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A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DOS MORTOS NA ENEIDA

O Canto VI é tido como um dos momentos mais importantes dentro da narrativa da Eneida. Alguns o apresentam como a transição entre a parte da Odisseia e a Ilíada na epopeia romana (ANDERSON, 1963, p.2). Compondo a primeira parte como a viagem de Enéias pelo mar Mediterrâneo e a segunda parte correspondente à guerra no Lácio pela conquista e fundação da nova Troia. O Canto VI, dentro da narrativa do épico, apresenta a descida do herói troiano ao Orco, espaço destinado aos mortos, para conversar com seu pai, Anquises. Nesse mundo dos mortos Eneias percorre diferentes espaços, encontra companheiros de guerra, criaturas mitológicas e Dido, a mulher que morreu por não ter o amor do futuro romano. A análise dos 901 versos que compõem esse momento da narrativa traz à luz diversos elementos da cultura funerária romana, tanto seus ritos quanto a imagem criada de seus mortos. Portanto, o presente capítulo irá discorrer acerca do mundo dos mortos narrados no Canto VI da Eneida e sua descrição dos espaços experienciados por Eneias. Para tanto, devemos compreender alguns conceitos acerca da religião romana. Quais as funções da religião no meio cultural e político no século I a.C.? Como o culto aos mortos era visto, e realizado, nesse período? Para além disso, devemos nos debruçar sobre questões referentes ao espaço narrativo-imaginário criado por Virgílio ao narrar esse espaço dos mortos. Como e quais as razões para descrever dessa maneira o além-vida? Por que alguns espaços fogem do aspecto comum dentro de todo o ambiente chamado de Orco? Quem deve andar por essas terras? Tais questões serão debatidas ao longo do capítulo e dividido em tópicos para uma melhor organização das ideias e, ao fim, buscaremos uma síntese na qual os conceitos devem convergir.

3.1 – Sobre a morte, a religião e os ritos funerários na Roma Antiga

Primeiramente devemos nos aprofundar na religião, nos ritos funerários e no papel do morto dentro da lógica da sociedade romana. Ao observamos as práticas religiosas romanas nos deparamos com algumas dificuldades, algumas de natureza anacrônica, pois o termo “religião” nos remete, geralmente, a ideias próprias do cristianismo (uma vez que estamos inseridos em um país cuja principal religião é de matriz cristã). Se nos debruçarmos sobre o termo, poderemos remontar sua etimologia com a palavra religare, que em latim tem o significado de religar, reconectar-se. Nesse sentido, a religião tem como principal meta conectar os homens aos deuses. Entretanto, como

nos alerta John Scheid, não costumamos pensar em uma religião sem um livro sagrado, um código de conduta ou mesmo um profeta. (SCHEID, 2003, p.18). Partindo dessa percepção, os preceitos da religião romana no século I a.C. mostram-se bem característicos e distintos de nossa experiência atual.

Talvez a principal característica dentro da religião romana sejam os ritos. A forte presença de rituais faz com que os estudiosos a caracterizem como uma religião ritualística, na qual a prática e execução destes ritos tornam-se tão importantes quanto a função à qual estes foram designados. Para os romanos suas obrigações religiosas definiam-se a partir do seu status social. Devido a essa característica é comum a expressão “religiões romanas”, no plural, pois sua prática estava condicionada ao grupo ao qual se pertencia (SCHEID, 2003, p.19). Tal expressão também é o título de um dos mais renomados estudos sobre a religião romana, dos historiadores Mary Beard, John North e Simon Price (2005).

