• Nenhum resultado encontrado

A construção do papel feminino na Sociologia da Família

2 Género – Uma breve incursão histórica

4. A construção do papel feminino na Sociologia da Família

“…é à família que, sem dúvida, cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas, é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão garantida pelo direito e inscrita na linguagem”. (Bourdieu, 1999, pág. 74).

A família é considerada ainda hoje como uma das instituições base para a socialização dos indivíduos e como tal aquela onde primeiramente se delineiam os papéis dos indivíduos na sociedade, “A família, hoje como no passado, tem importantes dimensões económicas. Todavia, estas sofreram grandes modificações (…). Estas modificações, por sua vez, alteraram de forma não linear as relações entre os sexos e entre as gerações no seio da própria família.” (Saraceno e Naldini, 2003, pág.245).

Alguns teóricos tiveram em atenção este fenómeno e estudaram esta instituição em profundidade marcando também a forma como a família ocidental passou a ser vista pela sociedade em geral. Podemos dizer, que a teoria que mais formatou a visão da família até hoje foi a de Talcott Parsons, com uma abordagem estruturo-funcionalista em que a base é um núcleo formado por pais e filhos que mantêm múltiplos laços, dentro da própria família com os seus membros, como exteriormente com outros sub-sistemas. Parsons subdivide a sua teoria em três aspectos: primeiro, analisa as funções da família; segundo a sua estrutura (centralizando-se principalmente na família americana) e finalmente em terceiro, no qual nos centraremos mais a divisão dos papéis entre homem e mulher no seio familiar.

“A função socializante da família tem primeiramente por objectivo transmitir à criança as ideias, valores e conceitos fundamentais da sociedade.” (Michel, 1983, pág. 79), esta família é baseada no casamento, em que cada um dos conjugues assume um papel específico tanto na organização das tarefas e do quotidiano, como na educação das crianças. Parsons indica desde logo o papel que compete a cada um dos géneros e dessa forma acaba por intensificar ainda mais a desigualdade entre géneros, ao incumbir ao homem o papel instrumental de ligação com a sociedade e à mulher o papel expressivo no interior da família. Assim sendo, ao elemento do género masculino cabe o papel mais activo, contactando com o

exterior no mercado de trabalho e nos espaços consagrados ao lazer, enquanto os elementos do género feminino estão consignados às tarefas e ao espaço doméstico, estando mais próximas dos filhos e exercendo a vigilância parental sob os mesmos. Esta bipolarização dos papéis desde cedo limita a socialização das crianças, pois o rapaz segue o exemplo do pai e a rapariga, o da mãe. Este modelo “enclausura” a mulher do mundo exterior e torna-a dependente económica e financeiramente do seu marido.

De salientar, que este modelo parsoniano da família nuclear é uma caracterização essencialmente das famílias de classe média americanas, e que por isso mesmo Parsons foi muito criticado por não ter em conta na sua análise a realidade das classes baixas, média baixa e das restantes sociedades e ainda por extremar a função dos géneros dentro da família. Por exemplo temos o caso da Suécia em que a abolição dos papéis tradicionais é uma realidade, a ideia central do modelo sueco é que “o duplo papel não deve assentar exclusivamente na mulher e que o direito de combinar o emprego remunerado com o parentesco activo é um elemento de qualidade de vida a que todos têm direito de acesso” (Sandberg, 1975, cit. in Michel 1983, pág. 80), fomentando a maior participação do homem nas actividades domésticas que até então eram um estereótipo do papel feminino na sociedade.

Na linha de Parsons, muitos foram os teóricos que seguiram as bases estruturo- funcionalistas da sua tese e elaboraram teorias sobre a família contemporânea, colmatando muitas das lacunas na análise funcionalista de Parsons. Dorothy Smith8 ligada à corrente da sociologia feminista teve um papel importante na afirmação da importância da função produtiva da família, ou seja, a quantidade de serviços domésticos que a família produz, cuja mulher é a principal produtora, é extremamente importante para o equilíbrio societal. No entanto, muito deste trabalho doméstico feito pelas mulheres é oculto, já que é feito no interior da casa, direccionado apenas para os membros da família nuclear. Desta forma, é a partir da família, que se inicia o fenómeno da desigualdade entre géneros, já que o papel de maior relevo é atribuído ao indivíduo do género masculino, enquanto a mulher ocupa sempre na estrutura familiar um papel secundário.

