• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II- Propondo formas de conhecer o fenómeno

2. O estatuto da imagem em Ciência

2.1 A utilização de metodologias visuais no campo educativo

De acordo com o sociólogo estado-unidense Howard Becker (1995), as metodologias visuais, ao focalizarem-se sobre a imagem no trabalho investigativo, adaptam-se não somente à especificidade do contexto no qual a imagem surge como forma de representação, como àquele no qual são produzidas e à epistemologia pela qual a investigação se orienta. Destaca-se a sua utilização sob distintas formas, ramificadas na produção, na utilização e interpretação de imagens já existentes e na produção de imagens que permitam representar as principais conclusões de uma investigação (Sarmento, 2014:

203).

Tendo a presente investigação sido orientada pelo objetivo de compreender a relação estabelecida entre a(s) imagem(ns), enquanto forma de linguagem, e a (re)produção de violência(s) na Infância, reflete, neste âmbito, sobre o papel das instâncias (socio)educativas. Damos especial destaque ao Jardim de Infância, na prevenção dessa(s) mesma(s) violência(s) e na construção da igualdade. Procuramos fundamentar ontológica, epistemológica e paradigmaticamente alinhadas com uma Ciência que reconheça o seu impacto como produto e produtora de sociedades e significados nos quais se alicerçam (Harding, 1996 [1986]; 2015), como de metodologias que permitam investigar o(s) fenómeno(s) (socio)educativo(s) nesse âmbito.

Nesta linha, fomos orientadas pela proposta de Sarmento (2014), concebendo as imagens como produtos e produtoras de significados, e delas partindo para construir a investigação sobre a(s) violência(s) perpetradas contra meninas e mulheres com base no seu género, ‘raça’/etnia, classe social e idade.

A investigação orientou-se por um procedimento sistematizado e rigoroso iniciado por uma fase planeamento (Sarmento, 2014), na qual, a partir de revisão de literatura científica de referência nos campos científicos dos Estudos de Género, Sociologia, Psicologia, Linguística e Educação, se propôs uma matriz teórico-conceptual que permitisse fundamentar a constituição das imagens como objeto de estudo, e justificasse a sua pertinência no âmbito da investigação sobre a(s) violência(s). A referida etapa contribuiu, ainda, para refletir em torno da aproximação ontológica, epistemológica e legitimasse a ativação de metodologias de análise visual.

Deste modo, e ontologicamente, a presente investigação sustenta-se numa conceção do mundo como suscetível de ser subjetivado de distintas formas (Bourdieu, 1965; Amado et al., 2013), contudo, reduzido pela ideologia dominante a uma visão descrita como evidente, logo, verdadeira (Foucault, 1998 [1979]). Reconhecemos, também, a persistência de assimétricas relações de poder estruturalmente enraizadas e culturalmente legitimadas (Galtung, 1969; 1990) que moldam os processos de construção e atribuição de significados ao mundo e fenómenos que nele se manifestam.

Numa lógica de indissociável articulação entre ontologia e epistemologia, advogamos a conceção das imagens que enquanto representações socialmente enquadradas e alicerçadas nos códigos simbólicos enraizados culturalmente, apresentam propostas de subjetivação do mundo, considerando o seu carácter polissémico como fundamental ao enriquecimento de perspetivas sobre a(s) violência(s) no campo científico das Ciências da Educação.

Tal posicionamento, conduz-nos à ativação de metodologias de investigação baseadas em imagens, pretendendo-se construir uma análise guiada pelo visual, ainda que, considerando a relação que estabelece com a linguagem verbal, e contexto no qual ambas são (re)produzidas, como dimensões fundamentais à interpretação-compreensão da sua polissemia.

Pretendendo configurar-se como ferramenta catalisadora de reflexão, a presente investigação foi construída a partir de uma lógica de investigação não-participativa (Pollak, 2017: 104; Amado et al., 2013), de acordo com as condições de trabalho de que dispunha. Sustenta-se na interpretação-compreensão do tema em estudo através de uma análise fundamentada nos contributos teórico-conceptuais e filosóficos das correntes feministas, designadamente, da abordagem interseccional (Crenshaw, 1989; Collins 2000

1999]).

Na proposta de posicionamento metodológico seguido, a(s) imagem(ns) adotam carácter estruturante na presente investigação, ainda que, várias vezes mobilizadas em articulação com o contexto frásico e semântico no qual surgem, tendo em vista contextualizar a sua utilização quer no âmbito das produções cinematográficas selecionadas, quer a partir da consideração do carácter representativo da linguagem verbal e violência(s) que (re)produz.

