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2. EM NOME DA COPA: O PROCESSO DE MUDANÇAS LEGISLATIVAS

2.2 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO APROVADA SOB A JUSTIFICATIVA DA

2.2.3 A construção de facilidades administrativas

Tendo em vista que todas as ações relacionadas à realização da Copa dependiam da atuação intensa da administração pública brasileira (federal, estadual e municipal), direta ou indiretamente, os entes públicos, além da criação das estruturas administrativas especiais e do procedimento licitatório (RDC) mencionados, produziram um conjunto de normas voltadas a priorizar a análise e o encaminhamento das demandas envolvendo a Copa, de interesse ou iniciativa dos próprios órgãos públicos ou da FIFA e seus parceiros.

Em muitos casos, foram introduzidas normas genéricas, como as constantes nas Leis de Diretrizes Orçamentárias de Manaus editadas anualmente, de 2010 a 2013, nas quais sempre constou:

Art. 3º Em cumprimento ao disposto no art. 147, II, § 2º, da Lei Orgânica Municipal e em simetria com o disposto no art. 165, II, § 2º da Constituição Federal, as Metas e Prioridades da Administração Pública Municipal são as constantes do Anexo I desta Lei.

3º O projeto de lei orçamentária dará prioridade às ações governamentais necessárias para garantir a viabilização das metas estabelecidas para a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (Lei n. 1480, de 08 de julho de 2010, sem grifo no original).

Além de priorizar as obras públicas relacionadas à Copa, foram estabelecidas regras também genéricas para análise de pedidos feitos por particulares. O Distrito Federal, por exemplo, aprovou a Lei n. 5.104, de 2 de maio de 2013, que “dispõe sobre medidas relativas à Copa das Confederações da FIFA 2013 e à Copa do mundo da FIFA 2014” e estabelece, no seu artigo 27, parágrafo único, que os pedidos de emissão de documentos (autorizações, licenças, alvarás e quaisquer outros documentos necessários para o regular e válido exercício de atividades comerciais no Distrito Federal) seriam “analisados e deferidos com prioridade”.

Essa previsão é similar a da Lei n. 6.363, de 19 de dezembro de 2012, do Estado do Rio de Janeiro, a qual estabelece que os pedidos para emissão de

“autorizações, licenças, alvarás e quaisquer outros documentos, necessários para o regular e válido exercício de atividades comerciais dentro dos limites do Estado” submetidos pelo COL, pela FIFA e por seus parceiros56, serão analisados com prioridade (artigo 18, parágrafo único).

Essa previsão constou também na legislação de vários municípios. Em Belo Horizonte, a Lei n 10.689, de 26 de dezembro de 2013, estabeleceu que a “concessão de autorizações, licenças, alvarás e quaisquer outros documentos necessários ao regular e válido exercício de atividades comerciais dentro dos limites do Município” seriam analisados com prioridade (art. 20, parágrafo único). A mesma previsão foi aprovada, pelo menos, nos municípios de Cuiabá (art. 18, parágrafo único, Lei n 5.652 de 26 de março de 2013), e Recife (art. 24, parágrafo único, Lei n. 17.873, 05 de junho de 2013), seguindo o modelo de regramento difundido para estados e municípios.

O Município de Belo Horizonte, por sua vez, instituiu a “Operação Urbana de Estímulo ao Desenvolvimento da Infraestrutura de Saúde, de Turismo Cultural e de Negócios, visando atender às demandas da Copa do Mundo FIFA Brasil 2014 no Município” (Lei n. 9.952, de 5 de julho de 2010), que continha um programa de Estímulo à Atividade Hoteleira. Nele, os projetos de construção de novos hotéis ou apart-hotéis, ou de ampliação dos já existentes, seriam submetidos a processo de licenciamento urbanístico especial (art. 4º, V). O Decreto n. 14.066, de 11 de agosto de 2010, ao regulamentar a Lei 9.952/2010, previu a possibilidade de dispensa da obtenção de licença ambiental prévia (art. 16). O decreto prevê ainda que: “Art. 19 Os empreendimentos que fizerem uso dos parâmetros previstos na Lei nº 9.952/10 e sujeitos ao licenciamento ambiental ou urbanístico deverão ser submetidos a processo de licenciamento simplificado” (sem grifo no original).

