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CAPÍTULO I: VIRGÍLIO: UM HOMEM E O SEU TEMPO

1.1.1 Os caminhos de um poeta

A trajetória intelectual de Virgílio nos é tão difícil de precisar quanto outros detalhes de sua vida. As informações não são claras e por muitas vezes inexistentes, o que torna nosso trabalho mais aberto aos equívocos e erros. Ainda assim, buscaremos reconstruir pelo menos o que, segundo as fontes e a historiografia, nos parece algo possível no caminho do poeta. Sobre as imprecisões, Pierre Grimal, por exemplo, nos apresenta que alguns biógrafos colocam Virgílio como discípulo de Epídio, um retórico que ensinava em Roma, e que este teve como condiscípulo o jovem Otávio (GRIMAL, 1992, p. 37). Porém, o historiador mostra que seria praticamente impossível que ambos

15 Quando afirmamos que os últimos versos da Eneida não são tão grandiosos quanto sua narrativa, queremos

apresentar que o desfecho da saga de Eneias não deveria ser fechado com o seu duelo contra turno, mas sim, como previsto nos Cantos anteriores, com a fundação do que iria ser Roma.

fossem alunos do mesmo mestre, no mesmo período, visto a diferença de idade (enquanto Virgílio estaria na casa dos vinte e dois anos, o futuro princeps estaria com apenas treze). Esses detalhes devem ser percebidos e refletidos para que não incorremos em erros que notadamente poderiam ser evitados. O que não exclui, outrora, a possibilidade de Virgílio e Otávio terem sido apresentados nesse período, mas por outras vias ou pessoas.

O fato de Virgílio e Otávio se conhecerem e terem como mestre Epídio pode não ter ocorrido, entretanto, a informação de que Virgílio teve contato com o retórico não nos parece incorreta. O fato de ter grandes homens ao seu redor nesse período também é uma afirmativa plausível, uma vez que a formação intelectual se passava em conjunto. Um exemplo disso é a amizade criada por Virgílio e Coruiniuis Messala16 nesse período em Roma. Segundo Grimal, essa amizade é sugerida pelo fato de Virgílio ter-lhe dedicado o poema intitulado Ciris (GRIMAL, 1992, p. 38). Devemos notar, portanto, que a origem social de um romano não tinha uma relação direta ou era determinante dentro dessas relações ou círculos intelectuais. Virgílio, advindo de uma família provinciana, teria tido uma oportunidade similar a ascender dentro da estrutura romana tal qual personagens nascidos em berços de ouro. Apesar disso, pelo que podemos perceber ao analisar sua vida, ocupar grandes cargos na sociedade romana nunca fora seu objetivo principal. Segundo Grimal, Virgílio só sentia gosto pela vida do espírito: estudo das leis que governam o universo, descoberta do espetáculo oferecido pelo mundo, busca da serenidade interior e, no fundo de si mesmo, um amor irresistível pela poesia (GRIMAL, 1992, p. 39).

Entretanto, o que se estudava no século I a.C.? Essa, sem dúvida, é uma pergunta vasta e que, certamente, não conseguiremos abordar em sua plenitude aqui. Mais interessante do que saber o que se poderia estudar nesse período é entender o que provavelmente interessaria ao nosso ilustre poeta. Naturalmente, visto as características apresentadas até aqui, podemos aferir que seu interesse se voltava, como já dito, às ciências mais internas. Dentre elas, a filosofia, certamente, foi um de seus maiores interesses. Muito se discute sobre as inclinações filosóficas de Virgílio em suas obras, entretanto, colocar o poeta em uma “caixa filosófica” mostra-se uma tarefa árdua, visto a diversidade de referências que podemos encontrar em suas obras.17 Apesar disso, podemos aferir

16 Marcus Valerius Messalla Coruiniuis (64 a.C. – 13 d.C.): foi um político, militar, orador, poeta, gramático e patrono

dos poetas durante o governo de Otávio Augusto (REZENDE, Antônio Martinez de, TACITO. Diálogo dos oradores, 2014 p. 129, nota 55)

17 Para exemplificar a capacidade do poeta em articular e combinar diversos conhecimentos, no capítulo IV abordamos

como a doutrina órfica, oriunda da Grécia do século VI a.C., aparece e costura a narrativa do Canto VI. Junto a isso, podemos perceber ideias como a da imortalidade da alma, de Platão, presente em toda construção narrativa da Eneida.

com uma boa margem de certeza que Virgílio teve contato e foi um estudioso de algumas correntes filosóficas de sua época. Dentre elas, a mais conhecida, talvez, tenha sido o epicurismo, o que não implica dizer, obviamente, que Virgílio tenha sido um epicurista.

