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2. EM NOME DA COPA: O PROCESSO DE MUDANÇAS LEGISLATIVAS

2.3 A PRODUÇÃO DE REGIMES URBANÍSTICOS ESPECIAIS

2.3.2 Porto Alegre na Copa: o dobro de benefícios

Ainda antes de ser anunciada como cidade-sede da Copa, o que só viria a acontecer em maio de 2009, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou, em 29 de dezembro de 2008, duas Leis com o objetivo de alterar o regime urbanístico de diferentes imóveis localizados na cidade. A justificativa dos projetos era viabilizar a realização dos projetos intitulados “Arena do Grêmio” e “Gigante para Sempre”.

71 A Lei criou o Fundo da Copa do Mundo de 2014 (Funcopa), regulamentado pelo Decreto n. 18.638, de 7 de maio de 2014.

O primeiro projeto dizia respeito à construção de um novo estádio de futebol para o time “Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense”, bem como aumentar os padrões de construção do imóvel de propriedade do clube onde ficava localizado seu estádio antigo (Olímpico). Já o segundo projeto alterou o zoneamento das áreas vizinhas ao local onde se encontra o estádio Beira Rio, de propriedade do time “Sport Club Internacional”, bem como amplia o potencial construtivo de um imóvel do clube (antigo Estádio dos Eucaliptos). A justificativa para a urgência em que foram apreciadas tais mudanças legais era a possibilidade de um dos estádios virem a sediar jogos da Copa.

Além do aumento de índices para possibilitar a venda dos imóveis por preços maiores – mediante a justificativa de capitalizar os clubes e possibilitar investimentos na melhoria ou construção dos estádios –, os esforços para viabilizar a realização dos jogos na cidade incluíram também a doação de imóveis públicos aos dois clubes e à empresa OAS (responsável por construir o complexo chamado de “Arena do Grêmio”), bem como incentivos fiscais e concessão de outras facilidades burocráticas.

Especificamente, é notável que a cidade – consagrada pela participação popular, em razão do orçamento participativo – tenha se transformado em um lugar de pouca discussão pública na definição de prioridades de investimentos e em reformas legislativas envolvendo o planejamento urbano. Mas os projetos justificados pela Copa do Mundo foram precedidos de outras iniciativas, nos últimos anos, de aprovação de grandes projetos urbanísticos em Porto Alegre, especialmente na Orla do Guaíba72.

A intenção de construir junto ao Guaíba é frequentemente explicitada, mas muitos desses projetos não obtiveram êxito, havendo, em alguns casos, grande oposição de diferentes grupos sociais, tais como associações de moradores, organizações não governamentais, partidos políticos e grupos ambientalistas73. Em outras áreas da cidade, grandes projetos urbanísticos foram realizados, sem significativa oposição. Assim, multiplicaram-se pela cidade condomínios fechados, shoppings centers e obras de infraestrutura viária, os quais modificaram significativamente as regiões de uso e as centralidades urbanas, tendo expressivo impacto na valorização do solo e na dinâmica de apropriação do território.

72 Trata-se de uma área de grande extensão, com aproximadamente 20 quilômetros de perímetro do Centro (cuja ocupação é antiga) até o bairro de Ipanema (Zona Sul). Chamado tradicionalmente de rio, o Guaíba é, na verdade, um lago (MENEGAT; CARRARO, 2009).

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Já a possibilidade de grandes projetos na Orla do Guaíba era limitada. Por um lado, o Plano Diretor de Porto Alegre vedava a construção para fins comerciais ou residenciais na região, o que possibilitou a preservação de imóveis públicos, destinados ao uso gratuito, com a preferência para espaços culturais ou áreas verdes. Por outro lado, o Orçamento Participativo (OP), a partir de 1989, como instrumento de decisão sobre o investimento de recursos públicos atribuiu à população a definição sobre as prioridades para a realização de projetos pelo poder público municipal. Em que pesem as críticas sobre o mérito e os limites do OP74, sua existência impediu objetivamente a transferência de recursos públicos do Município a grandes empresas privadas, bem como a destinação de imóveis públicos a particulares75.

Tais circunstâncias políticas impediram ou retardaram a adesão ao empreendedorismo urbano como método de gestão e ao planejamento estratégico como instrumento de inserção no mercado das cidades competitivas (ver Capítulo 3). Esses obstáculos, no entanto, foram removidos pela homogeneização da gestão urbana produzida pela Copa do Mundo no Brasil. Como toda estratégia bem sucedida, ela se adaptou às características locais, no caso de Porto Alegre, contemplou à binariedade das torcidas dos times de futebol locais.