Deste modo, e partindo do reconhecimento da Walt Disney Company como produtora cinematográfica cuja presença se tem revelado significativa na Infância (Giroux, 1986; Giroux, 1995; Giroux, 2000 1999]; Tavares, 2008), selecionamos os

filmes “Snow White and The Seven Dwarfs”/“A Branca de Neve e os Sete Anões” (1937),

“The Princess and The Frog”/“A Princesa e o Sapo” (2009) e “Frozen” (2013), constitutivos do universo de princesas da Walt Disney. Pretendemos, analisar as representações que constroem em torno das categorias sociais de género, ‘raça’/etnia, classe e idade, segundo uma proposta de contextualização social, política, cultural e histórica das várias produções, alinhada com a aproximação da investigação de um posicionamento de interseção entre as propostas dos paradigmas fenomenológico-interpretativo e sócio-crítico (Amado et al., 2013).

Nesta linha, recorremos a excertos visuais - still images/frames - dos filmes constitutivos do corpus de análise, ou seja, recortes estáticos, que permitam não somente interpretar as imagens e os seus significados, como analisar o contexto no qual surgem e permitem (re)produzir significados.

O tempo e espaço viabilizados pela presente investigação conduziram à delimitação do campo empírico a 3 produções cinematográficas. Além de regida por uma lógica de exequibilidade, a seleção baseou-se em critérios de pertinência, guiada não somente pela análise de filmes de diferentes períodos históricos, sob a premissa de comparar as representações visuais de género em interseção com outras categorias de análise, como a ‘raça’/etnia, classe social e idade nas várias produções (Collins, 2000

1999]), como utilizar filmes que estabeleçam (ainda que aparentemente) distintas relações com tais categorias.

Formuladas a partir do cruzamento dos contributos dos feminismos, em especial, da Teoria da Interseccionalidade (Collins, 2000 [1990]), e da Semiologia da Imagem (Joly, 1994) esboçaram-se categorias de análise tendo em vista integrar imagens das produções cinematográficas analisadas e respetivas interpretações. A este nível, e intimamente relacionada com os múltiplas significações social e culturalmente construídas e designadas para representar visões do mundo, a violência simbólica, (re)produzida a partir do campo artístico pode chegar até ao cinema.

De acordo com as investigadoras feministas Rosemarie Buikema e Marta Zarzycka (2011: 119), vivemos uma era na qual a imagem invade predatoriamente o quotidiano, sendo irrefletidamente consumida em vários contextos. Destaca-se, neste âmbito, o papel exercido pelo cinema, enquanto um dos contextos culturais privilegiados para o visual.

Partir da conceção das produções cinematográficas como compilações animadas de subjetivação de um possível recorte do real, enformado pela subjetividade, não apenas

de quem capta e constrói, como da audiência que as visualiza (Barthes, 1984 [1980]), permite enfatizar os efeitos do cromático jogo de cores e traços, pelos quais se caracterizam as imagens, como ardilosas ferramentas catalisadoras de processos de interpretação e atribuição de significados que transportam o visual(izado) dos ecrãs para a mente. Aliás, e omnipresentes nas experiências humanas, as imagens destacam-se pela facilidade com que são mentalmente apropriadas (Buikema e Zarzycka, 2011: 119), podendo a sua análise crítica revelar-se profícua no campo científico e movimentos políticos e sociais que permite informar teórico-conceptualmente.

A construção das categorias de análise regeu-se, portanto, pela tentativa de analisar representações de género, ‘raça’/etnia, classe social e idade contidas nos filmes referidos, desdobrando-se em subcategorias que permitissem classificar de forma mais detalhada essas mesmas representações. Este processo revelou-se estruturante para a construção de uma proposta interpretativa-compreensiva sobre o papel exercido pelas imagens na (re)produção da(s) violência(s) contra meninas e mulheres, fenómeno em estudo na presente investigação.

Importa realçar que as categorias e subcategorias foram aperfeiçoadas continuamente tendo em vista a sua adequação às especificidades dos filmes cujo visual constituiu a base da análise, até à versão apresentada em seguida30:

30 Dada a dimensão da tabela de categorização, optou-se pela sua segmentação em duas tabelas mais reduzidas.

Tabela 1 (continuação): Tabela de categorização da análise visual dos filmes visualizados.

Categoria de análise visual

Representatividade das

etnias (2) Classe social (3) I dade (4) Poder (5)

Filme Subcategoria de análise

visual

Presença no filme (6)

Papel atribuído às personagens consoante a sua etnia/ da mesma

etnia (7)

Presença no filme (8)

Papel atribuído às personagens consoante a sua classe social (9)

Personagens mais velhas (10)

Personagens mais novas

(11)

Figuração do poder

(12)

Naturalização do poder masculino (13)

A Branca de Neve e os Sete Anões (Filme A)-

1937 A Princesa e o Sapo

(Filme B)- 2009 Frozen (Filme C)- 2013

Apresentando a proposta de categorização utilizada, esta ramificou-se em 5 categorias de análise, intituladas como Representações de Género (1), Representatividade das Etnias (2), Classe Social (3), Idade (4) e Poder (5).

