• Nenhum resultado encontrado

No movimento da discussão teórica apresentada, investiguei a manifestação popular do “Nêgo Fugido”, de Acupe, a priori, como festa realizada no Re- côncavo Baiano, durante todos os domingos de julho, que traz a encenação

de alguns elementos integrantes da vida do escravo que fugia de seu senhor para divertir-se. Perceber a manifestação como um arranjo cênico foi a pri- meira pista para pensar que aquilo que eu chamava de festa transbordava para outras configurações reais, podendo ser, ao mesmo tempo, compreen- dido por uma infinidade de estruturas, por trazer dentro de si diversas mo- dalidades de expressão, dando vazão a outras práticas, assim como pensou Canclini (1983).

Na pesquisa, a abordagem etnográfica articulou observação participante dos processos que envolvem a festa, desde a preparação até os desfechos, ela- boração de diário de campo, realização de ensaio foto etnográfico, entrevistas semiestruturadas com interlocutores envolvidos in locu e análise documental dos registros midiáticos do evento em jornal de grande circulação da Bahia. Isso permitiu a incorporação de dimensões do contexto socioeconômico, político e histórico que produzem e reproduzem os sentidos e práticas da manifestação popular em questão, realizada em Acupe.

O batuque, a fuga, a captura, o sofrimento do escravo punido, a nego- ciação da liberdade e a compra da alforria são cenas que se sucedem repeti- das vezes em uma mesma tarde em diversos lugares do distrito, como num cortejo. Num movimento de verdadeira agitação, personagens como negros fugidos, conhecidos como “negas”, caçadores, guardas militares, o capitão do mato, o nobre e a madrinha envolvem-se em uma luta dança catártica de grande impacto visual e corpóreo.

Estar nas ruas de Acupe num domingo de festa do “Nêgo Fugido” é sentir a energia que pulsa, misturando o som dos atabaques e do agogô, o barulho da palha de bananeira da saia dos caçadores e a imagem dos rostos pintados de preto com a boca vermelho sangue, além do cheiro de fumaça de charuto, suor e carvão. As “negas” cantam e dançam, respondendo, em coro, às cantigas entoadas pelo cantador. A roda começa a ser assustadora- mente cercada e logo invadida pelos caçadores que, com olhar ameaçador, giram as saias impetuosamente e apontam as espingardas para as “negas” e para os convidados mais amedrontados. A poeira levanta. Até que um deles atira. Então, os escravos, compostos, majoritariamente, por crianças e jovens

homens negros, atiram-se no chão e começam a tremer simulando sofrimen- to e agonia. Não há lama, pedra ou chão de areia que diminua o ímpeto da brincadeira. A pintura feita de carvão e a anilina vermelha como sangue, da boca dos escravos e caçadores, aos poucos vão colorindo os corpos, o figuri- no e a cidade.

De acordo com brincantes, o grupo percorre a vila de Acupe em um roteiro que busca satisfazer os moradores e amigos, os visitantes e o próprio grupo, que arrecada dinheiro entre uma dança e outra. A mendicância é uma cena que compõe o enredo da apresentação, tendo em vista que, na história, os escravos querem comprar a sua alforria. Pedir dinheiro parece estabelecer também um vínculo de reciprocidade entre os atores que brincam e a po- pulação que assiste e doa. O dinheiro arrecadado durante a festa, ainda que seja uma quantia muito pouco expressiva, serve tanto para a manutenção dos elementos da encenação, como uma parte do montante é utilizada em uma confraternização do grupo na e para a própria comunidade de Acupe. Num domingo de agosto, geralmente no Dia dos Pais (o segundo domingo do mês), o grupo oferece um almoço, o que eles chamam de Cozinhado, para todos os moradores, vizinhos, amigos e visitantes, como um ato de cele- bração do sucesso da apresentação anual e como agradecimento às doações.

Há correlação entre a identidade local e cultural e a função gregária e morfológica do grupo. O ato dos brincantes de percorrerem a cidade mos- trando sua própria tradição, ou seja, mostrando-se a si próprios, pode ser uma forma de ligar uns aos outros na brincadeira, em que o sentimento de pertencimento à cultura e à organização social fortalece e recria vínculos no espaço físico urbano, como anunciado por Perez (2011), em seu ensaio sobre o cruzamento entre festa, religião e cidade. Toda a vila participa da festa, direta ou indiretamente, na rua ou, até mesmo, na porta de casa, num espetáculo popular que aproxima e empodera indivíduos, fortalecendo a identidade local.

