 2001:

237).

7 Tradução livre de “traición/tradución”(Belausteguigoitia, 2001: 238).

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Não obstante a diversidade de perspetivas, preservou-se ao longo do percurso de evolução da expressão ‘feminismo’, e diferentes significações que lhe foram sendo atribuídas, a dicotomia entre igualdade e diferença (Cova, 1998), sendo esta trabalhada diferentemente pelas várias abordagens constitutivas das correntes de pensamento feminista.

Manuela Tavares (2008) identifica o feminismo, enquanto movimento, como tenho brotado no século XVIII, atribuído historicamente ao Iluminismo e à Modernidade.

Segundo Conceição Nogueira (1996), a primeira vaga do(s) movimento(s) feminista(s) iniciou-se em meados do século XIX, versando, fundamentalmente, no domínio político, na reivindicação do direito ao voto para as mulheres, em especial através da ação do movimento sufragista. Esta vaga centrou-se, ainda, nas reivindicações em torno do acesso da mulher ao estatuto de pessoa jurídica, logo, autónoma e detentora de direitos, além das lutas pelo direito à educação, ao trabalho remunerado, e pela igualdade de direitos no seio familiar (Tavares, 2008).

Ainda que os fatores catalisadores das várias vagas do feminismo, enquanto movimento social, não sejam universais, variando consoante a classe social de pertença, os países e a conjuntura sociopolítica e económica (Nogueira, 1996), a primeira vaga pode ter sido amplamente influenciada, entre outros fatores, pelas revoluções industriais, e transformações sociais e económicas inerentes a tais marcos históricos.

Importa associar a esta vaga o Feminismo Marxista/Socialista, enquanto corrente de pensamento emergente do socialismo entre os séculos XIX e XX (Nogueira, 1996).

De acordo com a socióloga Mary Holmes (2007), esta corrente ter-se-á caracterizado pela ênfase atribuída às estruturas nas quais se fundamenta a organização social como determinantes para a construção relações sociais e de género, sendo aliás associada ao estruturalismo. Neste sentido, o sistema económico conhecido como capitalismo, e subsequente apropriação dos meios de produção pela classe social capitalista, potenciam a exploração económica dos/as trabalhadores/as, enquanto são, simultaneamente, sustentados pelo trabalho não remunerado das mulheres, adstrito à esfera cuidado e à reprodução de novas gerações de trabalhadores/as (Nogueira, 1996).

Por conseguinte, a corrente marxista/socialista parte do reconhecimento da articulação entre a luta de classe e a opressão de género como fundamento das suas reivindicações(Nogueira, 1996).

O pensamento da socióloga brasileira Heleieth Saffioti (2001), por exemplo, pode ser enquadrado na corrente de pensamento marxista/socialista dos feminismos.

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Destacando-se pela conceptualização da violência de género como um conceito que abrange várias formas de violência contra “mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos” (Saffioti, 2001: 115), Saffioti atribui a sua causa ao exercício do poder patriarcal por parte de alguns homens, portadores de

[…] poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. (Saffioti, 2001: 115)

Não obstante, Saffioti (2001) identifica a violência de género como não suscetível a ser reduzida a forma de violência dos homens contra as mulheres, na medida em que pode, ainda que sob configurações distintas, ser exercida por mulheres (Saffioti, 2001: 116), como, por exemplo, através da perpetração de violência de género contra crianças e adolescentes, enquanto delegação da função patriarcal. A este nível, a socióloga enfatiza o papel exercido pelas mães e professoras (Saffioti, 2001).

Mais tarde, e apesar de findados dois conflitos militares com impactos significativos à escala mundial, as atitudes e práticas sociais em relação às mulheres pouco se alteraram, tendo, aliás, sido reenviadas para a esfera da domesticidade, do cuidado do lar e da educação dos/as filhos/as, ao passo que ao homem foi atribuída a esfera pública (Nogueira, 1996).

Urgiu, por conseguinte, repensar as reivindicações feministas, de modo a conceder novo alento aos movimentos políticos e sociais que configuram, o qual requer o reconhecimento da heterogeneidade das experiências vividas por mulheres de diferentes contextos.

