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Capítulo I- Enquadramento teórico-conceptual: percorrendo grelhas de análise do

4. Género e Linguagem

Em sociedades atravessadas por relações de poder (re)produzidas a partir do género, da “raça”, da classe social e da idade (Collins, 2000 [1990]), também a linguagem, como mediadora da comunicação social e o seu alicerce cultural, pode perpetuar violência contra meninas, em especial, provenientes de minorias étnicas e de famílias de classe trabalhadora, por estarem situadas no cruzamento da opressão-discriminação-exploração culturalmente enraizada (Galtung, 1990).

Abordar a linguagem como (re)produtora da violência estruturalmente intrincada e culturalmente legitimada (Galtung, 1969; 1990), contra determinados grupos sociais, conduz-me à abordagem do conceito de poder simbólico (Bourdieu, 1989), que está na base do conceito de violência simbólica (Bourdieu, 1996).

Exercido sem que dele se tenha consciência, o poder simbólico manifesta-se nos sistemas simbólicos (Bourdieu, 1989), construtores e construídos, simultaneamente, pela interação social e em relação com o mundo envolvente, e que concedem significados ao

‘real. A este nível Bourdieu (1989) atende à importância dos símbolos enquanto ferramentas que permitem conhecer esses mesmos significados, orientando a comunicação, e viabilizando a consensualização de modos de ser e agir, (re)produzindo a estruturação social. Assim, “é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes que os «sistemas simbólicos» cumprem a sua função política de instrumentos de imposição

ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)” (Bourdieu, 1989: 11).

Neste quadro, a desigualdade é validada através da imposição de uma norma por parte dos grupos ou classes sociais dominantes, isto é, favorecidos/as pelas estruturas sociais, que subalterniza as pessoas cujas especificidades físicas, psicológicas e modos de vida se distanciem de tal norma, entre as quais, as minorias étnicas, mulheres, crianças, pessoas cuja orientação sexual divirja da heteronormatividade imposta socialmente e culturalmente legitimada, assim como, as classes trabalhadoras (entre outros grupos sociais), oprimindo-as e discriminando-as no domínio simbólico (Bourdieu, 1989; 1996), ao constrangerem a sua liberdade e limitarem as suas oportunidades na construção e prossecução de um projeto de vida.

Todavia, e sendo exercida a partir de sistemas simbólicos (Bourdieu, 1989), socialmente construídos e construtores da vivência em sociedade, a violência simbólica adota configurações veladas, não sendo visível às pessoas que dela são vítimas, e às pessoas que a perpetram (Bourdieu, 1996).

A abordagem de Bourdieu (1989; 1996) cunha, assim, uma conceção da linguagem (e dos restantes sistemas simbólicos), como mais do que mera ferramenta de comunicação, encontrando-se impregnada dos pressupostos de dominação intrincados nas estruturas sociais, e dos quais é (são), de igual modo, reprodutora(/es).

A este nível, também o trabalho de Michel Foucault assume particular relevância, com destaque para a obra “As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas” (2000 1966), na qual apresenta um percurso em torno da construção (social) da linguagem, fundamentado numa abordagem arqueológica19.

Nessa mesma obra, o autor concebe a existência de configurações epistémicas distintas na história da cultura ocidental, sendo uma atribuída ao período pré-clássico, vigente até ao século XVI, outra aos séculos XVII a XVIII, discorrendo, finalmente, em torno de uma configuração epistémica específica do período moderno, produzida entre o século XIX e o século XX (2000 1966: XIX). De acordo com Foucault (2000 1966:

69), a transição de epistémê, designada como descontinuidade, é catalisada pela mutação

19 Em “A Arqueologia do Saber” Foucault (2008 1969) identifica a investigação arqueológica como associada ao conceito de epistémê, atinente às relações (de poder) que permitem enformar os discursos na génese da construção de formas de conhecer o real, num determinado período histórico, e, por sua vez, de ciências, e sistemas de convenções nos quais se alicerçam, bem como, as relações estabelecidas entre tais modos de conhecer, as ciências que a partir deles se criam, e os discursos que as mesmas produzem.

na forma de pensamento dominante até então, no que caracteriza como “uma erosão que vem de fora”.

Neste sentido, e quanto à primeira configuração epistémica, esta conduz-nos ao período que precede o Renascimento, no decurso do qual a linguagem foi concebida como objeto de descodificação, em si mesma, construindo signos que codificavam as coisas, e, atribuindo, a partir deles, significações, e universos de codificação, relacionados com as coisas significadas (Foucault, 2000 1966). Até este período, a configuração da linguagem encontrava-se imbuída de um estatuto quási-coisificado, o qual lhe permitia uma análise de algum modo, liberta da vinculação às coisas que significava. No entanto, e percebida, à semelhança dos demais elementos do mundo, como criação divina, em tudo poderiam ser perspetivados signos, à espera de serem decifrados, como pistas para a compreensão do mesmo. Deste modo, a conjuntura na qual os signos eram desvelados, e sua descodificação pretendida, revelava-se essencial à compreensão da relação estabelecida entre vários signos e coisas que significavam (Foucault (2000 [1966]: 58).

