• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5. RESULTADOS DA ETAPA I:

5.3 A Construção de laços afetivos

Para a clínica-pesquisadora, trabalhar com um grupo que já conhecia foi importante para o fortalecimento dos vínculos e para os próprios catadores formarem um espaço de discussão que não existia, também favoreceu a aproximação e a coragem para deixarem a palavra se manifestar. Ao mesmo tempo, as dificuldades com os papeis também se apresentaram. A clínica-pesquisadora saía de um lugar hierárquico e de poder para um lugar de escuta atenta, acolhendo falas muitas vezes difíceis, duras, ou maquiadas.

O caminho escolhido pelo Coletivo de clínicos, de falar dos sentimentos que surgiram durante a sessão via memorial na sessão seguinte, aproximaram os catadores da clínica- pesquisadora e favoreceram a quebra da relação hierárquica que havia se estabelecido durante a execução do projeto anterior. Buscou-se nomear sentimentos com palavras que os catadores pudessem entender, assim, surgiram logo no memorial da 2a Sessão, palavras como: aflição, agonia, medo, preocupação, angústia e esperança. Estes sentimentos do Coletivo de clínicos, sobretudo das clínicas-pesquisadoras, manifestados nos diários de campo eram explicitados e relacionados aos motivos que os tinham reverberado tanto em relação ao conteúdo das sessões quanto em relação às interpretações sobre as falas dos catadores. Observou-se que tal ação promoveu a identificação no coletivo de pesquisa, levando tanto a clínica-pesquisadora quanto os próprios catadores a racionalizarem menos ao descreverem os sentimentos: “(...)

olha esses dias eu estou tão angustiado de tanta pressão do Poder Público...” (Transcrição

da 2a Sessão, 25 fev 2012). “E ai todo lugar as pessoas têm medo do outro porque nunca

sabe com quem vai lidar” (Transcrição da 4a

Sessão, 10 mar 2012).

Nem sempre nomear os sentimentos foi algo fácil. Houve momentos de tensão, sobretudo nos enfrentamentos com um dos catadores que ocupava uma função central na Associação, controlador da compra e venda dos materiais. Falar o que sentiam sobre a forma de trabalho do Administrador da Sede só foi possível na ausência dele, nas 7a e 8a Sessões. Assumir as falas na 9a Sessão, na frente do dito catador, foi mais difícil ainda, muitos faltaram como forma de resistir, de negar o enfrentamento, mas ao mesmo tempo foi nesta tensão, ao longo destas 3 sessões, que o grupo passou do momento das discussões para as deliberações.

Percebia-se um mal estar na relação entre dois jovens não catadores auxiliares do Administrador e os catadores em si. O Diário de Campo da 5a Sessão pontua esta questão: “a

experiência e a inexperiência são faladas nesta sessão e os jovens pouco se defendem, um quando fez foi agressivo com uma das catadoras”. A forma de tratamento dada ao catador

Ghizoni, L. D. (2013) 148

que chega à ASCAMPA para pesar seu material é fonte de reclamação de ambos os lados: quem chega para pesar reclama da demora, da balança, do preço, da grosseria e dos risinhos sobre o jeito de alguns catadores . Os que pesam se queixam da falta de organização do catador, que deixa para separar o material (ferro, papelão, plástico, alumínio) na frente da balança, atrasando a todos, e que chegam muito próximo das 17h, horário que estão fechando a Sede. Como dois catadores moram, precariamente, na Sede da ASCAMPA, há a interpretação de alguns catadores de que estes devem receber o catador que deseja pesar em qualquer horário.

Ocupou-se enquanto clínico-pesquisador o lugar de um elo nesta cadeia da escuta, como preconizam Mendes e Araujo (2012), promovendo o espaço de discussão para a nomeação do sofrimento e consequente enfrentamento da situação e para a busca coletiva de sentido para a realidade criticada.

Analisa-se que quando o catador criticado por sua forma de gestão admite que está sozinho dentro de um coletivo e que está muito difícil para ele, abre-se espaço para os demais catadores se identificarem neste individualismo em que viviam e, assim, começarem a buscar alternativas coletivas. Saem as posturas onipotentes para manifestações de apoio e encorajamento.

Alguns catadores foram os porta vozes dos sentimentos de mal estar do coletivo e isto os fez sentirem-se acuados, mas não os impediu de mudarem o seu funcionamento e o do grupo para que as mudanças acontecessem. Observou-se que as repetições manifestas em várias sessões sobre os descontentamentos com a Associação só poderiam ser mudadas se os sujeitos insatisfeitos também mudassem. Mudar o outro implicava mudar a si mesmo.