Havia uma competição, produzida pelas direções dos times e alimentada pela imprensa local, pela definição sobre qual estádio sediaria os jogos, o do “Grêmio” (Arena) ou o do “Internacional” (Beira-Rio):

A rivalidade entre Internacional e Grêmio está presente também na preparação para a Copa de 2014. O projeto de reforma do Beira-Rio foi escolhido por Porto Alegre na hora de apresentar sua candidatura à Fifa, mas o Grêmio tem o projeto de um novo estádio e sonha com uma mudança de planos (OGLIARI, 2009).

A prioridade oficial era criar condições de sediar os jogos da Copa – uma oportunidade única na opinião dos gestores municipais – e o Estádio já estava definido. Mas também era importante agradar e beneficiar as duas principais forças futebolísticas. Sobre o tema, o então Prefeito de Porto Alegre José Fogaça afirmou:

Para que Porto Alegre receba a Copa, é fundamental que a cidade tenha estádios adequados. Isto compete aos clubes, vamos fazer uma

74 Ver, por exemplo, um balanço crítico em BAIERLE (2002) e AVRITZER e NAVARRO (2003). 75 Sobre projetos urbanísticos na Orla do Guaíba, destaca-se o caso do imóvel do “Estaleiro Só” que foi

leiloado judicialmente, para o pagamento de dívidas trabalhistas, após modificação no Plano Diretor alterando seu regime urbanístico (CAFRUNE; GONÇALVES, 2010).

parceira com a dupla Gre-Nal76 neste sentido. Não digo financeiramente, mas Grêmio e Inter precisarão de uma legislação municipal, de licenciamentos, de regras, de normas de edificação. Enfim, tudo o que eles precisarem para poderem dar sequência a seus projetos (CLICRBS, 2008).

Quanto à definição do estádio em que seriam realizados os jogos, afirmou o então Prefeito que:

para Porto Alegre, seria sensacional se tivéssemos dois estádios que atendam todos os requisitos que a Fifa exige. Os dois clubes estão no caminho certo, investindo para sustentar grandes reformas ou até para construir um novo estádio. A prefeitura não pode fazer uma opção clubística, mas ela procura ajudar os dois da mesma maneira (CLICRBS, 2008).

Como decorrência desse “tratamento isonômico” dado aos dois clubes de futebol e, com vistas à parceria mencionada para atender às necessidades de condições especiais aos clubes (legislação e licenciamentos), a Prefeitura encaminhou os projetos de lei aprovados em 29 de dezembro de 2008, alterando o regime urbanístico de diferentes imóveis localizados na cidade. Importante ressaltar que, à época, os projetos não possuíam qualquer materialidade, ou seja, não havia processos administrativos – meios próprios para aprovação de projeto e licenciamento de construção – tramitando junto aos órgãos responsáveis.

Conforme declarou o então Secretário José Fortunati:

Temos a preocupação de que tanto Grêmio quanto Inter possam apresentar seus projetos, não somente para a Fifa e CBF até 15 de janeiro, mas também protocolar esses projetos na Secretaria de Planejamento Municipal, com a maior rapidez. Por quê? Porque a Câmara aprovou foram simplesmente índices de volumetria e altura. Agora é necessário que aquelas maquetes eletrônicas que foram apresentadas se transformem em projetos arquitetônicos e de engenharia, que sejam apresentados para secretaria e Prefeitura (PORTO ALEGRE 2014, 2009).

As “maquetes eletrônicas” apresentadas pelos clubes de futebol, pelos meios de comunicação e, inclusive, pelos administradores para servirem de fundamento simbólico para a aprovação das leis, não vinculava nenhum dos atores envolvidos a efetivamente realizarem os projetos virtualmente apresentados. Entretanto, as modificações introduzidas pelas Leis Complementares n. 608 e 609, de 08 de janeiro, e

76 Dupla Gre-Nal (ou Grenal) é uma expressão difundida entre a população sul-riograndense e no meio esportivo; é utilizada para referir-se aos jogos realizados entre os times ou para designar as duas associações esportivas de maior expressão no Estado: Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, ou simplesmente Grêmio, e Sport Club Internacional, ou simplesmente Inter.

n. 610, de 13 de janeiro de 2009, produziram efeitos imediata e diretamente sobre as possibilidades de construção nos imóveis e, por conseguinte, sobre sua valorização nas áreas de propriedade dos clubes.

