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2. EM NOME DA COPA: O PROCESSO DE MUDANÇAS LEGISLATIVAS

2.3 A PRODUÇÃO DE REGIMES URBANÍSTICOS ESPECIAIS

2.3.1 Um panorama de alterações urbanísticas

O Município de Belo Horizonte aprovou a já referida Lei n. 9.952/201067, em que foi instituída uma “Operação Urbana de Estímulo ao Desenvolvimento da Infraestrutura de Saúde, de Turismo Cultural e de Negócios”. Segundo o art. 1º, seus objetivos gerais eram:

I - assegurar o oferecimento das condições e da infraestrutura necessárias para que o Município cumpra os compromissos assumidos na condição de uma das cidades-sede da Copa do Mundo FIFA Brasil 2014;

II - estimular o aprimoramento da Rede Municipal de Saúde; III - desenvolver o turismo cultural e de negócios no Município; IV - estimular a geração de emprego e renda.

No artigo 2º, é explicitado o objetivo específico de ampliar a estrutura de serviços, por meio da implantação de estabelecimentos culturais, hospitalares e hoteleiros para atender à demanda resultante da Copa, abrangendo todo o território do Município, respeitando-se todas as normas específicas de zoneamento, exceto àquelas relativas ao Coeficiente de Aproveitamento68:

Art. 3º - A Operação Urbana de que trata esta Lei abrange todo o território do Município, respeitadas as normas de localização dos usos e do funcionamento das atividades previstas na Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano, a legislação urbanística correlata, assim como as normas relativas a parâmetros específicos de Áreas de Diretrizes Especiais - ADEs - e à proteção do patrimônio histórico e cultural, com exceção daqueles relativos ao Coeficiente de Aproveitamento.

§ 1º - Os parâmetros urbanísticos previstos nesta Operação Urbana sobrepõem-se àqueles previstos na legislação urbanística municipal, com exceção daqueles previstos para as Zonas de Preservação Ambiental - ZPAMs -, desde que atendidos os requisitos previstos nesta Lei.

67 Regulamentada pelo Decreto n. 14.066, de 11 de agosto de 2010.

68 O coeficiente de aproveitamento, também chamado de índice ou potencial construtivo é o número que indica a área total que pode ser construída em um imóvel. O coeficiente 1 indica que é possível edificar até 100% da metragem quadrada de um terreno, sendo em tese possível multiplicar a área de construção total de um imóvel até o infinito. É por meio dele que se viabiliza a distinção entre direito de propriedade e direito de construir. Conforme apresentado no Capítulo 1, é ele que possibilita a existência dos instrumentos urbanísticos Outorga Onerosa do Direito de Construir, Transferência do Direito de Construir e Operação Urbana Consorciada.

O Município de Belo Horizonte dispôs que, mediante a assunção de algumas obrigações específicas, tais como parâmetros urbanísticos específicos e cumprimento de prazos69 pelos empreendedores, seria ampliada “a outorga de potencial construtivo adicional, limitado ao Coeficiente de Aproveitamento - CA - máximo de 5,0” (art. 6º). Somam-se a essa possibilidade, outras como a de adaptação e regularização de edificações existentes e desconformes, desde que atendam aos requisitos da Lei (art. 7º e 8º).

A Lei n. 9.959, de 20 de julho de 2010, que alterou o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte e as normas de parcelamento, ocupação e uso do solo, estabeleceu nas suas disposições transitórias duas exceções permissivas: no artigo 13, consta uma regra geral para flexibilização de parâmetros urbanísticos e, no artigo 79, foi prevista uma exceção para a transferência do direito de construir:

Art. 13 Até que sejam aprovadas as leis específicas das Operações Urbanas Consorciadas previstas nesta Lei, os parâmetros urbanísticos para as áreas nelas incluídas poderão ser flexibilizados, em caráter excepcional, em decorrência de outras Operações Urbanas aprovadas por lei específica, com vistas, exclusivamente, ao atendimento de demandas vinculadas à realização da Copa do Mundo FIFA 2014. (...) Art. 79 Com o objetivo de viabilizar a disponibilidade de unidades de alojamento decorrente das demandas de cidade sede da Copa do Mundo FIFA de 2014, fica autorizada a transferência de UTDCs70 geradas pelas áreas submetidas ao Grau de Proteção 1 para fora da área da Operação Urbana do Isidoro condicionada ao cumprimento do disposto no art. 80 destas Disposições Transitórias, desde que atendidas as seguintes condições

(sem grifos no original).