Neste âmbito, salienta-se a obra “O segundo sexo” da autoria de Simone de Beauvoir (2009 [1949]), pilar estruturante da história do feminismo desde as décadas de 1960 e 1970 do século XX, tendo potenciado a desconstrução de perspetivas históricas, psicanalíticas, do materialismo histórico e do biologismo, e discutido o seu papel na construção social das mulheres como classe social que presta serviço aos homens.

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Publicada originalmente em 1949, a obra fundamenta a grelha de análise do feminismo radical, constituindo o marco da transição de um feminismo de primeira onda, centrado maioritariamente na dimensão política da luta das mulheres pela emancipação, para um feminismo de segunda vaga (Tavares, 2008), decisivo na luta contra os pressupostos e práticas sexistas e patriarcais enraizados socialmente, ao alicerçar as suas reivindicações na urgência de alcançar a igualdade integral em todos os domínios (Cova, 1998).

Associado à expressão “o pessoal é político” (Cova, 1998), o feminismo radical debruçou-se “na própria experiência das mulheres sem grandes compromissos com as agendas políticas mais globais” (Tavares, 2008: 49). Ao conceber “a opressão [como] a principal forma de dominação masculina” (Tavares, 2008: 49), concebe um ativismo feminista assente na sororidade (Magalhães, 2007), como união de mulheres essencial ao fortalecimento do(s) movimento(s) feminista(s) enquanto coletivo (Tavares, 2008) na luta contra um sistema que favorece o grupo social homens, subalternizando e impregnando de estigma as mulheres.

Segundo Manuela Tavares (2008), nesta vaga reconceptualizou-se o poder, concebendo-se o alcance da dominação masculina como mais abrangente do que o conceito tradicional de poder poderia notar, a partir de uma proposta que permitiu analisar a influência das relações sociais de poder na esfera privada e da construção das sexualidades (Tavares, 2008). Deste modo, o feminismo radical assinalou a rutura com explicações da diferença entre os géneros com base nas características biológicas de homens e mulheres, consideradas simplistas, introduzindo a compreensão da desigualdade de género como uma construção social (Tavares, 2008), atribuindo, na esteira do trabalho de Beauvoir (2009 [1949]), um papel preponderante ao processo de socialização e à cultura na construção da desigualdade (Tavares, 2008).

As reivindicações associadas a esta vaga do movimento feminista centraram-se na “autonomia das mulheres, o controlo sobre o seu corpo, a separação da sexualidade da procriação, a luta pela contraceção e legalização do aborto, a luta contra violência sobre as mulheres” (Tavares, 2008: 51).

Para Louro (2003 1997), a segunda vaga de feminismos foi fundamental ao reconhecimento das experiências de mulheres como objeto de análise em Ciência, tendo potenciado a emergência dos estudos da mulher como campo científico. Esta conquista na esfera científica, alcançada, em larga medida, pela agência, ou seja, ação articulada com reflexão (Magalhães, 2007) de militantes feministas académicas, concedeu

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legitimidade à construção de conhecimento científico baseado nas subjetividades de mulheres, e dirigido às mulheres (Louro, 2003 1997).

As décadas de 60 e 80 do século XX foram, na Europa, o grande palco da corrente feminista radical, foi também neste período que se assistiu à publicação, em 1963, da obra “A mística feminina”, da autoria de Betty Friedan. Sustentada nas reivindicações historicamente atribuídas à 1ª vaga de feminismo(s), a autora criticou, especialmente, o estereótipo social atribuído à mulher, como delicada, bela e ‘dócil’, subordinada ao seu marido ou a outros homens, desvelando a manipulação e persuasão exercida sobre as mulheres no pós-segunda guerra mundial, no sentido de as limitar à esfera familiar e tarefas associadas ao cuidado do marido e dos/as filhos/as, tidos como essenciais à sua realização enquanto mulheres (Friedan, 1971 [1963]). Discutiu as oportunidades das mulheres na esfera pública, a partir da criação de auxílios que permitissem equilibrar o exercício do trabalho remunerado e as “suas responsabilidades de mães de família” (Friedan, 1971[1963]: 317).

Na perspetiva de Manuela Tavares (1998), o Feminismo Liberal caracteriza-se pela conceção de que é possível a cada mulher ascender autonomamente na sua posição social e económica “desde que possua competência, assertividade e vontade empreendedora” (Tavares, 2008: 22). Sob esta corrente de pensamento feminista, o acesso das mulheres ao poder político é concebido como condição essencial à transformação, pelo que, as estratégias mobilizadas tendem a privilegiar a criação de

“‘lobbies’ ou grupos de pressão junto do poder político” (Tavares, 1998: 22).