Percebemos, a partir desses elementos, que a religião romana é, antes de tudo, uma forma de relação social. A experiência religiosa, nesse caso, se passa muito mais pelo âmbito coletivo do que necessariamente pela vivência do indivíduo. Isso significa dizer que não havia experiências individuais dentro dos ritos romanos? Não. Apenas deixamos em evidência tal característica. Também deve-se destacar o caráter político da religião romana. Devemos entender que para o horizonte de expectativa do Principado romano não há como separar a religião da política. Otávio, o princeps, torna-se Augusto em 27 a.C., um título religioso de alta patente dentro da lógica romana. Em outro exemplo, podemos perceber a divinização de imperadores e grandes nomes da história romana, o que nos dá mais uma evidência da forte relação entre esses dois aspectos da complexa estrutura social de Roma. Não por acaso, segundo a análise de Mary Beard no livro Religions of Rome, as contendas políticas envolviam, em vários casos, também acusações acerca dos deveres para com os deuses. A historiadora usa como exemplo dessas disputas o caso de Cícero e Catilina, em que Cícero invoca o Deus Júpiter como parte de sua argumentação contra o seu opositor (BEARD,2005,138-139). Desse modo, podemos perceber que a religião está intrinsecamente ligada à política no contexto romano, sendo a religião usada muitas vezes como arma de controle na esfera pública e política. (BEARD, 2005, p. 139)

Politeísta, a religião romana é marcada pela “adoção” de deuses estrangeiros. Em seu panteão misturam-se diversos deuses e mitologias. Essa flexibilidade ao culto de diversos deuses nos mostra uma diversidade apresentada ao longo do Império Romano, uma vez que se anexa ao

seu território diversos territórios conquistados, tanto ocidentais e orientais. Tal característica garantia a liberdade de culto aos seus cidadãos, que se chama um “modelo de religião cívica” (SCHEID, 2003, p. 21). Esse termo, utilizado por Scheid, descreve e resume as práticas religiosas romanas (e também gregas, uma vez que este termo também é utilizado no contexto heleno). Em síntese, o que temos: uma religião ritualística, comunitária e pouco individualista, na qual seus praticantes tinham liberdade de cultuar seus deuses e seguir seus ritos e deveres, sem um livro para conduta moral específica.

Segundo Beard, as obras de Virgílio, junto com as de Horácio e Propércio, configuram entre as mais recorrentes no que concerne à religião romana (BEARD, 1998, p.169). Ao nos debruçarmos sobre a Eneida percebemos que Virgílio utiliza a religião e a mitologia greco-romana para narrar as aventuras de Eneias, fazendo os mitos e crenças romanas como recursos narrativos ao longo do épico. No Canto VI, em especial, notamos a vasta utilização deste recurso. A narrativa do mito de fundação da cidade de Roma, nesse ponto, liga-se à história política do Principado romano quando Eneias encontra-se, no Orco, com Otávio Augusto51. Vale ressaltar a restauração feita pelo princeps Otávio Augusto durante o seu governo. Como já citado acima, durante a República Tardia a religião romana apresenta, no mínimo, algumas dificuldades. O epicurismo, corrente filosófica nascida na Grécia, percorria as bibliotecas particulares romanas e, no século I a.C., lançava-se como uma das principais correntes filosóficas da República junto com o estoicismo. Lucrécio fora o principal filosofo epicurista em Roma e sua obra De rerum natura buscava questionar a prática religiosa de sua época. Conhecido por seu materialismo, o epicurismo buscava “secularizar” as práticas sociais, apresentando uma lógica mais física e menos espirituais para questões existenciais. Ángel Escobar destaca que Cícero, em seu livro “A natureza dos deuses”, questiona e vai de encontro à visão epicurista de Lucrécio, caracterizando um debate de ideias nos centros da elite romana (ESCOBAR, 2008, p.18).

Segundo Beard, durante o século I a.C. a religião romana passa por algumas transformações, se especializa e torna-se mais complexa (BEARD, 1998, p. 149). É possível que essa complexidade seja uma resposta às críticas de Lucrécio e dos epicuristas, entretanto a explicação mais aceita vem ao analisar a própria sociedade romana: uma vez que a mesma começa a crescer, tanto em número de cidadãos quanto de novos territórios, com disputas internas e uma

51 O capítulo IV debruça-se sobre este encontro e analisa os versos em questão. Visto isso, nos reservamos nesse

momento a apenas a citar a narrativa para entendermos as ligações entre a religião e a política no contexto do século I a.C. e na Eneida.

intensa instabilidade política, mostra-se necessária uma adaptação da religião para o novo cenário posto. Sobre as mudanças ocorridas na religião romana no século I a.C. Beard ainda apresenta outro ponto para refletirmos: a partir da chegada de Otávio ao poder se tem uma reforma religiosa que busca restaurar cultos e templos, de maneira parecida a que Augusto faria restaurando a res pública (BEARD, 1998, 168). Apesar disto, percebe-se que as reformas de Augusto criam e revitalizam uma religião que estava sendo questionada, pelo menos no campo filosófico. Cria-se, por exemplo, ritos e cultos para o imperador, assim como sua divinização, em vida ou em morte (BEARD, 1998, p. 169). Dessa maneira, Augusto não apenas fortalece a posição do imperador perante a política e religião em Roma, mas também apresenta uma saída para os embates religiosos do período.