Não temos uma data precisa de quando ocorreu o contato de Virgílio com a doutrina de Epicuro. Pierre Grimal, mais uma vez, busca afirmar que esse contato tenha ocorrido antes de 49 a.C., porém, o próprio historiador afirma que essa data não é muito confiável (GRIMAL, 1992, p.40). Mesmo assim, certamente em um período próximo o poeta foi para Nápoles e encontrou-se com Sirão para aprender sobre o epicurismo. Sabemos que o epicurismo, nesse período, era difundido nos círculos intelectuais romanos. Lucrécio, um dos mais famosos epicuristas de Roma, apresentava seu livro De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Suas ideias devem ter sido bem difundidas na época, uma vez que Cícero escreveu um livro (Da natureza dos Deuses) contestando algumas de suas ideias.18

Um outro ponto entre o epicurismo praticado em Roma era o de que, em tese, a doutrina não aconselhava o envolvimento político de seus discípulos. Segundo Grimal:

O epicurismo não implicava nenhum compromisso político, e não se pode pensar que alguma vez tenha constituído um “partido”. Isto teria sido, aliais, contrário ao espírito da doutrina, que, diferentemente do estoicismo, aconselhava a não se participar da vida da cidade, pois, dizia Epicuro, se nos imiscuirmos na competição política, se disputarmos as magistraturas ou, de modo mais geral, se nos ocuparmos com assuntos públicos, não deixaremos de expor-nos ao ódio dos rivais que encontramos e dos cidadãos cujos interesses não favorecemos (GRIMAL, 1992, p. 44-45).

O trecho acima nos permite pensar em mais um motivo de atração entre a doutrina filosófica e Virgílio. Bem sabemos, nesse caso pela ausência de informação em sua biografia escrita por Suetônio, que o poeta não buscou, de forma direta, exercer cargos políticos em Roma. Mesmo ligado a pessoas de poder, até mesmo o princeps¸ Virgílio não teve inclinações dessa natureza. Talvez tenha sido esse mais um fator positivo em que o epicurismo possa ter agregado a vida de Virgílio: uma resposta ou posição ao qual a sua personalidade introspectiva tenha apreciado. Grimal nos aponta também, em outra passagem, uma relação interessante entre as Bucólicas e o período em que a série de elegias foram escritas e sua postura filosófica:

Pouco importam outros ensaios, eis que as bucólicas o ocupam inteiramente; compõem- nas, dizem os comentadores antigos, entre 42 e 38 ou 38, ou seja, durante o período

18 Abordaremos esse assunto mais a frente, no capítulo III, ao falarmos sobre a relação entre as ideias difundidas em

conturbado de que falamos. Mas seria absurdo acreditar que as tenha escrito para obter uma notoriedade capaz de protege-lo contra os confiscos. Na realidade, ele encontrou, nessa poesia da terra, um modo de expressão que satisfazia nele o que há de mais profundo: o amor pela vida rústica, que lhe parece trazer toda felicidade à qual os homens podem aspirar e, ao mesmo tempo, graças à sua experiência epicurista, a convicção de que essa vida no campo realiza os imperativos da filosofia que Sirão lhe ensinou (GRIMAL, 1992, p.57).

O período demarcado pelo historiador são as disputas políticas entre Otávio e Marco Antônio, ao qual falaremos mais adiante. O que nos chama atenção aqui é a posição que Grimal coloca para Virgílio, na qual busca na poesia uma forma de expressão de suas convicções filosóficas frente ao mundo. Também nos chama atenção a relação de dualidade que se apresenta entre os escritos do poeta e sua época. Enquanto um busca a paz e tranquilidade, relatando a vida simples e rústica do campo, o outro é marcado por diversas guerras e conflitos, sendo oposto à poesia de Virgílio. Essa calma e posicionamento frente à vida é uma marca em sua escrita não por acaso, como alerta Grimal, mas sim uma resposta que encontrou nos ensinamentos epicuristas de Sirão e que o acompanharão em sua jornada.

Devemos salientar, porém, que o fato de Virgílio não ter ambições para com a vida pública, no sentido de obter cargos e participar ativamente da política romana, não significa dizer que não era um homem político, uma vez que sua área de atuação estava na poesia e não no Senado. Sabemos que a maioria das suas obras foram dedicadas a grandes personagens da política romana, não apenas a Otávio Augusto. Sua relação com Gaius Asinius Pollio19, por exemplo, mostra que apesar de não buscar uma ascensão política, Virgílio estava cercado de homens poderosos e que, certamente, exerceram influências múltiplas dentro de suas esferas. Devido a essas relações, podemos aferir que o poeta foi um homem político, mesmo sem exercer diretamente cargos dessa natureza. Essa relação entre Virgílio e as grandes figuras da sociedade romana lhe rendeu, como bem sabemos, várias críticas quanto a sua obra: a historiografia por muito tempo não lhe poupou da imagem de uma propagandista, um “mercenário” a serviço do princeps Otávio Augusto e que a Eneida não seria nada mais que uma mera forma de legitimar o poder do herdeiro de Júlio César20. Entretanto, trataremos desse assunto mais à frente. Por hora, devemos nos deter a entender que a formação intelectual do mantuniano talvez tenha causado sobre ele mudanças na sua forma de pensar, posições acerca de sua visão de mundo e cultura, assim como a interação com outros poetas,

