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CAPÍTULO 5. RESULTADOS DA ETAPA I:

5.2 Processos de elaboração e perlaboração

A repetição como forma de recordar e como resistência perpassou várias sessões. A principal repetição foi a sinalização da falta de união entre os catadores e o baixo número de catadores na sessão e na Associação. Embora na 4a Sessão o discurso comece a se modificar, o foco da preocupação muda de apenas serem poucos para a questão de como multiplicar o que está sendo tratado nas sessões: “Eu quero que do pequeno grupo que está aqui que fale

pros outros que uma reunião dessa é importante” (Transcrição da 4a Sessão, 10 mar 2102). Relatam, preocupados e sofridos, sobre a forma como a sociedade os vê: “Nós somos

descriminados de todos os jeitos” (Transcrição da 3a

Sessão, 3 mar 2012), e a desconfiança e competição entre eles: “Agora o que acontece: um catador e outro catador, vamos fazer de

conta que eu estou nessa rua, mas quando eu dou de cara com o catador aí eu já pego no carrinho e vou na frente dele pra catar mais do que ele, então existe isso também”

(Transcrição da 3ª Sessão, 3 mar 2012).

O Diário de Campo da 5a Sessão pontua a repetição “Na forma de tratamento ao

catador que chega na Base, os jovens [que são criticados pela forma de tratamento

dispensada aos catadores] fazem como veem o Administrador fazer”. A agressividade manifesta entre os catadores é citada como motivo de estresse, mas usam os jovens auxiliares do Administrador para atingir o próprio Administrador.

Outras formas de resistências percebidas no grupo foram: dificuldade em chegar no horário marcado para iniciar as sessões; ausência nas sessões em que houve enfrentamentos sobre a forma de gestão da ASCAMPA; levar crianças (netos ou filhos pequenos) para a sessão – cuidando das crianças, estavam presentes, mas não se envolviam nas discussões; mal estar e medo diante de um catador que ocupa lugar de poder na Associação, aqui denominado de Administrador da Sede.

Algumas destas situações foram pontuadas ao longo das sessões, como o horário de início da sessão, conforme se observa nestes memoriais: “A primeira sessão estava prevista

Ghizoni, L. D. (2013) 142 para iniciar às 9h, entretanto, começou às 9h30, mesmo assim três catadores chegaram atrasados. Percebe-se que há algum tipo de dificuldade com o horário, o que será que isto representa?” (Memorial da 1a

Sessão, 04 fev 2012). “A sessão teve início as 9h05” (Memorial da 5a Sessão, 24 mar 2012).

Mesmo feitas estas pontuações, a princípio, com uma considerável melhora no horário de início, percebe-se outras duas questões relativas a tempo. Uma se refere aos catadores não terem uma organização temporal como a de outras categorias de trabalhadores. Há uma grande valorização, por parte dos catadores da ASCAMPA, da liberdade de horário, de trabalharem a hora que podem e querem: “Eu não gosto quando os outros fica controlando o

meu horário” (Transcrição da 3a

Sessão, 03 mar 2012).

A outra questão é das próprias clínicas-pesquisadoras, que, em alguns momentos, ficaram aguardando a chegada de mais catadores para dar início à sessão, tal como aconteceu neste encontro: “A sessão passada iniciou com um atraso de 45 minutos, havia uma

expectativa dos catadores e também das pesquisadoras acerca da presença do

[Administrador], porém ele não compareceu e nem avisou” (Memorial da 8a Sessão, 28 abr 2012).

Durante as primeiras sessões, os catadores repetiam um ideal muito próximo da demanda revelada na reunião inicial que era ter o galpão construído, o caminhão para transporte do material, o muro em volta do lote, a coleta seletiva implantada em toda a cidade e uma renda maior. Percebia-se a falta de um espaço para discussão e construção de novas regras de trabalho: “Eu sempre tenho este sonho da gente está junto e conseguir um galpão

para gente trabalhar todo mundo junto lá. Tirar pelos menos um final de semana para a gente se reunir dentro do nosso galpão para a gente conversar, vê o que está certo e o que não está” (Transcrição da 4a

Sessão, 10 mar 2012).