Voltando às fontes do governo de Augusto, parece razoável apontar que as reformas implementadas pelo princeps tiveram resultado, pelo menos nos meios intelectuais. As obras de Públio Ovídio Nasão, por exemplo, dedicam-se quase que exclusivamente a narrativas mitológicas e de cunho religioso52. Os fastos, fasti, obra ao qual dedica-se a criação de um calendário romano a partir das celebrações, festivais e cultos, é notável que os ritos e práticas religiosas permeavam o cotidiano romano. Dentre elas, destacamos três festivais em específico, uma vez que tratam diretamente sobre o culto aos mortos e nos ajudarão a entender o lugar do morto dentro do horizonte de expectativa romano: a parentalia, a feralia e as lemúrias.

A parentalia e a feralia eram festivais que ocorriam entre os dias 13 a 21 de fevereiro e tinham por objetivo honrar os manes dos antepassados na forma de oferendas. Ovídio escreve:

Est honor et tumulis, animas placare paternas, paruaque in exstructas munera ferre pyras. Parua petunt manes: pietas pro diuite grata est munere;non auidos Styx habet ima deos. Tegula porrectis satis est uelata coronis et sparsae fruges parcaque mica salis,

inque mero mollita Ceres uiolaeque umbra est.

Honram-se as tumbas, co’o aplacar das pátrias almas, empilhando nas piras parcos dons.

Os manes pedem pouco: a piedade é o mais grato; O Estige não possui ávidos deuses.

Bastam aos mortos uma lápide coroada, Alguma fruta, poucos grãos de sal,

52 Aqui nos referimos mais explicitamente às obras “Metamorfose” e “Fastos”. Em ambas se apresenta o contexto

religioso e mitológico que permeia os ritos e cultos. Entretanto, não excluímos o fato de Ovídio ter escrito sobre outros assuntos como, por exemplo, “a arte de amar”.

Ceres amolecida em vinho e u’as violetas.53

(OVÍDIO, fastos, livro II v.533 – 539)

Nos versos acima Ovídio enfatiza a necessidade da honra fúnebre aos manes. Ao falar que “os manes pedem pouco” (Parua petunt manes) nota-se que o principal pedido não é algo material, mas a pietas¸ virtude tão destacada em Eneias ao longo de Eneida. Outra referência ao épico de Virgílio aparece de forma cristalina na passagem destacada. Ao citar o rio Estige como não possuidor de “deuses ávidos” remete-se ao episódio de Caronte e à travessia dos mortos para o outro lado do rio: o barqueiro só deixa embarcar as almas dos mortos que tiveram seus ritos funerários bem executados54. No mais, Ovídio lista uma série de oferendas que aplacam os manes, que provavelmente era depositada junto das lápides. Segundo Jocelyn Mary Catherine Toynbee, a parentalia era um culto doméstico, reservado apenas aos familiares do morto (TOYNBEE, 1971, p. 63). No último dia de celebração ocorriam cerimônias públicas que representavam a feralia. Nestes dias, segundo Ovídio, os casamentos estavam proibidos e os templos fechados. Seguem os versos:

Dum tamen haec fiunt, uiduae cessate puellae: exspectet puros pinea taeda dies,

nec tibi, quae cupidae matura uidebere matri comat uirgineas hasta recurua comas [...]

Di quoque templorum foribus celentur opertis. ture uacent arae stentque sine igne foci. Nunc animae tênues et corpora functa sepulcris errant, nunc posito pascitur umbra cibo. [...]

Hanc, quia iusta ferunt, dixere Feralia lucem; ultima placandis manibus illa dies

Durante as Parentais, aguardai, viúvas moças, Que a pínea tocha espere os puros dias. Nem tu, que a mãe desejará já ver madura, Prendas co’haste recurva a casta coma. [...]

