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3. MODELOS DE PLANEJAMENTO URBANO E MEGAEVENTOS: A DISPUTA

3.2 O PLANEJAMENTO URBANO NEOLIBERAL

3.2.2 O empreendedorismo urbano

A crítica ao planejamento estratégico é muito bem estruturada e, como será tratado a seguir, os elementos que ela aponta foram em maior ou menor grau

experimentados na trajetória brasileira recente, especialmente no processo de realização dos megaeventos. Entretanto, parece haver certa exacerbação acerca da capacidade de hegemonização dessa agenda, ao passo que se subdimensiona a pluralidade de modelos de planejamento que disputam entre si e a capacidade de resistência dos atores envolvidos na luta política das cidades.

Entretanto, é importante salientar que todos os atores envolvidos na produção do espaço urbano estão limitados pelas condições históricas e geográficas previamente construídas, de forma que até mesmo os capitalistas estão limitados pelas circunstâncias pré-estabelecidas de produção do espaço:

embora o processo urbano sob o capitalismo seja moldado pela lógica da circulação e da acumulação do capital, aqueles critérios modelam as condições e as circunstâncias da acumulação do capital em pontos posteriores do tempo e do espaço. Em outras palavras, os capitalistas, como todos os demais, talvez lutem para promover sua própria geografia histórica, mas, também como todos os demais, não fazem isso sob circunstâncias históricas e geográficas de sua própria escolha individual, mesmo quando desempenham um papel coletivo importante e mesmo determinante ao moldar aquelas circunstâncias (HARVEY, 2006, p. 165).

Feita essa ressalva sobre os limites da produção das cidades, serão apresentados os conceitos utilizados por David Harvey que, em sentido semelhante, aponta para os aspectos macroeconômicos e ideológicos da gestão urbana neoliberal. Harvey é um dos primeiros críticos a perceber a emergência do empreendedorismo urbano85 em substituição à abordagem administrativa anterior, pelo menos no centro do sistema (Estados Unidos e Inglaterra), a partir dos anos 1970 e 1980. Segundo ele, o consenso que emergiu à época é de que “os benefícios positivos são obtidos pelas cidades que adotam uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico" (HARVEY, 2006, p. 167).

Os elementos que fizeram emergir essa nova postura dos administradores locais, resultantes da crise das economias capitalistas a partir de 1973, foram desindustrialização, desemprego, austeridade fiscal, ascensão do discurso conservador, com defesa do mercado e da privatização. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento do Estado diante das multinacionais e a capacidades destas se relocalizarem levaram à

85 O texto que estrutura essa seção foi publicado em inglês em 1989, e pela primeira vez em português, em 1996, sob o título “Do gerenciamento ao empresariamento: a tranformação da administração urbana no capitalismo tardio” (HARVEY, 1996). Entretanto, estou utilizando a versão publicada em 2005, como capítulo de “A produção capitalista do espaço”, que nessa tradução recebeu o título “Do administrativismo ao empreendedorismo: a tranformação da governança urbana no capitalismo tardio” (HARVEY, 2006).

negociação direta entre o grande capital e os governos locais, colocando em sua agenda a questão do desenvolvimento econômico.

Mas a governança urbana, nesse contexto, é mais ampla que os atores de governo e líderes políticos locais. Amplia-se, como era de se esperar, o leque de agentes que produzem o desenvolvimento nas cidades:

o poder real de reorganização da vida urbana muitas vezes está em outra parte, ou, pelo menos numa coalizão de forças mais ampla, em que o governo e a administração urbana desempenham apenas papel facilitador e coordenador. O poder de organizar o espaço se origina em um conjunto complexo de forças mobilizado por diversos agentes sociais (HARVEY, 2006, p. 171).

Diferentemente daquilo que é reiterado na crítica ao planejamento estratégico quanto ao consenso indispensável, a análise sobre o empreendedorismo urbano pressupõe um processo conflituoso, especialmente quando se trata de um local de diversidade social. E é para lidar com os conflitos esperados e inerentes ao processo de governança local que é necessária a formação de coalizões, de alianças de classes, que possam viabilizar projetos de empreendedorismo urbano. Harvey cogita os mais diversos atores sociais como integrante desse tipo de coalizão: empresários de todo tipo, instituições e ensino ou religiosas, sindicatos de trabalhadores, partidos políticos, movimentos sociais e estruturas de governo.

