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CAPÍTULO 5. RESULTADOS DA ETAPA I:

5.5 A Formação do Clínico-pesquisador

A subjetividade do clínico-pesquisador é parte do próprio método, assim, peço licença aos leitores para escrever este texto em primeira pessoa, devido à pessoalidade do dispositivo. Afetar-me com a fala dos catadores, com os gestos, com as posturas, com os atrasos, com as dores e as delícias da ocupação de sobreviver daquilo que já não serve para a maioria da

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população foi tarefa cotidiana na realização desta Clínica da Cooperação, com grandes momentos de sofrimento, mas de muito prazer também.

Saber que a frustração era condição sine qua non à Clínica era uma coisa, vivencia-la foi outra coisa, e bem difícil. Lidar com os meus limites, com os meus medos e angústias me levaram a valorizar este dispositivo, a formação do clínico, que, por sua vez, descobriu-se no decorrer desta tese estar intrinsecamente ligada à supervisão com o Coletivo de clínicos bem como ao processo de análise pessoal.

Ao final da 3a Sessão, percebi que não estava conseguindo fazer a Clínica, fazer a escuta qualificada sobre o sofrimento dos catadores, e desvelar as defesas do coletivo de pesquisa. Estava muito resistente ao papel que me cabia naquele momento, o da ação para a “inércia”. Pois a minha subjetividade demandava um lugar diferente daquele, um papel mais político, engajado para um fazer típico da função ocupada anteriormente no Projeto de Extensão pelo NESol/UFT. O Diário de Campo da 2a Sessão demonstra isso – ao finalizá-lo, eu sinalizo a preocupação por encaminhamentos práticos, técnicos, advindos das queixas dos catadores. Havia uma preocupação da minha parte por um fazer e não por um sentir: “Avisei que a sessão estava chegando ao final e que eles tinham levantado várias questões que precisavam ser mais bem discutidas, para ver se saia algum encaminhamento: Fiscalização – pedir ajuda ao ministério público, pois o Poder Público só pressiona o catador e eles querem amparo; Tenda (segundo eles a Prefeitura tem, eu acho que não tem, estes equipamentos são alugados para eventos, mas não tenho certeza); Fomentar projetos para angariar recursos para construção do galpão; Cobrar o muro em volta do terreno, que o prefeito prometeu; Necessidade de se fazer uma assembleia para prestação de contas (este assunto parece bem problemático, foi “jogado” mas não comentado). Com este resumo, perguntei, o que poderiam fazer diante de tudo isto” (Diário de Campo da 2a

Sessão, 25 fev 2012).

Sendo a minha subjetividade uma das dimensões do próprio Método, fui em busca de supervisão para encontrar um caminho possível diante das condições que se impunham. O Diário de Campo da 5a Sessão apresenta uma dúvida, aparentemente fácil, mas, naquele momento, difícil, tanto é que foi discutida em supervisão: “Atrelam a desconfiança à

categoria do catador: “todos são assim, independente do lugar (cidade) que trabalham”. Penso que este ponto precisa ser retomado via memorial, porque se há desconfiança entre eles que se conhecem há anos e trabalham juntos, imagina conosco? Me pergunto como acontece a transferência?”.

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Avaliamos que a supervisão mensal não seria suficiente para atender as minhas demandas de formação e que faltavam conteúdos para interpretação advindos da própria psicanálise, uma lacuna na minha formação. Além disso, percebi que fazer a Clínica, levar os conteúdos da sessão para a supervisão, era também levar conteúdos meus.

Diante disso, mobilizei-me para avançar. Iniciamos um grupo de supervisão semanal em Palmas a partir da 4a Sessão. Retomei o processo de análise de base freudiana. Participei de um curso temático sobre a obra de Freud na Sociedade de Psicanálise de Brasília, onde pude acompanhar as discussões sobre sonhos, recalque, inconsciente, formulação dos dois princípios do funcionamento mental e introdução ao narcisismo. Ressalta-se que este processo foi concomitante à realização da Clínica, de fevereiro a agosto de 2012.

Este dispositivo de formação do clínico atrela-se, simultaneamente, à supervisão e à análise para que, neste tripé, consiga-se lidar com o sofrimento do clínico diante do real e, assim, aconteça a mobilização subjetiva do clínico, como sugerem Mendes e Araujo (2012).