Também aos deuses os portões do templo cubram, No altar não tenha incenso ou fogo aceso.

As tênues almas e os defuntos corpos erram, E agora u’a sombra come as oferendas. [...]

Por conferir o justo, é Feral dito o dia

53utilizamos para a análise dos trechos referentes ao Fastos a tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior.

54 A análise da referida passagem encontra-se no tópico 3.3, quando analisamos a narrativa de Virgílio e a descrição

Ultimo dia p’ra aplacar os manes (OVÍDIO, fastos, livro II, v. 557 – 570).

É possível notar nos versos acima o respeito para as oferendas dos mortos: nos dias de celebração, aos quais as almas estariam “errantes” e comendo suas oferendas nenhuma atividade dentro dos templos poderia ser realizada. Por fim, fala-se da Feralia como o último dia, ou última chance, de aplacar os manes. É interessante perceber que a festividade é uma data oficial, celebrada de forma anual e suas origens, segundo Ovídio, remontam a Eneias55. Marca-se, mais uma vez, a influência da obra de Virgílio dentro dos seus contemporâneos, tornando Eneias um personagem fundamental no imaginário romano. Devemos atentar que a figura de Eneias precede o poeta latino, porém, com a Eneida este ganha notoriedade dentro da mitologia romana, tendo agora uma relação direta com a fundação do povo romano.

Ainda sobre a parentalia e a feralia, Toynbee chama atenção para o fato de que esses dias de celebração seriam dies religiosi. É Interessante perceber que o uso da palavra religiosi assemelha-se ao significado que Scheid atribui ao termo quando se trata da religião romana: para o historiador, o termo “Religiosus” designa objetos e lugares marcados pela morte. Neste caso específico, as tumbas (SCHEID, 2003, p. 25). Dessa maneira, a morte objetiva o uso da religião, assim como os cultos e ritos funerários. Para uma religião ritualística e com caráter profundamente prático como a dos antigos romanos, a demarcação desses espaços com lápides e tumbas possivelmente estreitariam a relação com os mortos.

Outra festividade dedicada aos mortos que consta nos fastos são as Lemúrias. Ovídio demarca essas celebrações nos dias 9, 11 e 13 de maio, dias estes dedicados ao sacrifício aos “mudos manes”( OVÍDIO, fastos, Livro V, v.422.) ou, como escreve Regina Maria Bustamante, os mortos malfazejos (BUSTAMANTE, 2014, p.109 - 128). Mas quem seriam esses mortos? Segundo a tradição romana, chamavam-se lêmures os espíritos que não tiveram os ritos funerários adequados. Estes continuariam a vagar e a “assombrar” os vivos. Um exemplo desse medo dos mortos malfazejos apresenta-se na peça “história de fantasmas” escrita por Plauto, no século II a.C. Nela, após perder sua casa numa aposta, o filho conta ao pai que a casa está assombrada e por isso não pode entrar nem dormir na habitação (PLAUTO, mostellaria, ato II, 450 – 525).

Segundo Ovídio, a celebração das lemúrias é muito antiga, tão antiga que o mesmo não se recorda a razão dos mortos malfazejos chamarem-se assim (OVÍDIO, fastos, livro V, v. 445 – 446).

Ao final do verso 446 o poeta afirma que a origem do nome lemúria será revelada por algum deus, o que mostra um traço narrativo metodológico, no qual a verdade está pautada pela palavra do divino, pois os deuses tudo sabem uma vez que viveram em todos os períodos da história56. Nas lemúrias um importante rito doméstico é realizado, ao qual o pater famílias deve acalmar essas almas atormentadas. Ovídio descreve o rito da seguinte maneira:

Nox ubi iam media est somnoque silentia praebet et canis et uariae conticuistis aues,

Ille memor ueteris ritus timidusque deorum surgit (habent gemini uincula nulla pedes), signaque dat digitis médio cum pollice iunctis, occurrat tácito ne leuis umbra sibi.