No caso do Estado Ceará, a Lei n. 14.882, de 27 de janeiro de 2011, que estabeleceu procedimentos administrativos simplificados,

previa dispensa do licenciamento ambiental de obras definidas no texto e em outras, elegidas pelo governador enquanto “estratégicas”.

56 São parceiros FIFA, segundo o art. 2º da Lei n. 6.363/2012: VIII – Prestadores de Serviços da FIFA: pessoas jurídicas licenciadas ou autorizadas, com base em relação contratual, para prestar serviços relacionados à organização e à produção dos Eventos, tais como: a) coordenadores da FIFA na gestão de acomodações, de serviços de transporte, de programação de operadores de turismo e dos estoques de ingressos; b) fornecedores da FIFA de serviços de hospitalidade e de soluções de tecnologia da informação; e c) outros prestadores licenciados ou autorizados pela FIFA para a prestação de serviços ou fornecimento de bens; IX – Parceiros Comerciais da FIFA: pessoas jurídicas licenciadas ou autorizadas, com base em qualquer relação contratual, em relação aos Eventos, bem como os seus subcontratados, com atividades relacionadas aos Eventos (...).

Diante das reações dos movimentos ambientais o projeto do governador Cid Gomes passou a prever então “procedimentos ambientais simplificados para a implantação e operação de empreendimentos e/ou atividades de porte micro com potencial degradador baixo” (PINHEIRO et al., 2015, p. 320).

A opção por flexibilizar o licenciamento ambiental também foi registrada no Estado do Rio Grande do Norte, que alterou procedimentos para deixar de exigir requisitos prévios ao início de obras e autorizando sua entrega posterior:

A pressa em iniciar as obras do novo estádio Arena das Dunas foi uma marca constante nos discursos do governo estadual, responsável pela viabilização junto à construtora OAS, em atender às exigências da FIFA. Como resultado, foram alterados os trâmites normais de pedido de licenças urbanísticas e ambientais, postergando a entrega de estudos ambientais mais detalhados (SILVA et. al., 2015, p. 359). O Município do Rio de Janeiro, “considerando a necessidade de integração entre todos os órgãos e entidades municipais atuantes no processo de licenciamento dos empreendimentos (...), visando maior agilização do processo de licenciamento” criou comissão voltada à “concessão de licenças e autorizações relacionadas com os projetos dos equipamentos esportivos e de apoio destinados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016”, bem como dos empreendimentos hoteleiros (Decreto n. 36.698, de 7 de janeiro de 2013, art. 1º, parágrafo único). O decreto que institui a comissão e regula seu trabalho pode ser resumido em duas regras:

Art. 3º A Comissão terá o prazo máximo de dez dias para análise e pronunciamento quanto à viabilidade de aprovação dos projetos, submetendo-os à aprovação final da Autoridade Competente.

Art. 4º Havendo eventuais restrições advindas do exame dos projetos, a Autoridade Competente poderá, não existindo prejuízo à respectiva segurança e à viabilidade, conceder licenças/autorizações com prazo máximo de noventa dias. (...)

§ 2º O prazo das licenças/autorizações poderá ser prorrogado por igual período, a critério da Autoridade competente (sem grifos no original). Tais regras preferenciais sobre licenciamento criam um procedimento privilegiado voltado, primeiramente, aos próprios órgãos públicos e aos interesses da FIFA e de seus parceiros, que configuram um longo rol de pessoas físicas e jurídicas. Por outro lado, o “atendimento preferencial” foi ampliado, em situações como a de Belo Horizonte, para outros interesses privados, o acesso a procedimentos especiais, desde que voltados a atender qualquer agenda definida como relativa à Copa.

