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2. EM NOME DA COPA: O PROCESSO DE MUDANÇAS LEGISLATIVAS

2.2 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO APROVADA SOB A JUSTIFICATIVA DA

2.2.6 Lei Geral da Copa

Para atender a outras exigências da FIFA, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei intitulado “Lei Geral da Copa”, em que foram previstas a proteção especial de marcas relacionadas à realização dos jogos, em especial de seus patrocinadores, bem como “a garantia de exclusividade na exploração comercial dos espaços do evento, a simplificação de procedimento para concessão de vistos e as isenções em custas judiciais nos órgãos da Justiça mantidos pela União” (PORTAL DA COPA, 2011).

A Lei 12.663, sancionada em 5 de junho de 201266, conceitua um longo rol de entidades ligadas à FIFA e de eventos por ela organizados para, a seguir, estabelecer a ampla proteção especial da marca FIFA:

Art. 3º O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) promoverá a anotação em seus cadastros do alto renome das marcas que consistam nos seguintes Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, nos termos e para os fins da proteção especial de que trata o art. 125 da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996:

I - emblema FIFA;

II - emblemas da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014;

III - mascotes oficiais da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014; e

IV - outros Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, indicados pela referida entidade em lista a ser protocolada no INPI, que poderá ser atualizada a qualquer tempo.

A Lei Geral da Copa inspirou sua reprodução em todos estados, municípios e no distrito federal, possibilitando dar efetividade à previsão que nela constou no artigo 11 de colaboração entre esses entes:

Art. 11. A União colaborará com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à FIFA e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso.

§ 1º Os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente, considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados, atendidos os requisitos desta Lei e observado o perímetro máximo de 2 km (dois quilômetros) ao redor dos referidos Locais Oficiais de Competição.

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A proteção da marca levou, é claro, à ampliação de restrições comerciais nas chamadas áreas de exclusividade, as quais foram estabelecidas detalhadamente nas Leis Municipais. Além de limitar a presença de marcas comerciais concorrentes às de seus patrocinadores, a Lei também criou amplo conjunto de regras sobre captação e uso de imagem e som, regulou concessão de vistos de entrada e permissão de trabalho no Brasil dos participantes oficiais do evento, normatizou venda de ingressos e condições de ingresso e permanência aos locais oficiais, estabeleceu novos tipos penais, dentre outras previsões.

Em resumo, para atribuir plena liberdade para a FIFA atuar no país e dar exclusividade de comércio às empresas patrocinadoras, a Lei Geral da Copa foi:

replicada em todas as cidades-sede tanto por meio de contratos firmados entre as prefeituras e a FIFA como por meio de leis e decretos municipais, expressa uma outra forma de subordinação, pelo fato do Estado adotar um padrão de intervenção por exceção, incluindo a alteração da legislação urbana para atender aos interesses privados (SANTOS JR.; GAFFNEY; RIBEIRO, 2015, p.16)

Além de regular as vedações de comércio, publicidade, segurança nos estádios e entorno, as leis gerais da copa afastaram a incidência de normas estaduais e municipais que previam benefícios ou estabeleciam restrições. Nesse sentido, a Lei mineira n. 20.711, de 11 de junho de 2013, é suficientemente clara. Ficam afastadas as normas estaduais referentes à entrada e permanência nos locais de competição, bem como as de descontos em ingressos:

Art. 3° (...)

Parágrafo único. Não se aplicam aos eventos quaisquer normas estaduais que disponham sobre o controle de entrada e permanência de pessoas nos locais oficias de competição.

Art. 4° O preço dos ingressos para as competições será determinado pela Fifa, não se aplicando às competições as normas estaduais referentes à:

I – concessão de gratuidade, redução de preço, meia-entrada ou qualquer outra forma de subvenção a consumidores;

II – reserva de quantidade absoluta ou percentual de ingressos para quaisquer categorias de pessoas, seja para distribuição gratuita, venda preferencial ou a preço reduzido.

O afastamento de descontos e gratuidades gerou um grande debate, fazendo com que a Lei Federal n. 12.663 criasse um sistema de padronização de descontos, que na Lei 20.711, de Minas, constou no artigo 5º:

Art. 5° Em todas as fases de venda, os ingressos da categoria 4, a que se refere o art. 26 da Lei Federal n° 12.663, de 2012, serão vendidos

com desconto de 50% (cinquenta por cento) para as pessoas naturais residentes no País abaixo relacionadas:

I – estudantes;

II – pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos;

III – participantes de programa federal de transferência de renda. Prevaleceu uma estrutura de afastamento genérico a normas – que em alguns casos inexistiam – tais como aquelas referentes à competência para prestar serviços de saúde e de segurança nos estádios:

Art. 6° A segurança pública nos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso, nos aeroportos, hotéis e centros de treinamento localizados no Estado e as medidas de prevenção a acidentes ou incidentes de segurança de qualquer tipo, inclusive nos dias de partida, serão realizadas, sem custos para a Fifa e o COL, pelos poderes públicos competentes, não sendo aplicáveis aos eventos quaisquer normas estaduais que disponham em sentido diverso, inclusive as que exijam a contratação de seguros de quaisquer espécies. (...)

§ 2° O disposto no caput aplica-se igualmente a normas estaduais que disponham sobre o dever de manter, nos locais oficiais de competição, ambulância, médicos, equipes e equipamentos de socorro.