Na cidade do Rio de Janeiro, foram aprovadas as Leis Complementares n. 104, de 27 de novembro de 2009 e n. 108, de 25 de novembro de 2010. Na primeira, foi instituído o Projeto de Estruturação Urbana - PEU Vargens, que modificou o regime de uso e ocupação do solo, atribuindo novas diretrizes, alterando o zoneamento e regulando a aplicação dos instrumentos urbanísticos em um conjunto de bairros (Baixada do Jacarepaguá). Nela, abre-se a possibilidade de ampliação do coeficiente de aproveitamento mediante contrapartida (art. 98), ao passo que isenta das contrapartidas

69 Foi prevista multa para o descumprimento do prazo de entrega dos empreendimentos beneficiados pelo aumento do Coeficiente (31/03/2014). Tendo em vista que muitos empreendimentos atrasaram, multas foram aplicadas. No dia 11 de fevereiro de 2016, a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte aprovou, em 1º turno, uma anistia de 50% das multas aplicadas para hotéis que não ficaram prontos a tempo da Copa (PORTO, 2016), indicando que os integrantes da coalizão seguem com força junto ao legislativo municipal.

70

os imóveis utilizados para a Copa e as Olimpíadas (art. 98, § 7º), além de prever a transferência de potencial construtivo para os imóveis lindeiros àqueles destinados pelo Poder Público a projeto da Copa e das Olimpíadas (art. 98, §§ 6º e 8º):

Art. 98 Na Área de Especial Interesse Urbanístico é permitida a ampliação dos parâmetros de aproveitamento do solo mediante contrapartida dos interessados, pela aplicação das Contrapartidas e demais instrumentos onerosos previstos no Plano Diretor (...)

§ 6º No caso de efetiva necessidade de utilização de terrenos particulares nos eventos da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, estes poderão ser doados, e a totalidade do potencial construtivo (ATE) deverá ser necessariamente transferida para os terrenos lindeiros, do mesmo proprietário, somando-se aos índices previstos na coluna 2 do Anexo V da presente Lei Complementar.

§ 7º Para as áreas utilizadas para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016, os projetos incidentes sobre a mesma ficarão isentos do pagamento da contrapartida estabelecidas na Coluna 2 do Anexo V desta Lei Complementar.

§ 8º Todos os parâmetros urbanísticos não utilizados nos terrenos para projetos definidos pelo Poder Público para fins de eventos voltados para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, poderão ser transferidos para terrenos limítrofes do mesmo proprietário, devendo ser somado diretamente aos parâmetros definidos na coluna 2 do Anexo V desta Lei Complementar.

Já a Lei Complementar n. 108 altera os parâmetros de construção diversas áreas da cidade, ampliando o zoneamento amigável a serviços de hotelaria, ampliando o coeficiente de aproveitamento dos imóveis e a área útil edificável, com a justificativa de ampliar a capacidade de hospedagem na cidade, por meio de uma série de alterações pontuais (arts. 12 a 22):

Art. 2º Este Capítulo estabelece condições de incentivo para a construção de novas edificações destinadas a serviços de hospedagem, bem como a reconversão ou utilização de edificações visando ampliar o número de unidades hoteleiras e reduzir o déficit de acomodações para a realização da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em 2016, na Cidade do Rio de Janeiro.

O Município do Recife, inspirado pela Leis de Belo Horizonte e Rio de Janeiro, aprovou a Lei n. 17.710, de 27 de maio de 2011, que altera regime urbanístico e regula outorga onerosa com base na justificativa de ampliar o serviço de hotelaria necessário para a Copa. Assim, foi regulamentada a aquisição de coeficiente de aproveitamento podendo alcançar o índice 3.