Indo além, há de se reconhecer a dimensão religiosa da festa. A influên- cia da religião de matriz africana é evidente em diversos aspectos constitu- tivos da manifestação. Elementos religiosos são utilizados e ressignificados

durante a encenação. Os toques dos atabaques, as manifestações corporais das “negas” e caçadores, as músicas entoadas em iorubá, são apenas alguns traços mais óbvios da representação. Em campo, observei que algumas “ne- gas” fazem reverências ao chão como se fossem iaôs2 vivenciando um ritual

de homenagem ao orixá ou a um representante mais importante na hierar- quia da religião. Brincantes revelaram gostar de assistir à festa de caboclo em terreiros do distrito para trazer movimentos corporais novos à dramatização, enriquecendo a composição performática de sua personagem.

Os meninos que brincam de “negas”, por exemplo, começam a se aglo- merar em roda, em frente aos tocadores e aos instrumentos: rum, rumpi, lez e agogô. Nesse caso, faço referência ao sirê, palavra de origem iorubá que significa festa. Conforme Amaral (2000), no candomblé,

[…] é na festa que os orixás vêm à terra, no corpo de seus filhos, com a finalidade de dançar, de brincar, de xirê, termo que em ioruba significa exatamente isto. É através dos gestos, sutis ou nervosos, dos ritmos efervescentes ou cadenciados, das cantigas que “falam” das ações e atributos dos orixás, que o mito é revivido […] como a soma das cores, brilhos, ritmos, cheiros, movimentos, gostos. (AMARAL, 2000, p. 13)

É possível afirmar que, na roda do “Nêgo Fugido”, acontece a materia- lização espacial do comemorar junto, à recuperação de liberdade momentâ- nea e, por conseguinte, de sua identidade coletiva. Ali as personagens podem expressar um momento de liberdade, reinventando as relações sociais na qual a escravidão não está presente. A festa, nesse contexto, configura-se um instante de comunhão importante, tanto do ponto de vista da encenação, do resgate mítico, como simbólica das relações sociais ali estabelecidas entre os participantes.

Mas “Nêgo Fugido” de quê? Para entender a circunstancialidade his- tórica da festa, Ramos (1996), explica que, nos registros sobre a resistência negra no Brasil escravista, no primeiro momento, a conquista pela liberdade

era dada pela fuga sem rompimento com o sistema, não radical e transitória. O escravo fugia para batucar, namorar, beber, em suma, divertir-se. Ao ser cap- turado, ele passava a angariar fundos para a compra de sua alforria, como se o escravo tivesse tomado consciência do seu estado de coisas e da perspectiva de mudança. Logo, pode-se pensar que a festa produz cruzamentos entre as histórias da escravidão, elaboração da tradição e reconstituição da memória.

O “ouvir contar” é elemento constituinte da manifestação, mantida pela memória dos brincantes e pela comunidade. As percepções particu- lares sobre a festa abrem caminhos de acesso à memória coletiva retida em cada participante, ratificando o que foi dito por Brandão (1989) sobre a festa, como evocação de algo que deve ser recordado e, nesse caso, não deve ser esquecido.

A memória é fonte de história de lugares, saberes e fazeres culturais. Marcus (1991) considera que a porta de entrada para o conhecimento das possíveis associações entre um espaço, suas manifestações e o auto-reco- nhecimento das identidades locais pode ser por meio da investigação das narrativas históricas dos indivíduos. A memória coletiva leva em conside- ração as origens, os sinais, expressões e o curso das manifestações sociais. As categorias analíticas deste trabalho podem ser filtradas por intermédio das representações sociais das pessoas que vivenciam a festa de diversas maneiras todos os anos. “A memória como agente vinculador e como processo que relaciona a história com a formação da identidade” (MARCUS, 1991, p. 206) local e, nesse caso, da festa e dos sujeitos que a experimentam. Em uma refle- xão antropológica, isso possibilita a descoberta dos processos originados nas tradições, na vida em comunidade, mas também de outras tramas realizadas nas histórias individuais e coletivas.

Acupe nasce, na memória coletiva e a partir de relatos dos habitantes mais velhos, da fusão, ou desmembramento de dois engenhos: o Acupe e o São Gonçalo do Poço. A comunidade foi construída por pessoas que mantêm a atividade pesqueira, voltada à exploração dos manguezais e centrada na organização familiar. Sem acesso à terra, o mar era a única possibilidade de viabilizar o sustento. (RAMOS, 1996) Mesmo com a proximidade da capital,

Acupe preserva um ritmo próprio de vida local, em que tempo cronológico e temporalidade atendem às necessidades e contingências. Ramos explica que a permanência de ex-escravos na região, no período pós-abolição, dá à loca- lidade substrato para elaborar representações sobre a escravidão e as relações sociais da época escravista. “Traços como cumplicidade, solidariedade da po- pulação, a ridicularização e a fragilidade do capitão-do-mato/caçador exibidas nas imagens do contexto social escravista do final do século XIX”, (RAMOS, 1996, p. 40) fazem parte do imaginário apresentado na manifestação.

A FESTA COMO PONTO DE PARTIDA PARA