Foram igualmente afastadas as normas que restringiam o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios. Na Lei n. 5.104/2013, do Distrito Federal, por exemplo, constou:

Art. 3º (...)

Parágrafo único. Não se aplicam aos eventos de que trata esta Lei as normas distritais que disponham sobre distribuição, venda, publicidade, propaganda ou comércio de alimentos e bebidas no interior dos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso, inclusive as que restrinjam o consumo de bebidas alcoólicas, salvo as proibições destinadas a pessoas menores de dezoito anos, resguardado o exercício do poder de polícia.

As mesmas regras constaram na Lei n. 6363, de 19 de dezembro de 2012, do Estado do Rio de Janeiro, que a exemplo das demais também previu o transporte gratuito aos portadores de ingressos:

Art. 11 Os portadores de ingresso para jogos e os credenciados do COL e da FIFA terão direito a duas viagens diárias pelo sistema do bilhete único estadual, custeadas pelo Estado do Rio de Janeiro, quando necessitarem do transporte público intermunicipal ou do transporte no sistema de metrô, trens e barcas, para deslocamento para os jogos realizados no Estado do Rio de Janeiro.

A partir da Lei Federal n. 12.663/2012, e contendo basicamente as mesmas regras das leis do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais mencionadas acima, foram aprovadas: no Amazonas, a Lei n. 4.045, de 13 de junho de 2014; na

Bahia, a Lei n. 12.821 de 17 de junho de 2013; no Ceará, a Lei n. 15.279, de 28 de dezembro de 2012; no Mato Grosso, a Lei n. 9.890, de 16 de janeiro de 2013; no Paraná, a Lei 17.551, de 30 de abril de 2013; em Pernambuco, a Lei n. 14.848, de 22 de novembro de 2012; no Rio Grande do Sul, a Lei n. 14.194, de 31 de dezembro de 2012; e em São Paulo, a Lei n. 15.456, de 09 de junho de 2014.

Nos municípios não foi diferente, foram reproduzidas as normas estaduais acerca das restrições de consumo, propaganda etc., e foram regulamentadas as “zonas de exclusão”, delimitando exatamente a área de exclusividade para os produtos e comerciantes autorizados pela FIFA. A exemplo de Fortaleza, que aprovou as Leis n. 9.986 e 9.987, ambas de 28 de dezembro de 2012, as Leis Gerais da Copa,

excepcionalizam a vigência das legislações municipais, entre essas as que envolvem: publicidade e propaganda; comercialização de produtos no entorno dos locais de jogos e vias de acesso aos mesmos; regulamentações sobre ingressos, como vedações à meia-entrada, concessão de gratuidades, acesso e permanência nos locais oficiais, atendimento preferencial (PINHEIRO et al., 2015, p. 316).

Nos demais municípios, as zonas de exclusão foram regulamentadas por meio de Lei nas cidades de Belo Horizonte (Lei n. 10.689, de 26 de dezembro de 2013); Cuiabá (Lei n. 5.652 de 26 de março de 2013); Recife (Lei n. 17.873, de 05 de junho de 2013) e Salvador (Lei n. 8.414, de 17 de junho de 2013). Optaram pela delimitação das restrições por meio de Decreto os Municípios de Manaus (Decreto n 2.781, de 14 de maio de 2014); Natal (Decreto n. 10.256 de 04 de abril de 2014); Porto Alegre (Decreto n. 18.663, de 22 de maio de 2014); Rio de Janeiro (Decreto n. 38.367 de 11 de março de 2014) e São Paulo (Decreto n. 55.010, de 9 de abril de 2014).

Como foi possível demonstrar, houve um grande alinhamento de normas jurídicas em que normas federais são complementadas por normas estaduais, distritais e municipais para organizar a implementação da agenda Copa do Mundo. O diagnóstico desse conjunto de permite afirmar que foi promovida uma reforma administrativa ampla, senão uma reforma de estado, por meio de suas estruturas específicas, de um regime próprio de licitações e de prioridades e facilidades burocráticas.

De outro lado, a legislação selecionada, ainda que não seja exaustiva, demonstra o empenho para a mobilização de recursos públicos para financiar as ações e obras articuladas sob a justificativa da Copa. Dessa forma, além dos investimentos públicos diretos, a FIFA e seus parceiros receberam tratamento tributário privilegiado, em que todos os tributos de competência federal, estadual e municipal foram

eliminados; os entes públicos ampliaram sua dívida para realizar os projetos de infraestrutura e de construção de estádios; e todas as garantias patrimoniais foram dadas à FIFA, ficando grande parte dos custos operacionais sob responsabilidade dos governos estaduais e municipais. Constituiu-se, assim, um verdadeiro regime jurídico próprio para a Copa do Mundo

Do ponto de vista da capacidade de mobilização política e administrativa, trata-se de um feito admirável, que só foi possível graças à força do Projeto Copa do Mundo e do alto grau de consenso produzido pela coalizão de interesses que lhe deu suporte. Parcela importante das coalizões de sustentação da Copa é formada por proprietários e empreendedores imobiliários. Suas demandas, porém, não foram diretamente abarcadas na legislação descrita até aqui. Assim, no próximo item, serão abordadas as mudanças de regime urbanísticos realizadas sob a justificativa da Copa – mudanças essas que, como se demonstrará, entram em tensão com o regime jurídico urbanístico protetivo ao direito à moradia.