A presidente da Associação era uma pessoa tímida, calada, que pouco exercia sua função na ASCAMPA; mas foi ela que assumiu esta fala do coletivo na sessão de enfrentamento com o gestor. Ela se referiu às reuniões que começaram a fazer após as sessões de clínica e à primeira que fizeram na Sede da ASCAMPA após o início das sessões; eram os primeiros passos do coletivo gestor do qual ela fazia parte: “(...) depois, nós ficamos todo

mundo junto aqui, procurando o quê que nós ia fazer, pra poder ajudar lá. E foi aonde surgiu essa ideia, da gente fazer esse café da manhã lá, na quinta-feira [dia 3 de maio], e resolver como que a gente poderia ajudar. E teve três solução, pra você lá [dirige-se ao

Administrador], que a gente surgiu aqui, das coisas que você gosta de fazer: atendente lá [atender as pessoas que chegam], pesar, cozinhar, que é as três coisas que a gente sabe que

você faz muito lá. Mas lá, você ajuda a limpar, ajuda na prensa, ajuda carregando, ajuda em tudo. Então, foi aonde a gente chegou aquele ponto de dizer que da onde você está cansado,

Ghizoni, L. D. (2013) 149 você não recebe o catador direito, o catador já vai cansado, já vai... agoniado, não se leva problema de casa. E quando chega lá, que vai pesar, aí você já está cansado também e fala coisa que a gente não quer ouvir, aí o negócio explode” (Transcrição da 9a

Sessão, 5 mai 2012).

Este processo de construir um coletivo abrindo mão dos medos foi acontecendo nas últimas sessões, quando começaram a se reunir após as sessões de Clínica Psicodinâmica da Cooperação para deliberarem sobre as discussões feitas. Este movimento surge na 7a Sessão e se repete por outras sessões a tal ponto que começam a agendar dias e horários para reuniões específicas da Associação bem como criam um coletivo gestor (entre a 9a e 10a Sessões), como experiência para mudar os processos de trabalho na ASCAMPA.

Este coletivo gestor é desafiado pelo atual Administrador, que diz “Rapaz, eu vi de

boca, mas agora, botar na prática, eu acho difícil. Eu falo a verdade” (Transcrição da 9a

Sessão, 5 mai 2012). Dando continuidade à sessão em que ele afirma isto e indaga os demais catadores sobre esta mudança na gestão, surgem falas: “Eu não sei se vai funcionar, não” (Transcrição da 9a Sessão, 5 mai 2012). Mas o coletivo persiste, retoma a importância histórica da reunião: “(...) foi o primeiro na nossa Sede porque, assim, reunião assim para

nós sentar e conversar? (..) de um certo tempo pra cá que todo mundo se espalhou e não está acontecendo mesmo (...).Cada um falou o que sentia e foi onde eu falei: ‘Nessa reuniãozinha que a gente tem que falar o que está preso aqui dentro da gente, porque a gente se sente mal’. Quando você ofende e você às vezes volta a pensar, você se sente mal. Se você é ofendido, também, naquele momento também você ofende o outro sem querer, porque ninguém é 100%. O ser humano é ser humano” (Transcrição da 9a

Sessão, 5 mai 2012). A construção da cooperação e solidariedade, reforçando os laços entre os catadores, começa a nascer: “Então eu acredito assim, que é no grupo que a gente tem que discutir

essas coisa, é no grupo que a gente tem que procurar a nossa opção para a gente melhorar e melhorar o próximo (...). Então assim é uma ajuda, porque a gente não ajuda os outros não é só por dinheiro, não é só pela cesta, é com a informação, é com a palavra amiga, é com o abraço amigo, que a gente ajuda o outro. Porque eu tenho encontrado muito ajuda através disso. Através do conhecimento que a pessoa quer me ajudar. Eu me sinto aliviada, eu me sinto confortável. Você acredita?” (Transcrição da 9a

Sessão, 5 mai 2012).

Para um grupo de catadores que atuava isoladamente fazendo da ASCAMPA somente o local para depósito e comercialização dos materiais, observar a valorização do coletivo, das reuniões, das decisões do grupo para buscar as melhorias foi fantástico: “E o meu desejo é

Ghizoni, L. D. (2013) 150 vida. Nós temos tudo, pra nós subir e ganhar melhor. (...) Eu acho que a gente tem que fazer isso mesmo. Ajudar a gente, que a gente precisa de ajuda. Está precisando de força demais. É todo que é associado tem que ir lá ajudar” (Transcrição da 9a

Sessão, 5 mai 2012). Configura-se, assim, a mudança de foco dos catadores, não mais um “outro” externo à Associação era convocado a fazer por eles, mas sim, contar com eles mesmos, os associados, para este recomeço.