Ainda de acordo com Foucault (2000 [1966]), em meados do século XVII, assiste-se à primeira descontinuidade na história da epistémê, caracterizada pela rutura com a configuração epistémica da época. Semeou.se, assim, o vestígio de uma nova epistémê, atribuída à idade clássica. Nesse período, a linguagem perdeu o estatuto coisificado que a caracterizou anteriormente, sendo-lhe retirada, inclusive, a necessidade de se alicerçar no contexto da sua utilização para estabelecer relações entre as coisas, os signos que às mesmas atribuía, e entre os signos e as coisas que lhes eram vinculadas, sendo imbuída do poder de representar a complexidade do pensamento humano a partir de uma estrutura binária de significados e a sua representação material (Foucault, 2000 [1966]).

A rutura com a configuração epistémica à qual esta época é, na abordagem Foucaultiana (2000 1966: 102), vinculada, deveu-se, em larga medida, à interpelação do carácter limitador das representações criadas pela linguagem, desencadeada pela abordagem filosófica de Immanuel Kant.

Por conseguinte, uma nova configuração epistémica é, ainda segundo Foucault (2000: XIX 1966), encetada no século XVIII, no período que designa como modernidade, brotando, com ela, a conceção da linguagem como obra da humanidade, em detrimento de construção divina. As configurações veiculadas por tal episteme preservam a relação entre significante-significado, embora requerendo uma interpretação

externa que permita articular ambas as dimensões. É, aliás, o desenvolvimento da hermenêutica que permite aos sujeitos criar signos e significá-los, por intermédio do exercício cognitivo de interpretação (Foucault, 2000 [1966]).

A epistémê da modernidade revela-se, deste modo, estruturante à compreensão da linguagem como socialmente construída, inclusive, através de relações de poder perpetradas pelos grupos sociais dominantes sob o desígnio de impor as criações e interpretações de signos que desenvolvem como a verdade (Foucault, 2000 1966;

19711970;1998 [1979]), na génese do discurso instituinte de norma, simultaneamente prescritora e excludente, para os grupos cujos processos de criação e interpretação de signos não contemple.

Neste sentido, afigura-se fundamental conceber a grelha de abordagem de Foucault (1999 [1975]), no quadro de outras obras de referência da sua autoria, nas quais conceptualiza a construção moderna do poder das novas formas de organização social, como discreto, porém, penetrante, perpetrado sobre o corpo, designadamente, a partir da sexualidade, enquanto dispositivo de dominação (Foucault, 1988 [1976]).

De uma perspetiva pós-estruturalista e feminista, Judith Butler (1997; 2009) afirma que não somente linguagem e género estabelecem relações estruturantes das relações que se (re)produzem no quotidiano a partir de tal categoria. Identifica o género como formado, constituído por atos, coletivos, corporais, e de fala. Butler (1997), em contraste, preconiza uma articulação ternária entre género, linguagem responsável por enformar, e, concomitantemente, construir a sua performatividade20, e o corpo, enquanto locus da influência exercida a partir da relação género-linguagem, materializada no desenvolvimento de uma performance.

Deste modo, a proposta de Butler (1997; 2009) revela-se estruturante à investigação desenvolvida, reconhecendo o género como categoria desempenhada a partir da sua prática, inclusive, a configurada na linguagem, desvelando, deste modo, as potencialidades da performatividade, enquanto proposta percursora da subversão da norma socialmente atribuída a cada género, dicotomicamente percebido em feminino ou masculino, e imposta a partir de objetivos sociais, políticos e culturais traçados pelas relações de dominação culturalmente alicerçadas (Butler, 2009). Destaca-se, também, a

20 A ênfase atribuída por Butler (1997; 1999; 2009) a performatividade potencia, na sua perspetiva, a

transição das interpretações do real, em torno do que se acredita ser a sua essência, ou seja, da metafísica, para o seu ramo mais específico, a ontologia, interpelando-a a partir das suas potencialidades do ponto de vista da reconfiguração da interpretação do mundo que constitui. Daí que, mais do que privilegiar uma leitura sobre o género como construído, o reconheça como desempenhado.

pertinência do contributo de Butler (1997; 2009) na conceção do género como desempenhado e influenciado pela linguagem. A este nível é, ainda, possível traçar um paralelismo entre a proposta de Butler (2009) e a leitura de Maria José Magalhães (2007), na qual, o papel atribuído ao sujeito na agência pela sua libertação da relação de subalternidade a que a norma pode subjugar enfatiza a interpelação crítica da performatividade do género (Butler, 1997; 2009), materializada através do corpo e da linguagem.

4.1 Os processos de aquisição e construção da linguagem na Infância

Segundo a abordagem histórica e sociológica apresentada pelas investigadoras e investigador de Educação e Desenvolvimento Humano Cláudia Nascimento, Vantoir Brancher e Valeska Oliveira (2008), a criança permaneceu relegada para um segundo plano na história das Ciências Sociais e Humanas durante algum tempo, sendo que, quando finalmente foi contemplada neste ramo do saber como sujeito de estudo, as suas necessidades e interesses não eram reconhecidas, subordinando-se, não raras vezes, ao universo interpretativo da pessoa adulta e do que prescrevia (aliás, ainda prescreve) como sendo importante conhecer (Nascimento, Brancher e Oliveira, 2008).

