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Em 2010, o indigenismo oficial no Brasil completou 100 anos, tendo como marco inicial a criação da primeira agência do governo brasileiro voltada à prestação de assistência aos índios, o SPI, no âmbito do Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, que na sua criação ficou responsável pela “[…] imigração e colonização, catechese e civilização dos índios”. (BRASIL, 1906)

Por conta de uma política de ocupação, colonização e desenvolvimento agrário de áreas até então pouco exploradas no território brasileiro, a proble-

mática indígena toma maiores proporções como política de Estado, já que essa ocupação gerou conflitos com povos originários, os quais eram conta- tados à medida que a exploração dessas regiões avançava. Em 1908, surgem denúncias no XVI Congresso de Americanistas, ocorrido em Viena, de que o Brasil estaria promovendo uma política nacional de extermínio indígena, fato que acirrou a discussão e a urgência do posicionamento do Estado sobre a questão. (LIMA, 1995)

O SPI foi criado, então, “[…] a partir das redes sociais que ligavam os integrantes do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), do Apostolado Positivista e do Museu Nacional” (FREIRE; OLIVEIRA, 2006), no contexto de discussão sobre o modelo de intervenção que seria adota- do no contato com esses povos. Os debates envolviam desde propostas de guerra contra as populações indígenas conflituosas até o estabelecimento de territórios indígenas autônomos, tais como os estados (MARÉS, 1998), o que indica uma ausência de consenso político e também a dispersão de interesses sobre essa questão.

Ao analisar as ideologias e práticas do SPI, Lima (1995) sinaliza uma si- tuação controversa na sua atuação. Esse órgão se apresentava como protetor dos povos indígenas frente aos interesses privados ou estatais que colocavam em risco a sobrevivência dessa população, ao mesmo tempo em que servia como um instrumento para a missão de integração do território nacional. Nesse sentido, a problemática indígena não reflete uma atuação isolada, res- trita a essa população, mas sim deve ser apreendida a partir da conformação de um projeto de expansão das fronteiras agrícolas e de ocupação territorial. Assim, a política indigenista desse período pode ser caracterizada como uma estratégia de atualização da guerra de conquista contra os povos nativos, inserida em um contexto de construção da nacionalidade brasileira e de in- tegração do país. A preocupação era inserir os índios nesse projeto maior de forma “pacífica”, sem que eles sofressem formas violentas de extermínio. (LIMA, 1987, 1995)

Darcy Ribeiro (1962, p. 149), no início da década de 1960, aponta os desafios dessa política:

Um balanço crítico dos cinquenta anos de atividades que o SPI vem desenvolvendo desde sua criação, deve levar em conta as duas ordens de problemas que ele foi chamado a resolver. 1. Os problemas da sociedade brasileira em expan- são, que encontra seu último obstáculo para a ocupação do território nacional nos bolsões habitados por índios hos- tis. 2. Os problemas da população indígena envolvida nes- ta expansão a qual se esforça por sobreviver e acomodar-se às novas condições de vida em que vai sendo compulsoria- mente integrada.

As acusações contra o SPI, em meados dos anos 1960, sobre assassinatos de índios, corrupção e ineficiência administrativa deram origem, em 1963, a uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados , que levou à demissão de mais de 100 servidores do órgão e sugeriu ainda uma reorganização administrativa do órgão indigenista oficial. Ao final, o serviço foi extinto em 1967, mesmo ano da criação da Funai. No entanto, a criação desse novo órgão pode ser entendida como uma estratégia institucional de modificação da imagem negativa atrelada à antiga agência indigenista, e não como uma mudança nas diretrizes e princípios da política. Esta continuou se pautando no modelo tutelar e no paradigma político-jurídico do integracio- nismo, como se pode notar no Estatuto do Índio, de 1973.