Para sistematizar esse modelo, Harvey propõe três elementos que estruturam o novo empreendedorismo urbano. Como elemento principal, está a “noção de ‘parceria público-privada’, em que a iniciativa tradicional local se integra com o uso dos poderes governamentais locais, buscando e atraindo fontes externas de financiamento, e novos investimentos diretos ou novas fontes de emprego” (2006, p. 172). A segunda característica é:

a atividade da parceria público-privada86 é empreendedora, pois, na execução e no projeto, é especulativa, e, portanto, sujeita a todos os obstáculos e riscos associados aos desenvolvimento especulativo, ao contrário do desenvolvimento racionalmente planejado e coordenado. Em muitos casos, isso significou que o setor público assumiu o risco, e o setor privado ficou com os benefícios (HARVEY, 2006, p. 173). Por fim, o “empreendedorismo enfoca muito mais a economia política do lugar do que o território” (HARVEY, 2006, p. 173). Isso quer dizer que, segundo esse

86 O conceito de parceria público-privada não é o mesmo do modelo jurídico de negócios instituído na Lei federal n. 11.079/2004, trata-se de uma expressão que abrange os diversos arranjos em que há capitais públicos e privados envolvidos.

modelo, a estratégia é construir um novo lugar, ou intervir para qualificar um lugar, esperando que haja benefícios para o conjunto do território, o que nem sempre ocorrerá. Em sentido contrário, deixam de ser priorizadas ações de melhorias no conjunto do território, como em infraestrutura ou serviços. Em resumo:

o novo empreendedorismo urbano se apoia na parceria público- privada, enfocando o investimento e o desenvolvimento econômico, por meio da construção especulativa do lugar em vez da melhoria das condições num território específico, enquanto seu objetivo econômico imediato (ainda que não exclusivo) (HARVEY, 2006, p. 174).

O empreendedorismo urbano articula quatro opções que, tomadas em conjunto, dão viabilidade ao crescimento econômico pretendido. Uma primeira opção está na competição interna à divisão internacional do trabalho, em que são determinantes a base de recursos existentes e a localização, mas também são determinantes os investimentos em infraestrutura, benefícios fiscais, características da mão de obra. A segunda opção é investir na competição para atração de consumidores, por meio, por exemplo, do turismo e eventos culturais. A terceira opção é a atração de atividades de gestão relacionadas às finanças, ao governo e aos meios de comunicação. A quarta opção é possuir em seu território atividades financiadas pelos governos centrais, que possibilita a inserção de recursos da economia local.

Tendo em vista que tais opções de inserção para o crescimento econômico não se excluem, antes pelo contrário, se relacionam internamente, fica evidente que há certa concorrência interurbana nas estratégias empreendedoristas. Isso porque, diante do conjunto de fatores que perderam relevância no processo historicamente recente de desenvolvimento do capitalismo, tais como diminuição do custo de transporte e de barreiras para circulação de bens, foi realçada a importância das qualidades do local: “assim, a governança urbana de orientou muito mais para a oferta de um ‘ambiente favorável aos negócios’, e para a elaboração de todos os tipos de chamarizes para atrair esse capital à cidade” (HARVEY, 2006, p. 179-180).

Ressalta-se que Harvey busca compreender o fenômeno do empreendedorismo urbano de forma realista, considerando que, eventualmente, ele possa gerar resultados positivos para as cidades. Assim, sugere a possibilidade de melhoria das condições de vida das pessoas via crescimento econômico, bem como cogita, ao mesmo tempo, que

a tentativa de criação de uma imagem positiva em torno da cidade, requerida pela competição interurbana, poderia envolver a construção de uma identidade local e o engajamento dos diferentes grupos sociais

nas discussões que envolvem as intervenções urbanas, abrindo possibilidades de processos de politização em torno do projeto de cidade (RIBEIRO; SANTOS JR., 2015, p. 45).