Segundo algumas feministas, a proposta do Feminismo Liberal incidiu numa lógica reformista, de pequenos avanços (Tavares, 2008), alguns deles beneficiando apenas uma minoria de mulheres, sobretudo, brancas e de classe média. Ao excluir da sua agenda outras dimensões da desigualdade, para lá das contidas na categoria de análise

‘género’, excluiu as especificidades das experiências de mulheres de classe trabalhadora e das mulheres negras (Tavares, 2008).

Não obstante, e segundo Conceição Nogueira (1996), assistiu-se, em Portugal, a uma diminuição da participação na(s) causa(s) feminista(s), a partir da década de 80 do século XX, que, em articulação com outros fatores, potenciou a caracterização da terceira vaga de feminismos como o pós-feminismo.

Mais tarde, e como apontam Carmo Marques, Eunice Macedo e Paula Canotilho (2003: 103), as mudanças introduzidas pela pós-modernidade, concomitante à corrente pós-estruturalista, estenderam-se ao feminismo, veiculando novos desafios, sobretudo

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dada a “negação do universal e à fragmentação do sujeito (pós-moderno) que também fragmenta a noção unificada do sujeito social mulher”, recusando a metanarrativa referente à opressão da mulher por um sistema patriarcal.

Também Maria José Magalhães (2003: 195) identifica tais características da corrente pós-estruturalista como possíveis ameaças a “uma compreensão politizada do mundo e de uma teoria para a acção e transformação social” enquanto “cerne da acção feminista, no sentido de ter em conta os diferentes níveis de desvantagem, desigualdade e opressão das mulheres”.

É ante este quadro que algumas feministas, de perspetivas mais radicais, concebem o pós-modernismo como uma ameaça ao movimento feminista, na medida em que desconstrói os pressupostos nos quais se alicerça, debilitando a importância da ação coletiva (Tavares, 2008).

De uma perspetiva distinta, Mary Holmes (2007), identifica a relativização como uma das principais desvantagens do pós-estruturalismo, não desconsiderando, todavia, o seu potencial, enquanto corrente profundamente crítica à problematização das relações de poder, ultrapassando um viés determinista ao abrigo da qual se percebia o “homem como tendo poder e a mulher não”8 (Holmes, 2007: 85).

Ademais, os contributos da corrente pós-estruturalista podem revelar-se pertinentes para a teoria e lutas feministas, na medida em que perspetivam a existência de alguma liberdade de escolha, essencial à discussão em torno do conceito de agência (Magalhães, 2003; 2007), e o seu potencial de empoderamento, enquanto estratégia de resistência à dominação masculina (Holmes, 2007).

É ainda no pensamento pós-moderno que se concebe a importância da subjetividade das mulheres para o campo científico, destacando-se a este nível o trabalho de Sandra Harding (1996 1986), investigadora que cunha a teoria do standpoint como posição a partir da qual o mundo é observado, e, por conseguinte, o conhecimento científico é produzido, concebendo este último como condicionado pelos valores e interesses da categoria social dominante. Sob tal leitura, a ciência, desde a consideração de um problema, à estruturação da grelha teórico-conceptual e metodológica que permita o seu estudo, encontra-se genderizada e eurocêntrica, isto é, influenciada pelo viés androcêntrico e eurocêntrico, resultante da lente de leitura construída a partir de tal

8 Tradução original de “men as having power and women not” (Holmes, 2007: 85).

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posição social, imposta como a única válida, na sequência da conceção da realidade como una e inequívoca.

Considera, assim, a pertinência do reconhecimento das subjetividades dos grupos socialmente estigmatizados, bem como, da sua participação, procurando trazer para o campo científico os seus pontos de vista, as suas experiências, enquanto atravessadas por relações sociais de poder determinantes à construção da sua identidade (Harding, 1996 1986). Nesta linha, a produção de conhecimento científico fundamentada nos contributos de mulheres, permitiria transcender os vieses das produções científicas construídas a partir de uma posição de poder, desvelando novos modos de olhar o mundo (e de sobre nele agir), resultantes de standpoints que reverberam uma diferente relação com o poder: a subalternização.