A falta de cooperação e de pensamento coletivo é pontuada no Memorial da 6a Sessão, repetido, mas, agora, como um elemento provocador de stress. “Porque muitas vezes a

pessoa tá estressada em casa, chega no galpão também agoniado, e as outras pessoas lá está agoniado e achando (...) então o estresse é pior. Aí né, em vez de um só ficar estressado, estressa todo mundo, né?” (Transcrição da 6a

Sessão, 31 mar 2012).

Na 6a Sessão, ainda é nítido a espera pelo futuro para a resolução dos problemas, das dificuldades em si, sobretudo da “falta de cooperação e de pensamento coletivo (união)” (Memorial da 6a Sessão, 31 mar 2012). Mas chama a atenção também a mudança do “outro” para a resolução dos seus problemas. Oscilam entre este “outro” ser Deus: “Então, assim, é

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[começo a] rezar, pedindo a Deus pra gente não desistir” (Transcrição da 4a Sessão, 10 mar 2012), e a Igreja, a Universidade, nós pesquisadoras, as empresas apoiadoras da causa da reciclagem e a Prefeitura: “Cobrar mais apoio da Prefeitura, cobrar da Coca-Cola, cobrar

(...). descaso da Prefeitura(...)” (Transcrição da 2a

Sessão, 25 fev 2012). E a crença de que o galpão a ser construído no novo terreno irá resolver todas as questões de relacionamento, cooperação, divisão de tarefas, questões financeiras: “(...) vamos adquirir um galpão grande,

um terreno, um galpão grande está entendendo? Todo mundo bota lá, todo mundo organiza o seu, todo mundo organiza seu material, emboca tudinho bota ali e vende no tempo, com um mês, 15 dias, 10 dias, vamos fazer assim, porque aí organiza” (Transcrição da 2a

Sessão, 25 fev 2012).

Como o trabalho é muito individualizado, acaba havendo sobrecarga, como esta pontuada como elemento provador de estresse: “Às vezes é muita coisa pra fazer e a gente

não dá conta pra fazer, também provoca o estresse. Às vezes a gente tem uma coisa pra resolver, não dá pra resolver já vai começa em outro, a gente nunca termina o que a gente está fazendo primeiro, né? Sempre fica um pouquinho pra trás, aí começa a surgir o estresse dessa maneira” (Transcrição da 6a

Sessão, 31 mar 2012).

Naquele momento, ainda persistia a espera pelo futuro para a resolução das suas dificuldades, acreditavam que com o galpão tudo iria mudar: as tarefas seriam dividas igualmente, e os catadores iriam participar e colaborar. Mas também havia percepção sobre o que estavam vivenciando: “Está havendo um desentendimento, porque cada um (..) não

entende o que é o coletivo” (Transcrição da 7a

Sessão, 14 abr 2012).

Buscou-se quebrar esta resistência nomeando o sintoma. Para tal, a clínica- pesquisadora começou a falar dos seus sentimentos em relação aos conteúdos manifestos nas sessões, através dos memoriais. “Eu fiquei aflita na sessão passada e um pouco agoniada...

pois muitas ideias boas foram ditas, mas ninguém se propôs a realizá-las de fato. (...) Sinto que há esperança entre os catadores que estão participando deste grupo, há o desejo que a atividade da catação seja diferente, que tenham mais condições de trabalhar” (Memorial da

2a Sessão, 25 fev 2012).

Falar da sua angústia em perceber que os catadores veem os problemas e as soluções, mas esperam a ajuda externa para a resolução, como se não tivessem capacidade de agir, ou ainda, que alimentam a esperança de que tudo mudará com a construção do galpão, foi pontuado via memorial. Foi igualmente pontuado o medo e a preocupação enquanto clínicas- pesquisadoras quanto a iniciarem as atividades neste espaço novo (e futuro) de maneira

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bagunçada, desorganizada, tal como vivem atualmente, para observar as elaborações subsequentes.