Neste sentido, destaca-se a sua objetificação a partir de quadros formatados com base na posição social da pessoa adulta, e do que considera desejável (bem como, expectável) à criança. A abordagem dominante no campo científico reflete, aliás, a conceção social da Infância, e das crianças.

Roger Hart (1992:9), possui um contributo interessante neste âmbito, referindo que as crianças são “os membros mais fotografados e menos ouvidos da sociedade”21 . Refere, inclusive, que a competência das crianças tende a ser subestimada pelas pessoas adultas, pelo que, ainda que existam projetos e iniciativas com vista à promoção da sua participação, estes tendem a adotar uma lógica paradoxal, na medida em que, são supervisionados, até manipulados, por pessoas adultas.

Deste modo, e recuperando a leitura de Collins (2000 [1990]), também a idade pode ser concebida como categoria de dominação, não raras vezes, articulada com a categoria género, em torno da qual a linguagem opera, (re)produzindo relações de

21 Tradução livre de “the most photographed and the least listened to members of society” (Hart, 1992: 9).

subalternização a partir do recurso a estereótipos. Enquanto mecanismos de diferenciação, importa que os impactos dos estereótipos, transmitidos ao longo do processo de socialização desenvolvido em contexto de Jardim de Infância (Silva et al., 2005; Cardona et al., 2015), sejam percebidos, cedendo-se, em tal processo, espaço e tempo que permita conhecer possíveis processos (re)criativos de aprendizagem e construção da linguagem, interpelando as suas potencialidades como alavancas de visões inclusivas sobre o género e matriz de dominação que se lhe associa (Collins, 1990).

A partir da leitura de Jean Piaget (1952 1936), importa pensar o desenvolvimento cognitivo da criança como um processo de adaptação ao mundo no qual a mesma se insere, o qual permite construir as estruturas necessárias ao estabelecimento de relações com os objetos e seres que nele existem, e com os quais a criança interage.

Tal processo é concomitante ao primeiro estágio de desenvolvimento previsto pelo autor, o sensório-motor, sendo interrompido assim que a criança começa a utilizar a linguagem verbal, e se inicia a fase de pré-operacional (Piaget, 1952 1936). Segundo a sua abordagem, o processo de aquisição da linguagem inicia-se na dimensão cognitiva, pelo que, a relação entre a criança e o meio circundante deve ser considerada (Piaget, 1952

1936).

Analogamente, na perspetiva de Lev Vygotsky (2007 [1978]), a linguagem, concebida como instrumento de transmissão de cultura, tem significativa influência no processo de desenvolvimento cognitivo da criança, catalisando o processo de construção de conceitos pela criança sempre que a mesma contacta com palavras ou com os significados que lhes são culturalmente atribuídos.

Mais recentemente, o linguista Eve Clark (2009 [2003]), descreveu os processos de aquisição da linguagem pelas crianças como condicionados pela interação com pessoas adultas, as quais não só lhes apresentam as palavras e os significados dos quais são culturalmente imbuídas, como retificam potenciais equívocos na articulação entre o que as crianças pretendem significar, e a palavra que utilizam para o fazer. Analogamente, e ainda segundo Clark (2009 [2003]), as pessoas adultas influenciam o processo de construção de relações semânticas entre várias palavras. Neste domínio, a reação do/a educador/a é fundamental no processo de aquisição da linguagem pelas crianças (Clark, 2009 [2003]).

A atribuição de significado a palavras desconhecidas, é, contudo, um fenómeno mais complexo, dependendo da atenção da criança quando ouve o termo, do contexto em

que se encontra, de outras palavras que pareçam diferir do referido, além de informações que considere adequadas aquando do processo de atribuição de significado (Clark, 2009 [2003]).

Não obstante, a relação estabelecida pelas crianças em relação à linguagem não se circunscreve à mera aquisição, devendo, em alternativa, pensar-se um processo de aprendizagem que como qualquer outro implica intercâmbios permanentes entre a criança e o meio. Por conseguinte, configura-se como “um processo ativo, próprio, de construção e reconstrução de conhecimentos, ao qual é atribuído um sentido vital, e que geram novas aprendizagens e potenciam desenvolvimentos” 22 (Zapata-Ospina e Mesa, 2013: 220).

Deste modo, é fundamental considerar os contextos nos quais as crianças se inserem como instâncias socializadoras relativamente a significados culturalmente impostos das palavras com as quais vão contactando, destacando-se o seu papel na análise crítica de tais significados, produzidos e, simultaneamente, produtores de relações de poder que relegam meninas, em especial de comunidades étnicas e de famílias de classe trabalhadora para posições sociais subalternas. Este exercício analítico e reflexivo revela-se fundamental para visibilizar as relações de dominação estruturalmente intrincadas e culturalmente legitimadas, e, neste quadro, contribuir para a libertação dos grupos e classes sociais em posições subalternas.

5. Género e violência(s): Na linha da prevenção primária da(s)