Um marco nesta Clínica Psicodinâmica da Cooperação com os catadores foi a 4a Sessão, onde recomeçamos o processo, retomando as demandas, sigilos e ética no coletivo de pesquisa. Admitir que eu não soube o que fazer diante do inesperado na 3a Sessão (quando não catadores são convidados a participar, confundindo-se o espaço da Clínica com espaços de reuniões técnicas) foi importante ser tratado na supervisão, como consta a minha demanda no Diário de Campo da 4a Sessão: “Sinto falta deste coletivo de pesquisa ser maior... penso

que outras pessoas com vivência em Clínica poderiam participar do pós-sessão para analisar a sessão em si (ler a transcrição ou ouvir a gravação), para ajudar a interpretar os pontos que surgiram, discutir a condução da sessão em si. Considerando que a supervisão é quinzenal (2 sessões sem supervisão presencial), não seria importante montar um coletivo de pesquisa aqui em Palmas? Como poderia funcionar? Ou, então, será que poderíamos montar um coletivo on line em BSB, com os alunos do LPCT?” (Diário de Campo da 4a Sessão, 10 mar 2012).

Tais angústias passaram a ser tratadas em dois coletivos de clínicos. Um semanal em Palmas, onde participavam eu, a estagiária de psicologia que me acompanhava nas sessões, e uma psicóloga com experiência em clínica e conhecimentos em Clínica Psicodinâmica do Trabalho. O outro continuou em Brasília, onde uma vez por mês discutíamos os conteúdos das sessões com a orientadora da tese, além de contar com o acompanhamento semanal dos diários de campo e memoriais enviados por email.

Neste processo de formação, foi importante as discussões sobre a melhor forma de a palavra ser acessada no coletivo de pesquisa, pois tratava-se de um coletivo com pouca ou

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nenhuma escolaridade. Optamos pela confecção de diversas formas de memoriais bem como por ser objetiva, pontual, sem muitas explicações ao lançarmos alguma pergunta, pois avaliamos que quanto mais explicávamos, mais complicado ficava para o catador compreender. Esta dicotomia foi objeto de supervisão, pois havia uma preocupação em sermos entendidas e para tal, achávamos que quanto mais explicássemos, mais seriamos compreendidas; porém, estávamos enganadas. Havia a necessidade de mudar a forma de fazer as pontuações no decorrer da sessão e também nos memoriais. Não infantilizá-los passou a ser um cuidado, pois caíamos na tendência de achar que, devido à sua pouca escolaridade, não iriam compreender.

Destaco como elementos essenciais para a formação do clínico, discutidos em supervisão e em análise, nesta Clínica da Cooperação com os catadores, o aprimoramento da escuta, ao perceber pontuações inadequadas, ao observar que as falas dos catadores iam em um sentido e as minhas intervenções em outro; inicialmente, havia um foco nos meus pensamentos, no meu tempo e não no vir a ser da Clínica.

Por exemplo, eu resistia à questão de o catador gostar da ocupação que exerce, pois as condições são muito precárias, porém eles não reclamam das condições da Sede da ASCAMPA, mas sim da forma como a sociedade os vê. Ou talvez, o fato de a sociedade não vê-los, não reconhecer o trabalho de limpeza pública que eles fazem para o Poder Público da cidade gratuitamente. “E parece que muita coisa contribui pra denegrir, pra sujar a imagem

de vocês e mesmo assim vocês acreditam nessa mudança, nesse poder de gostar dessa ocupação? ‘Se não acreditasse então nós já estava sem trabalho’. E onde está a fonte desse gostar dessa ocupação? ‘Dinheiro no bolso’. Gostar de dinheiro no bolso. ‘Porque terminou catou o carrinho e você tá sem dinheiro nenhum, você vai lá vender e você tá com dinheiro no bolso, não tem outro jeito de se [ganhar] dinheiro na hora’, não tem é uma geração de dinheiro instantaneamente” (Transcrição da 3a

Sessão, 03 mar 2012).

Com auxílio da supervisão, pude compreender que era mais que dinheiro no bolso, era fazer parte de um coletivo reconhecido nacionalmente, de uma Associação. Havia um lugar onde poderiam dizer “eu trabalho ali”, por mais que as ações, neste momento inicial da Clínica, ainda estivessem focadas no individual, mas existia esta sensação de pertença, muito forte, entre os catadores e a Associação. Então, ter este olhar, além do dito, ir nas entrelinhas, foi tarefa que foi se construindo no decorrer da Clínica, sobretudo com o auxílio do Coletivo de clínicos.

Deixar o lugar do expert, daquele que sabe e que conduz para o inesperado; sair do meu ritmo para vivenciar o ritmo do grupo, no tempo deles; e, sobretudo, abrir mão do

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egoísmo do pesquisador para o coletivo de pesquisa foram tarefas que me afetaram por inteiro, como ser humano, como psicóloga, como professora e clínica do trabalho.