Art. 3º Os projetos arquitetônicos de construção, reconstrução ou reforma das edificações destinadas à hotelaria e situadas em imóveis inseridos na ZAC Controlada I, definida no artigo 96, II da Lei Municipal nº 17.511/2008, poderão atingir o Coeficiente de Utilização Máximo de 3,0 (três), mediante a utilização do instrumento de outorga

onerosa do direito de construir, definido na Lei Municipal nº 17.511/08.

Em Curitiba, foi aprovada a Lei n. 13.620, de 04 de novembro de 2010, que institui potencial construtivo especial para a Copa. Na redação original, o artigo 2º estabelecia a venda de, no máximo, R$ 90 milhões em potencial construtivo. A Lei n. 14.219, de 28 de dezembro de 2012, por sua vez, alterou a redação anterior para ampliar esse limite:

Art. 2º O Programa autoriza a concessão de potencial construtivo de, no máximo, R$ 123.066.666,67, referente ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo ‐ FIFA 2014. (Redação dada pela Lei nº 14219/2012)

Na prática, para capitalizar o Clube Atlético Paranaense, proprietário do Estádio, o Município passou a emitir certificado de índice para serem vendidos e reverter, destinando os recursos obtidos para as obras do estádio, respeitado o limite de 2/3 do valor total:

Art. 3º O potencial construtivo será calculado no valor de 2/3 (dois terços) do valor total orçado das obras necessárias à conclusão do Estádio, conforme estabelecido no § 1º do artigo anterior, atendidas as especificações da FIFA.

No caso de Porto Alegre, foi aprovada a Lei Complementar n. 703, de 28 de setembro de 2012, que cria uma ferramenta de transferência de índices justificada na necessidade de implantar infraestrutura de transporte coletivo. Para isso, foi instituído (art. 2º) um Plano de Incentivos para a transferência de potencial construtivo dos imóveis atingidos pelo traçado das obras viárias previstas na Matriz de responsabilidades.

Art. 2º (...)

§ 1º Os imóveis a serem beneficiados pelo Plano de Incentivos deverão estar localizados nos traçados viários definidos nos respectivos projetos, incluídos aqueles destinados à implantação de equipamentos urbanos necessários para a complementação das obras. Por meio dessa previsão, os imóveis privados necessários à realização das obras públicos são transferidos ao Município, mediante permuta por potencial construtivo, podendo incidir percentuais de 20% e 10% de bônus. Além disso, a Lei

autorizou o Município a alienar índice (proveniente do estoque público do direito de construir) para se capitalizar71:

Art. 8º O Município de Porto Alegre fica autorizado a alienar 279.433m² (duzentos e setenta e nove mil, quatrocentos e trinta e três metros quadrados) correspondentes aos estoques construtivos públicos adensáveis e não adensáveis, de acordo com a reserva já existente, (...) Parágrafo único. Os estoques construtivos públicos dos quais trata este artigo serão denominados Índices da Copa de 2014.

As mudanças de regime urbanístico e os instrumentos de transferência de potencial construtivo são mecanismos de indução do desenvolvimento urbano sobre os quais existem experiências bastante variadas, muitas positivas. Sua utilização adequada depende da pré-existência de condições técnicas instaladas e de demanda por construção superior à disponibilidade de imóveis com estoque de coeficiente disponível. Nas situações apresentadas, destaca-se o fato de que sua utilização foi casuística, voltada a gerar benefícios pontuais e captar recursos, de forma que a Copa é utilizada somente como justificativa para essa flexibilização de normas.

A modificação de zoneamento e padrões de uso, como no caso do Rio de Janeiro, é sintomática de um método em que são indicados vários pontos da cidade, conforme endereço, mapas e anexos, em que foram autorizadas a adoção de novo regime urbanístico. Trata-se de uma situação em que, com a aparência de justificativa técnica, são atendidas demandas particularistas de valorização imobiliária. Mas isso não é extraordinário, a novidade é a construção de uma narrativa com a força da Copa, que reproduziu reformas legislativas casuístas em todas as cidades-sede, dentre as quais destaca-se o exemplo de Porto Alegre, que será apresentado a seguir.