Diante destas exposições e da circulação da palavra nas sessões bem como com a transferência estabelecida, os catadores começavam a perceber que a força estava neles, no coletivo. Um catador sozinho pode ter várias limitações, mas aliando-se a outros, podem ser fortes para atingirem o que o grupo se propõe. “E as reuniões também, que aqui é tipo uma

reunião, a gente junta um grupo. É importante a gente trocar uma ideia. A gente discutir o que ta faltando, o que precisa, o que a gente deve fazer no nosso trabalho” (Transcrição da

4a Sessão, 10 mar 2012).

Atuando nas resistências, chega-se ao sofrimento, às angústias, aos medos, às dificuldades em lidar com as diferenças entre os catadores. Ao falarem disso, percebem que são humanos, que mesmo o que eles consideram forte também tem fraquezas; observam que há ritmos de trabalho diferentes no ofício de catador, e a escolha por horários de trabalho, tipos de materiais para coleta, ou forma de armazenamento são específicos de cada catador. Lidar com as pessoas, com os colegas de trabalho e suas peculiaridades torna-se o grande desafio do grupo: “Cada um trabalha de um jeito, cada um tem um jeito de trabalhar,

entendeu?” (Transcrição da 6a

Sessão, 31 mar 2012).

Neste caminho, elaboram seus conteúdos e perlaboram, num processo contínuo e constante de interpretação ao longo das sessões. Percebe-se que as histórias de vida são semelhantes no que tange à exclusão social; talvez por isso manifestem insegurança, medo de perder o espaço que conquistaram com a catação e a formação da ASCAMPA. Surgem relatos como medo de perder para “as pessoas de fora (...) os grandes [empresários do ramo da reciclagem]” (Transcrição da 5a Sessão, 24 mar 2012). Esta temática foi pontuada no Memorial da 5ª Sessão “Expressam também o sentimento de vulnerabilidade e impotência, já

que esses ‘grandes’, como dizem, ‘tem poder, tem dinheiro, tem tudo’” (Memorial da 5a

Sessão, 24 mar 2012).

Uma questão que perpassou várias sessões, mas sempre envolta em medo e resistência para falar era o problema com a balança. E esta representava um ponto central, pois é a partir das pesagens que os catadores recebem pelo que catam. Os catadores tinham duas balanças, uma digital, da qual eles reclamavam, pois não confiavam; e uma mecânica, antiga, da qual também reclamavam, pois achavam que não pesava corretamente embora houvesse muita relutância para admitir abertamente estas questões, pois, no fundo, a desconfiança estava com o colega catador que fazia esta atividade de pesagem: “(...) não quero confiar no cara da

Ghizoni, L. D. (2013) 145 desconfiar (...) se o cara está pesando direito, né? Porque não adianta roubar um quilo para mim que não vai adiantar nada. E não adianta também da o quilo para o catador porque o catador não vai dar nada para ele” (Transcrição da 5a

Sessão, 24 mar 2012).

A desconfiança vai cedendo lugar à confiança, que eles começam a perlaborar “E

também está tendo uma grande diferença, que é que nem você falou aí, desconfiança de todos os lados e nós só vamos confiar e acreditar um no outro quando estiver todo mundo unido, todo mundo lá pegando tudo numa coisa só, tudo numa direção só. Passar confiança de um para o outro” (Transcrição da 10a

Sessão, 26 mai 2012).

A coragem vai tomando lugar e percebe-se que, ao longo das sessões, os catadores mudam, saem da inércia, reclamam, falam, agem: “Sempre reclamo da balança e eu sou o

tipo daquela pessoa assim: se eu ver que está errado, eu corrijo na hora. Você acredita? Pode ser com [o Administrador], pode ser com [cita o nome de outro catador], pode ser com quem esteja lá. Se eu desconfiar, eu falo logo: não está certo, vamos fazer de novo, olha o quê que tem na balança” (Transcrição da 9a

Sessão, 05 mai 2012).

Na 9a Sessão, aconteceu o enfrentamento com o Administrador da Sede. Neste momento, com a ajuda do memorial, que pontuou as questões que os incomodavam, ditas na sessão anterior sem a presença do Administrador, os catadores venceram o medo e falaram, reconhecendo o trabalho do colega, mas sinalizando o que não estava correto: “Ele [o Administrador] gosta de trabalhar. Só que tem uma coisa dentro da Associação: a

administração não está certa, pois a gente vê que não está certa, não está clara”

(Transcrição da 9a Sessão, 5 mai 2012).