Mas a natureza do empreendedorismo urbano é a de reproduzir em série as mesmas estruturas urbanas em todo lugar, tendo em vista a promoção do ambiente favorável: torres de negócios, centros culturais, shoppings centers e, como parte do processo, gentrificação de regiões degradadas. A melhoria do ambiente para as empresas pressiona pelo oferecimento de infraestrutura e pela desregulamentação de relações trabalhistas, de padrões ambientais e de política tributária. Assim,

a assunção do risco pelo setor público e, em particular, a pressão para o envolvimento do setor público na oferta de infraestrutura, significou que para o capital multinacional, o custo da mudança localizacional diminuiu, proporcionando maior mobilidade geográfica a esse mesmo capital (HARVEY, 2006, p. 181).

Simultaneamente, ocorre o que Harvey descreveu em 1989 acerca das cidades norte-americanas e que se observa nas grandes cidades brasileiras, que é a sua padronização, reproduzindo os equipamentos urbanos e as estruturas de produção da ambiência projetada:

Muitas das inovações e dos investimentos idealizados para tornar certas cidades mais atraentes como centros culturais e de consumo foram rapidamente imitadas em outros lugares, tornando efêmera qualquer vantagem competitiva num conjunto de cidades. (...) O resultado é um turbilhão estimulante, ainda que destrutivo, de inovações culturais, políticas, de produção e consumo de base urbana (HARVEY, 2006, p. 182-3).

A busca por equipar as cidades para aumentar a circulação de capitais relacionados ao turismo, à produção e consumo de espetáculos, e à promoção de eventos passou a ser uma ação constante dos governos locais, visando o crescimento econômico de suas cidades. Tais investimentos, dado o caráter de incerteza quanto aos seus resultados econômicos, são basicamente especulativos, frequentemente, com recursos públicos.

A preparação de uma cidade para um megaevento como, no exemplo dado por Harvey, uma Olimpíada, custa caro e talvez não obtenha o retorno esperado:

Em outras palavras, shoppings centers e estádios esportivos financiados a crédito, assim como outras facetas do consumo conspícuo, são projetos de alto risco, que podem, com facilidade, defrontar-se com tempos difíceis, exacerbando (...) os problemas da superacumulação e do excesso de investimento, aos quais, o capitalismo, como um todo, está tão facilmente propenso (HARVEY, 2006, p. 184).

O desenvolvimento urbano está articulado – em diferentes níveis e de forma complexa – aos processos gerais de produção no capitalismo. As novas expressões urbanas, cujas características foram brevemente apresentadas, são abordagens voltadas à mobilização de atores políticos para garantir a ampliação de mercados e a disponibilização de recursos. Não se trata de um voluntarismo a destinação de recursos, pelos atores políticos locais, para a atração de capitais. Essa é uma das alternativas que se colocam diante de um cenário de rápidos deslocamentos de empresas de uma cidade para outra, de um país para outro, em que a efetividade de direitos acaba sendo colocada em segundo plano.

Ressalta-se, entretanto, quanto às formulações gerais apresentadas acima, que a dinâmica do empreendedorismo urbano é descrita a partir do centro do sistema, cujas crises e características distinguem-se daquelas encontradas na América Latina e no Brasil. Assim, é importante mencionar que a modernização brasileira, ou o desenvolvimento tardio do capitalismo no Brasil absorve, é verdade, os impulsos dessa agenda urbana, ao passo que o faz de forma desigual e contraditória.

Embora as análises produzidas em relação aos megaeventos se concentrem na crítica ao planejamento estratégico e ao empreendedorismo, cabe repisar que eles que são modelos de planejamento em competição com outros. Tais disputas não ocorrem no plano meramente conceitual, mas por meio das escolhas feitas pelos governos e pelas coalizões de apoio, que tomam decisões e apoiam projetos de forma também contraditória, mas que, conforme será argumentado, indicam o fortalecimento da hegemonia neoliberal em detrimento do modelo de planejamento democrático.