A primeira categoria construída (1) Representações de Género, ramifica-se, inicialmente, nas subcategorias Concebido na produção cinematográfica como atrativas (1) e Concebido na produção cinematográfica como repulsivas (2). Com esta subcategoria pretende-se dar conta não somente dos códigos linguísticos veiculados pelas cores e estilos das vestes das personagens, como caracterizá-las, de acordo com as simbologias da cor conceptualizadas na abordagem de Donis Dondi (2003 [1991]) e de Michel Pastoureau (1997 [1992]) como analisar a receção das várias personagens humanas das narrativas às meninas e mulheres, a partir da forma como desempenham o género (Butler, 1997; 2009) em inextricável relação com o que é social e culturalmente atribuído e convencionado como tipicamente feminino ou masculino (Connell, 1987;

2002; Connell e Messerschmidt, 2005).

Na subcategoria 3, Papéis de Género pretende-se dar conta das situações, visualmente materializadas, em que é possível interpretar a influência exercida por tais processos de construção social e cultural do género e comportamentos que lhe são atribuídos na construção da subjetividade das personagens (Connell, 1987; Butler, 1997;

Collins, 2000 1990]). A referida subcategoria pretende, ainda, contemplar excertos visuais (e, eventualmente, verbais) que viabilizem a interpretação das relações estabelecidas entre e no cerne dos grupos sociais construídos a partir do género.

Tabela 1: Tabela de categorização da análise visual dos filmes visualizados.

Categoria de análise

visual Representações de género (1)

Filme

Subcategoria de análise

visual

Concebidas na produção cinematográfica como

atrativas (1)

Concebidas na produção cinematográfica como

repulsivas (2)

Papéis de género (3) Figuras/momentos de subversão (4)

Amor romântico como ferramenta de subordinação das mulheres (5)

A Branca de Neve e os Sete Anões (Filme A)-

1937 A Princesa e o Sapo

(Filme B)- 2009 Frozen (Filme C)- 2013

Com a subcategoria 4, Figuras/Momentos de Subversão, pretende-se criar lugar para a consideração de elementos das narrativas das produções cinematográficas analisadas que possam desafiar a norma instituída, partindo do reconhecimento do género como construído e não apenas reproduzido (Pereira, 2012).

A subcategoria 5 foi construída tendo em vista analisar o papel exercido pela conceção de amor romântico enquanto ferramenta que, de acordo com a feminista mexicana Marcela Lagarde y de los Ríos (2008), permite legitimar a submissão das mulheres aos homens.

A categoria 2, intitulada Representatividade das Etnias visa considerar a participação nos filmes, de personagens de outras ‘raças’/etnias para além do estereótipo branco ocidental (Spivak, 1988; Lugones, 2014), e do tipo de participação que detêm.

Deste modo, subdivide-se nas categorias 6, Presença no filme, e subcategoria 7, Papel atribuído consoante a sua etnia/da mesma etnia.

Com a categoria 3, Classe Social, objetivamos classificar as situações em que é possível interpretar relações de diferenciação baseadas na posição socioeconómica das personagens das produções cinematográficas visualizadas. Subdivide-se nas categorias 8, Presença no filme, e 9, Papel atribuído consoante a classe social.

Partindo da consideração da Idade como categoria de discriminação (Collins, 2000 1990]), a construção desta categoria pretende classificar a forma como as personagens de diferentes idades são representadas. Com efeito, desdobra-se nas subcategorias 10, Personagens mais velhas, e 11, Personagens mais novas.

A última categoria de análise centra-se no Poder, como dimensão inextrincável da desigualdade entre os vários grupos sociais, em especial, a partir do seu género e respetivas interseções com as categorias de ‘raça’/etnia, classe social e idade. Nesta linha, a sua manifestação nos vários filmes analisados é categorizada a partir das figuras apresentadas como figuras de poder, subcategoria 12, e da naturalização do poder como apanágio masculino, subcategoria 13 (Connell, 1985; 1987; 2002; Connell e Messerschmidt, 2005).

Posteriormente, procedeu-se à etapa de análise e interpretação (Sarmento, 2014) das categorias construídas, cruzamento entre os referenciais de alicerce à investigação, com especial destaque para os contributos teórico-conceptuais e filosóficos dos campos científicos da Sociologia (Bourdieu, 1989; 1997 [1996]; 2003 [1984];

Galtung, 1969; 1990), dos Estudos de Género (Beauvoir, 2009 [1949]; Connell, 1987;

2002; Connell e Messerschmidt, 2005; Collins, 2000 1990]; Mulvey, 1975; Butler, 1997;

2009; hooks, s.d.) e De(s)coloniais (Spivak, 1988; Lugones, 2014), sobre o Envelhecimento (Ribeiro, 2021), da Filosofia (Foucault, 2000 [1966]; 1999 [1975]) e da