Com o suporte da supervisão, as clínicas-pesquisadoras vão pontuando os discursos justapostos, tais como as críticas à administração da ASCAMPA e a necessidade de mudarem a forma como vem acontecendo, sendo que para tal, os catadores precisam se mobilizar, quebrando as resistências. Observar o crescimento do grupo é motivo de comemoração para as clínicas-pesquisadores, como se observa neste diário de campo: “Eu sai da sessão com

muito orgulho deles terem falado de coisas ainda não ditas, sobretudo do medo, da relação com [o Administrador], da necessidade de se organizarem enquanto um coletivo, de organizarem a rotina de trabalho dentro da associação, e pelo visto já começarem a articular algo... pois pela primeira vez continuaram debatendo as suas questões profissionais sozinhos” (Diário de Campo da 7a

Sessão, 14 abr 2012).

A transferência entre os membros do grupo vai acontecendo e os catadores começam a fazer reuniões após a Clínica do Trabalho, para tratarem das questões que gostariam de mudar na ASCAMPA. Assim, instituem um coletivo gestor composto de 4 catadores, que

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começa a atuar em maio de 2012. Na sessão subsequente relatam: “Nós fizemos uma mini

reunião lá (...). Tem [administração] só que ela hoje é falha, não porque a pessoa é relapsa, é porque a pessoa não tem experiência também na parte contábil. É onde a organização se torna falha. (...) que nem a gente estava conversando ontem, falta a gente fazer o movimento de caixa, fazer uma planilha de custo...” (Transcrição da 10a

Sessão, 26 mai 2012).

São várias as situações geradoras de sofrimento: estresse no relacionamento entre os catadores, falta de reconhecimento e valorização da ocupação de catador na sociedade, falta de apoio do Poder Público e de reconhecimento do trabalho de limpeza urbana que os catadores fazem. Mas o real na interpretação do Coletivo de clínicos é a forma de administração centralizada e sem transparência da Associação. Assim, era necessário que os catadores nomeassem este sintoma, sobretudo desvinculando-o do medo de perder a amizade do Administrador. Isto acontece, inicialmente, na ausência do Administrador, mas, depois, se assumem diante dele. Contudo, neste momento, ainda havia contradição, parecia haver reconhecimento da fragilidade do Administrador e medo dele diante deste movimento do coletivo de catadores. Coube às clínicas acolherem estes medos e as dores do grupo que ali já estava constituído.

Percebe-se uma apropriação da situação: “Então eu falei para eles [refere-se aos demais catadores]: ‘Nós é que estamos lá dentro’. Somos associados, o restante talvez entre

na Associação. Mas ai vai ter que seguir as regras que foram impostas a partir dessa organização que nós estamos tentando fazer” (Transcrição da 10a

Sessão, 26 mai 2012). É destaque o Memorial da 11a Sessão, discutido no início da última sessão, onde se pontua os avanços do coletivo de catadores, a começar pelo local da Sessão: “Hoje é um dia

muito significativo, pois é a primeira sessão a ser feita na Sede da ASCAMPA e também a nossa última sessão, embora não o último encontro (...)” (Memorial da 11a

Sessão, 02 jun 2012). Cita-se, ao longo deste Memorial, as percepções do Coletivo de clínicos sobre os avanços do grupo: “Percebemos a coragem e o entusiasmo dando lugar ao medo de falar e

agir. (...) os catadores afirmaram que a principal mudança observada foi na organização para pesagem e o respeito com o catador que chega na Sede” (Memorial da 11a Sessão, 02 jun 2012). Pontuou-se a finalização de um ciclo, mas também a necessidade de continuidade do grupo, sobretudo “a importância de um catador ajudar o outro, cuidar do outro, confiar

no outro. Assim como a importância do aprendizado um com o outro, embora ainda estejam muito focados que só [o Administrador] sabe, mas afirmam que estão se esforçando para aprender a negociar, a vender, a comprar, a fazer os controles financeiros de forma geral”

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