Mas nem todos os procedimentos criados tiveram como objetivo criar facilidades. No caso do Município do Rio de Janeiro, criou-se uma regra para analisar possíveis incompatibilidades entre projetos comuns e os interesses relacionados à Copa

e às Olimpíadas. Assim, o Decreto n. 33.777, de 10 de maio de 2011, dispôs um procedimento especial voltado a limitar a interferência entre projetos urbanos com aqueles relacionados aos megaeventos:

Art. 1º As solicitações de licenças para parcelamento do solo, abertura de logradouro, construção, modificação com acréscimo, modificação de uso em edificação e instalação de mobiliário urbano na área delimitada no Anexo Único deste decreto deverão ser encaminhadas ao Gabinete do Secretário Municipal de Urbanismo para apreciação de sua interferência com os projetos relativos à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos.

Parágrafo único. Quando o projeto interferir na implementação das intervenções públicas ou dos equipamentos necessários à realização dos jogos, o Secretário Municipal de Urbanismo submeterá o pedido de licença à autorização do Senhor Prefeito da Cidade (sem grifos no original).

O controle adicional realizado sobre projetos urbanos em determinadas regiões do Rio de Janeiro não chega a ser excepcional (embora sujeito a casuísmos) no contexto dos intensos conflitos territoriais que marcam a cidade – e repercutem na constante revisão dos parâmetros urbanísticos (ver 3.2.3). No caso, destaca-se o grau de discricionariedade administrativa que predomina nessas comissões especiais para avaliar a interferência dos projetos. Nesse sentido, o Decreto n. 32.886 de 8 de outubro de 2010, do Prefeito do Rio de Janeiro, busca criar uma ferramenta, chamada de “legadômetro” para avaliar a compatibilidade das intervenções urbanas propostas com as prioridades da gestão, dos megaeventos e do plano diretor.

Ao mencionar a revisão do plano diretor em andamento e as intensas obras de infraestrutura em andamento, o Decreto afirma, em seus “considerandos”, que “as intervenções urbanas, inclusive os equipamentos esportivos e as edificações de apoio aos eventos deverão constituir-se, necessariamente, em legado urbano para todo o território da cidade e servir como estímulo para o desenvolvimento do Rio de Janeiro a longo prazo”. Para isso prevê que:

Art. 3º Todos os projetos relacionados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, inclusive aqueles situados no Parque Olímpico, serão analisados pela Comissão de Avaliação dos Projetos de Legado Urbano a ser composta por representantes das Secretarias Municipais de Urbanismo, de Meio Ambiente, de Transportes e de Obras, que emitirá parecer preliminar a respeito, sem prejuízo das análises técnicas a serem feitas pelos órgãos de licenciamento da Prefeitura. (...)

Art. 4º A Comissão de Avaliação dos Projetos de Legado Urbano deverá analisar a oportunidade e os impactos resultantes das intervenções propostas através do "Legadômetro" (sem grifos no original).

Essa ferramenta de avaliação dos impactos urbanos dos projetos seria composta de indicadores (econômico, urbanístico, ambiental e social), de forma a atribuir pontuações de 1 a 5 em cada um deles. O decreto que criou o “legadômetro” não permite identificar critérios objetivos ou um procedimento de apresentação dos estudos previstos na legislação federal e municipal, tais como Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), até então não regulamentado. Além de indicar uma baixa institucionalização na análise de projetos urbanos, especialmente para uma grande cidade, essa omissão reforça a percepção de um planejamento casuísta.

Diante da visibilidade das ações relacionadas à Copa, do volume de inovações legislativas produzidas e da multiplicação das críticas, o Ministério Público e o Poder Judiciário foram atores frequentes no desdobramento de muitos temas. No caso das licenças e dos procedimentos administrativos, por exemplo, o Ministério Público ajuizou ação para garantir a regulamentação do EIV no Rio de Janeiro, na qual o Município assinou acordo57, em 2013, com o compromisso de apresentar Projeto de Lei suprindo essa omissão. Da mesma forma, a Lei cearense n. 14.882, sobre licenciamento ambiental, foi questionada pelo Ministério Público Federal, que ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade58.