Não obstante, e sensível ao perigo inerente à construção de uma narrativa homogénea sobre a experiência das mulheres, Harding (1996 1986) interpela a construção de uma perspetiva feminista única, dada a heterogeneidade das experiências das mulheres contidas no seio deste grupo social, assumindo o género, a classe social e a cultura como sistemas de dominação determinantes à construção da subjetividade de cada mulher. Assim, importa, para a autora, a sororidade das mulheres como instrumento de resistência, de resposta à opressão estruturalmente alicerçada e culturalmente legitimada (Galtung 1969; 1990), e ferramenta de construção coletiva das identidades (Magalhães, 2007).

É possível reter do pensamento de Harding (1996 1986) a proximidade entre a teoria feminista contemporânea e o ceticismo pós-moderno, da qual resulta a conceção da

‘realidade’ como aberta a uma pluralidade de interpretações, condicionadas pela posição social da pessoa ou grupo que as teça, e ademais, da sua experiência, como constitutiva da sua subjetividade.

Assim, e como afirma Manuela Tavares (2008), a centralidade atribuída pelo pós-modernismo à desconstrução do sujeito ‘mulher’, aliada à importância da sororidade (Magalhães, 2007), terá permitido reunir as bases necessárias à emergência do feminismo negro (Tavares, 2008), sensível à especificidade das experiências de mulheres negras.

Entre as vozes do feminismo negro distinguem-se, no âmbito deste trabalho, os contributos da jurista estado-unidense Kimberlé Crenshaw (1989) e da socióloga também norte-americana Patricia Hill Collins (2000 [1990]), entre outras, como bell hooks (s.d.).

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No feminismo negro, também a filósofa Djamila Ribeiro (2017) assume um papel importante, cunhando o conceito de lugar de fala enquanto ferramenta essencial de conscientização, sobretudo para as categorias sociais dominantes, na medida em que permite visibilizar a posição social e política a partir da qual produzem os seus discursos, e, por efeito, os benefícios que retiram da relação de opressão-discriminação-exploração socialmente arreigada contra os grupos subalternizados, em especial, as mulheres negras.

Procurando aprofundar as complexidades inerentes a tal conceptualização, a filósofa debruça-se sobre o carácter universal atribuído aos discursos dos grupos (ou classes) sociais dominantes, discutindo a dialética entre o homem, e a mulher, compreendida como Outro/a (Ribeiro, 2017).

Dito de outro modo, a instituição de um padrão androcêntrico relega a mulher a uma condição subalterna, como também já afirmava Simone de Beauvoir (2009 [1949]).

Por conseguinte, e ante o cruzamento das categorias de dominação-opressão- discriminação, entre género, sexo e raça (Crenshaw, 1989), essenciais à análise das interações entre o sexismo e racismo estrutural, a mulher negra, além de oprimida, com base no seu género, tenderá a ser discriminada pela sua etnia e tom de pele.

Esta constatação é, segundo Ribeiro (2017), explicativa do silenciamento das abordagens de mulheres negras no campo científico, já que, “quem possuiu o privilégio social, possuiu o privilégio epistémico, uma vez que o modelo universal de ciência é branco.” (Ribeiro: s/p). Neste quadro, e recordando o contributo de Spivak (1988), o conhecimento científico construído por mulheres negras, ao ser subjugado pelo

‘conhecimento científico dominante’, tido como único válido, reverbera(va) o exercício de violência epistémica, aliada à opressão e racismo estruturais.

Deste modo, sendo somente validado o conhecimento científico produzido pelo grupo social homens, ou que, embora sistematizado por mulheres, seja produzido a partir de uma perspetiva eurocêntrica e de classe média, as abordagens de académicas negras que se propõem a conceptualizar as especificidades inerentes às experiências de mulheres negras, têm sido até aqui invisibilizadas.

Adotando uma abordagem sensível às necessidades e exigências impostas pela especificidade das experiências de mulheres negras para a construção de uma análise da violência contra elas exercida, Kimberlé Crenshaw (1989) defende uma perspetiva interseccional ao abrigo da qual as categorias de análise género / sexo, raça e classe social devem ser cruzadas e interligadas através de relações sociais estruturantes da identidade da mulher negra.

Referências

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