No caso da “Arena do Grêmio” destaca-se que ela foi construída em imóvel situado no Bairro Humaitá, em frente à Rodovia BR 290, que foi doado, por meio da Lei Estadual n. 13.093, de 2008, “no todo ou em parte, à construção do complexo esportivo Arena do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense” (art. 2º). Já a Lei Municipal n. 10.839, de 26 de fevereiro de 2010, desafetou do uso de bem comum do povo imóveis municipais, com a finalidade de doação ao Grêmio, para que pudessem ser incorporados e vendidos, já com seu novo regime urbanístico.

A justificativa para a urgência em que foram apreciadas as mudanças de regime urbanístico era a possibilidade de um dos estádios virem a sediar jogos da Copa do Mundo de 2014. Trata-se de uma situação em que, valendo-se das exigências feitas pela FIFA, os clubes garantiram apropriação de recursos públicos, utilizando-se de maneira bem sucedida do repertório produzido no âmbito dos megaeventos para mobilizar aliados, formar consensos, sem que os atos tenham sido juridicamente contestados.

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Nesse Capítulo, foram apresentadas as demandas da FIFA por transformações legislativas para a realização da Copa do Mundo de 2014, as respectivas obrigações assumidas pelo Estado brasileiro e o processo de mudanças legislativas realizadas sob a justificativa do megaevento. A legislação aprovada nos âmbitos federal, estadual e municipal demonstrou o impacto jurídico da preparação para a Copa e indicou as prioridades de alocação dos benefícios e ônus de sua realização. Os benefícios não foram direcionados exclusivamente à FIFA e seus parceiros, uma vez que outros atores puderam se posicionar para estar dentre os beneficiários, como mostra o exemplo da mudança de regime urbanístico.

Do ponto de vista administrativo, houve um realinhamento de prioridades nos entes públicos envolvidos consolidando um “programa único de governo”, envolvendo todas as forças políticas representadas na institucionalidade. A agenda política voltada para o desenvolvimento, que é amplamente consensual na sociedade brasileira, sobretudo desde 2003, foi apropriada pela narrativa dos organizadores da

Copa, de forma a viabilizar um grande empreendimento econômico, alterando a natureza do planejamento urbano e a produção do espaço urbano no Brasil, o que será analisado detidamente no próximo Capítulo.

O conjunto de normas acima analisadas, em que pese não tenha se contraposto explicitamente, por meio de revogação ou derrogação, às normas que preveem o direito à moradia, impactou o regime jurídico urbanístico, afetando sua força normativa. Isso porque permitiu e incentivou a mudança de usos de territórios urbanos ocupados por população de baixa renda, bem como financiou ações que previam remoções. Assim, as alterações promovidas sob justificativa da Copa constituíram uma contradição à proteção ao direito à moradia.

Para explicitar esse regime jurídico da Copa, destacam-se as seguintes características em cada dimensão:

a) na administrativa, verificou-se a produção de uma institucionalidade amistosa à FIFA, em que foram criadas instâncias específicas e privilegiadas de negociação com os interlocutores designados pela FIFA. Ademais, a legislação previu inúmeras facilidades na tramitação dos processos de licenciamento dos parceiros-FIFA, ao passo que, no tratamento dispensado às remoções não foram criadas instâncias para coibir despejos e remoções;

b) na econômica, a priorização de investimentos em obras de grande impacto urbanístico ocorreu por meio da combinação de gastos públicos diretos, isenções a particulares, endividamento público, via financiamentos subsidiados a outros entes; doações de imóveis e transferência de índices construtivos gratuitos.

c) na política, ficou evidenciada a adesão dos gestores nos diversos níveis e instituições, ao modelo de planejamento urbano empreendedorista, o que será objeto de análise detalhada do Capítulo 3.

Por fim, ao traçar um perfil das exigências feitas pela FIFA e aceitas pelos organizadores brasileiros, foi possível avaliar como as alterações promovidas na legislação, sob a justificativa da Copa do Mundo de 2014 impactou negativamente no regime jurídico urbanístico protetivo ao direito à moradia. Não se trata, pois, de conciliar dois regimes jurídicos, uma vez que a consolidação do modelo de planejamento urbano catalisado pelos megaeventos atenta contra os princípios da política urbana constantes na CRFB e no Estatuto da Cidade.

3. MODELOS DE PLANEJAMENTO URBANO E MEGAEVENTOS: A