19 Servidor nos exércitos de César, exerceu papel na administração da província da Gália Cisalpina entre os anos de 43

a 40 a.C. Virgílio dedicou-lhe a quarta e oitava éclogas das Bucólicas

20 Atualmente muitas pesquisas superaram esse lugar comum de apresentar Virgílio como um indivíduo passivo, o que

políticos e intelectuais de sua época, colocaram Virgílio em uma situação favorável e de prestígio, absorvendo e devolvendo ao mundo romano aquilo que lhe coube.

Acerca da formação intelectual do poeta, podemos pensar que em larga escala ela se fez sobre autores e filosofias gregas. Suas leituras, como conseguimos ver, não se limitaram apenas ao campo da poesia, nem das epopeias homéricas, o que, no século I a.C., apresenta-se como comum dentro da formação intelectual desses homens.21 No caso de Virgílio, já na antiguidade, alguns de seus contemporâneos não viram sua inspiração em Homero com bons olhos. Suetônio nos apresenta que após a morte do poeta, em 19 a.C., muitos dos seus críticos o acusaram de copiar o poeta grego em sua narrativa épica (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 43-45). A situação parece plausível, uma vez que o biógrafo apresenta o nome dos detratores e as críticas aos quais eles submeteram o poeta. Também apresenta um livro intitulado “contra os detratores de Virgílio”, escrito por Asconio Pediano, no qual o autor sai em defesa do autor da Eneida (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 46). Vale salientar que essa discussão foi alimentada (talvez ainda seja) até a metade do século XX.

Apesar de nos dias atuais a historiografia defender a originalidade da Eneida, é um lugar comum falar na demasiada semelhança entre a obra de Virgílio e as epopeias gregas. Francis Cairns, em seu livro Virgil’s Augustan Epic (1989) trata bem essa relação entre as obras homéricas e a Eneida, partindo de semelhanças de temas, estrutura narrativa e, por fim, sua finalidade dentro da sociedade romana. Apesar de grandes semelhanças, o autor deixa claro a originalidade da obra, dando à epopeia de Virgílio um sopro de autenticidade. Cairns não é o primeiro nem o último a fazer tais comparações, entretanto, o fato em si não é, necessariamente, surpreendente. Podemos considerar como um fato previsível e, na verdade, apresenta-se até como esperado que exista críticos e comentadores de grandes obras. Todavia, o que nos chama atenção e nos leva a refletir é o quão imerso na cultura grega Virgílio esteve para receber tal crítica, da antiguidade até os dias atuais.

Torna-se, assim, mais interessante perceber, como veremos no capítulo seguinte, a absorção e transformação dessa cultura grega em uma forma romana. Portanto, percebemos, a partir das críticas, o valor e peso da filosofia e arte grega na formação intelectual dos círculos que Virgílio fez parte.22Já vimos que Virgílio travou contato com o epicurismo, mas devemos compreender que

21 No capítulo II dessa dissertação, ao comentar sobre a tradição literária da Eneida, aprofundamos acerca desse

assunto.

22 Podemos pensar, por exemplo, que algumas obras latinas foram escritas em grego, como é o caso do livro meditações

outras doutrinas e pensamentos filosóficos permearam seus estudos, visto a complexidade e conhecimento do autor da Eneida sobre a mitologia e sua construção, no canto VI, do Orco visitado por Eneias. Para narrar tais feitos da maneira que o poeta latino fez, se mostra necessário um conhecimento profundo de elementos que compunham a tradição narrativa épica para que a mesma possuísse uma lógica interna, mas também saber outras artes além da poética23, tarefa que não pode ser adquirida apenas estudando algumas poucas ideias.

Voltando à trajetória do poeta, em 37 a.C. este já está integrado ao círculo de Mecenas, um romano pertencente a uma família de ordem equestre de origem etrusca que vivia em Arretium (GRIMAL, 1992, p.102). Podemos pensar em Mecenas como uma figura de fundamental importância na vida de Virgílio, visto que este o patrocinava (assim como tantos outros poetas, a exemplo Horácio), mas não apenas por isso. Provavelmente, o que aproximou estes dois homens foram suas concepções similares de vida. Mecenas, assim como Virgílio, buscou alimentar a necessidade de estabilidade social, o que podemos entender como uma grande aproximação com a busca de legitimidade da gens Iulia na Eneida. Assim, ambos encontram na figura de Otávio Augusto a chance de Roma voltar a ter uma estabilidade política. Para tanto, não mediram esforços para que tais ideias fossem plasmadas em Roma, em um tempo em que a instabilidade era a única constante dentro das variáveis que circundavam o cotidiano romano.