Apesar de a autora apresentar dois modelos de família nas sociedades contemporâneas estritamente ligados ao sub-sistema global industrial: a família típica da classe operária e a

família tipicamente burguesa, em ambas a mulher ocupa sempre um papel mais apagado, ainda assim, não menos importante que o papel que o homem tem na família. Por um lado, temos a socialização das mulheres na classe operária no seio familiar, que dependem economicamente do marido e que tem para com este uma relação de subjugação, tal como o marido tem perante o seu chefe no local de trabalho, há uma espécie de reprodução das relações laborais. Na família burguesa apesar da dependência económica da mulher face ao marido, o que se salienta mais é o “subcontrato” feito pelos membros da família e especialmente pela mulher de forma a fazer a ostentação “…permanente de bens simbólicos, características de um estilo de vida, de uma moda e de um consumo ostentatório.” (Michel, pág. 91,1983)

Dorothy Smith (cit. in Michel. 1983) salienta ainda a alienação de que são alvos todos os membros da família, tanto as crianças, como os adultos, muito devido à influência de uma economia capitalista.

Todavia, esta teoria peca por não analisar as formas, pelas quais muitos dos indivíduos combatem a alienação ao capitalismo e a imposição de funções que nem sempre coincidem com os seus valores. Esta análise concentra-se apenas no contracto entre as famílias, tanto a operária, como a burguesa com a economia capitalista, de forma a manter o equilíbrio da última na sociedade. Neste pacto, as mulheres são sempre as mais prejudicadas, já que elas são “usadas” consoante as necessidades do panorama em que se vive, cedendo aos imperativos da produção demográfica.

Além das críticas anteriores, podemos ainda classificar esta teoria como conservadora, sendo contrária na sua estruturação aos ideias da igualdade de género proclamados nas constituições das sociedades industriais, já que “…a família nuclear, descrita por Parsons assenta na diferenciação dos papéis dos pais e fornece às crianças que tem por função socializar um modelo de segregação baseado no sexo.” (Michel, pág. 104, 1983).

Estatísticas recentes demonstram este mesmo cenário que descrevemos anteriormente, em que a mulher continua a ser o elemento na família que mais tempo despende em tarefas domésticas (em média 6-8 horas por dia), mesmo tendo acesso a todas as inovações tecnológicas (microondas, aspiradores, máquinas de lavar roupa, etc.) que foram introduzidas no espaço doméstico.

“O trabalho familiar é simultaneamente necessário e repartido não só de forma desequilibrada, mas a priori.” (Saraceno e Naldini, pág.245, 2003), ou seja, antes do casamento ou da união entre os conjugues as tarefas estão já previamente dispostas, tendo em conta o género dos elementos. Assim sendo, as mulheres, mesmo que exercendo um cargo profissional continuam a ser aquelas que se ocupam mais do cuidado com os filhos e com o lar. Em Portugal segundo um inquérito feito pelo INE à ocupação dos tempos livres em 1999, a média de tempo dispendida diariamente com trabalho doméstico é de uma hora e quarenta cinco minutos para os homens e de cinco horas para as mulheres.

A herança de Parsons continua a persistir até aos nossos dias, pois mesmo em famílias onde a mulher se encontra inserida no mercado de trabalho, as funções domésticas mais pesadas ainda continuam a seu cargo e estão quase sempre relacionadas com o género feminino. Um peso que vem apresentando uma tendência de diminuição, muitas vezes não por equilíbrio de divisão de trabalho doméstico entre géneros, mas simplesmente por uma opção das próprias mulheres em despender menos do seu tempo em tarefas domésticas.