Cumque manus puras Fontana perluit unda, uertitur et nigras accipit ante fabas,

auersusque iacit; sed dum iacit, ‘Haec ego mitto, his’ inquit ‘redimo meque meosque fabis.’ Hoc nouies dicit nec respicit: umbra putatur colligere et nullo terga uidente sequi

Rursus aquam tangit, temesaeaque concrepat aera, et rogat ut tectis exeat umbra suis.

Cum dixit nouies ‘manes exite paterni’ respicit, et purê sacra peracta putat.

À meia noite, quando o sono dá o silêncio E os cães e os vários pássaros se calam, O homem que os deuses teme e cumpre

Os velhos ritos levanta-se, traz nus os gêmeos pés. Juntando o dedo médio ao polegar, dá estalos, P’ra que nenhuma sombra lhe apareça.

Quando, na água da pura fonte as mãos perlava, Vira-se, apanha adiante negras favas,

Joga-as p’ra trás, mas antes diz:

“Eu as espalho, e pelas favas me redimo, e aos meus Nove vezes repete e não se volta: o espectro As recolhe e, invisível, o acompanha.

De novo, n’água, o homem se lava: soa o bronze E roga de sua casa saia o espectro.

Nove vezes repete: “ide, manes paternos”. Olha em volta e reputa o pronto rito.” (OVÍDIO, fastos, livro V, v.429 – 444)

Pode-se notar com essa descrição algumas características que se ligam aos mortos no imaginário romano. A primeira delas é o sentido de purificação que existe ao realizar os ritos. As libações eram comuns na religião romana e configurava como um dos ritos necessários aos mortos. Além do cuidado em purificar-se, o pater família deveria proteger-se também das sombras, uma

clara indicação dos receios dos vivos para com os lêmures que precisavam ser apaziguados. Outro aspecto interessante no rito é a necessidade de redimir-se. Ao falar que “que pelas favas eu me redimo”, podemos pensar que as lemurias são, para além de uma apaziguamento, uma forma de redenção dos vivos com os mortos que não tiveram as práticas funerárias bem executadas. Esse “acerto de contas” faria esses espíritos malfazejos ficarem silenciados por mais um ano. O rito finaliza-se com o pater família lavando-se mais uma vez, o que podemos interpretar como o fechamento de um ciclo e a garantia de não carregar nenhuma impureza após o ato cerimonial.

As descrições feitas por Ovídio nos fazem pensar sobre a importância destas festividades e o local do morto dentro da sociedade romana. É notável que as cerimônias têm um caráter de relembrar e homenagear os antepassados, como no caso das parentalias e feralias. Todavia, os ritos apresentam também um caráter simbólico e constroem no imaginário romano57 um mundo permeado pelos espíritos dos mortos, uns com conotação positiva e, como numa outra face de uma moeda, com um elemento negativo. Ademais, também podemos traçar uma relação entre o rito bem executado e o morto em sua vida após a morte, como veremos mais adiante nesse capítulo. Ovídio também reforça a ancestralidade desses elementos quando alega não se lembrar desde quando começaram essas festividades. Franz Cumont em seu livro “After life in Roman Paganism” aponta que o culto na tumba era praticado de forma universal na extensão do Império Romano (CUMONT, 1922, p.57). Visto isso, nos cabe refletir sobre a função destes ritos e celebrações, tanto para os vivos como para os mortos, uma vez que, se imaginarmos a extensão do Império Romano e sua diversidade, é de extrema relevância o que assinala Cumont. Para isso, devemos nos debruçar um pouco sobre a ideia do rito. O que, de fato, o constitui? Quais são e o que fazem?

Primeiramente, devemos compreender que ao falarmos de ritos abrangemos um assunto vasto e que vem sendo discutido desde o século XIX, tendo assim diversas teorias e abordagens distintas para o assunto. Dessa maneira, não será nosso intuito nesse espaço levantar um debate amplo sobre as diversas teorias acerca dos ritos, nem muito menos definir uma discussão que se estende a quase dois séculos. Em contrapartida, se faz necessário apresentar alguns aspectos teóricos relevantes acerca dos ritos para nossa análise e fazer relações com a prática funerária romana, buscando assim uma forma de compreender o fenômeno dos rituais enquanto uma prática não só religiosa, mas também social.

57 Ao usarmos a palavra “imaginário” estamos nos referindo a toda estrutura cultural que se forma, tanto de maneira