Em relação à forma de tratamento dos povos indígenas, a Constituição de 1988 é um marco da mudança da perspectiva integracionista para a ado- ção de uma visão que compreende a “[…] valorização e fortalecimento das identidades étnicas dos povos indígenas, de suas tradições, culturas, línguas e valores próprios”. (LUCIANO, 2010) Apesar da não revogação do Estatuto do Índio de 1973, a nova legislação ressignifica o conceito e o exercício do instrumento jurídico da tutela por parte do órgão indigenista oficial.

Além disso, o contexto político de mobilização, no período da Cons- tituinte, fomentou o desenvolvimento de uma forma de organização dos povos indígenas como movimento social, com pautas e demandas de caráter mais abrangente. Essa mobilização culminou na novidade trazida pelo direi-

to constitucional que garante às organizações indígenas a autorrepresenta- ção perante a sociedade e o Estado.

A ascensão desse grupo na cena política traz questões como a cida- dania indígena-brasileira, apresentada como uma combinação de direitos universais e específicos. A ideia da cidadania indígena pode ser desenvolvi- da a partir da teoria do reconhecimento, dentro de uma perspectiva multi- culturalista, apresentada por Charles Taylor (1994). O autor problematiza a contradição da democracia liberal, pois esta, apesar de possibilitar a plu- ralização das esferas decisórias, por conta de princípios ético-filosóficos, relega as diferenças entre os cidadãos à esfera privada, caracterizando-as como elementos irrelevantes na esfera política. Ao centrar-se numa con- cepção universalista sobre o indivíduo, o regime democrático liberal exclui as características diferenciadas desse indivíduo abstrato. Taylor reconhece a importância da democracia processual e dos direitos fundamentais uni- versais e propõe a extensão destes às coletividades, buscando uma com- patibilidade entre a democracia liberal e o multiculturalismo. Coloca-se, desse modo, a questão: se a sobrevivência cultural de certos grupos deve ser reconhecida publicamente como meta legítima, o que torna sua autentici- dade e seu reconhecimento público objeto da discussão política? (COSTA; WERLE, 2000)

Atualmente, os grupos indígenas apresentam demandas que envolvem não somente elementos de reconhecimento – no sentido do rompimento das barreiras institucionais que os impossibilitam de manter uma interação inte- gral com outros sujeitos, a partir do reconhecimento efetivo de seus direitos políticos, civis e culturais –, mas também de redistribuição, em busca da supe- ração da situação de vulnerabilidade socioeconômica por parte desse grupo.3

As demandas atuais das organizações indígenas envolvem diversas áreas. Há propostas mais antigas, como a constituição de sistemas próprios para as- sistência social, educação e saúde diferenciadas e acesso aos recursos de finan- ciamento de projetos produtivos. Assim como existem questões mais recen-

3 Fraser (2007) discute a compatibilidade entre demandas de reconhecimento e de redis- tribuição.

tes: o combate ao tráfico de drogas em territórios indígenas, direitos sobre a propriedade imaterial, projetos de proteção ao meio ambiente, programas de valorização cultural e inserção no ensino superior. Além disso, os temas da participação nas decisões e da representação e cotas parlamentares têm sido inseridos muito recentemente no debate sobre a política indigenista. É neces- sário ressaltar que todas essas questões estão atreladas às ações indígenas para a garantia dos territórios tradicionais, tema central de todo o debate sobre direitos dessas populações no Brasil.

Essas demandas lançam desafios aos sistemas políticos em relação à garantia de direitos coletivos de povos dentro de Estados multiétnicos, reali- dade comum a praticamente todos os países latino-americanos, muitos dos quais têm reinventado o sistema jurídico para reconhecer essas garantias. (MARÉS, 2003) No caso do Brasil, com a mudança da perspectiva integracio- nista, os direitos sociais indígenas passam a ser fundamentados numa con- cepção multicultural, que reconhece o caráter diferenciado de seu público, o que implica a construção de políticas específicas, não mais com caráter da integração compulsória. Resta analisar como esses direitos têm sido mate- rializados na forma de políticas públicas e as estratégias de organização da máquina político-administrativa para sua efetivação.

DESCENTRALIZAÇÃO E REFORMA DO ESTADO –